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“O SHOW TEM QUE CONTINUAR”: ENCALÇOS E PERCALÇOS DO SER/ESTAR PROSTITUTA
“THE SHOW MUST GO ON”: TRACKS AND MISHAPS OF BEING A PROSTITUTE
“EL ESPECTÁCULO DEBE CONTINUAR”: HUELLAS Y PERCANCES DEL SER/ESTAR PROSTITUTA
Contextus – Revista Contemporânea de Economia e Gestão, vol. 16, núm. 3, pp. 151-180, 2018
Universidade Federal do Ceará


Recepção: 04 Junho 2018

Aprovação: 31 Agosto 2018

DOI: https://doi.org/10.19094/contextus.v16i3.32642

Resumo: Em seus tempos áureos, a zona de prostituição da Guaicurus (Belo Horizonte, MG) era comparada com outras “renomadas” do mundo, dentre as quais a região parisiense de Moulin Rouge. No entanto, as mulheres que ali trabalham, as prostitutas, sempre foram estigmatizadas como alvos de discriminação e violência. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar relações entre o sentido do trabalho e a construção da identidade de prostitutas, fazendo-se um paralelo com o filme Moulin Rouge. Para tal, uma pesquisa exploratória qualitativa foi operacionalizada por meio de entrevistas, pautadas em história oral temática, com 17 prostitutas da referida região; seus dados foram submetidos à análise do discurso (vertente francesa). As análises indicaram sentidos frágeis e identidades fragmentadas e multifacetadas. Sofrimento diário, prazer próprio silenciado e sonhos imaturos retratam que, custe o que custar, “o show tem que continuar”.

Palavras-chave: sentido do trabalho, identidade, prostitutas, Moulin Rouge, Guaicurus.

Abstract: In its heyday, Guaicurus prostitution zone (Belo Horizonte, MG) was compared to other worldwide “renowned” ones, including the Parisian Moulin Rouge region. However, the women who work there, prostitutes, have always been stigmatized as targets of discrimination and violence. Thus, the purpose of this study was to analyze relations between the sense of work and the identity construction of prostitutes, by making a parallel with the film Moulin Rouge. For that, a qualitative exploratory research was operationalized through interviews based on thematic oral history with 17 prostitutes of that region; its data were submitted to discourse analysis (French approach). The analyses indicated fragile senses and fragmented, multifaceted identities. Daily suffering, silenced own pleasure and immature dreams portray that, whatever the cost, “the show must go on”.

Keywords: sense of work, identity, prostitutes, Moulin Rouge, Guaicurus.

Resumen: En sus tiempos áureos, la zona de prostitución de Guaicurus (Belo Horizonte, MG) era comparada con otras “renombradas” del mundo, entre las cuales la región parisina Moulin Rouge. Sin embargo, las mujeres que allí trabajan, las prostitutas, siempre fueran estigmatizadas como objetos de discriminación y violencia. Así, el objetivo de este estudio fue analizar relaciones entre el sentido del trabajo y la construcción de la identidad de prostitutas, haciéndose un paralelo con la película Moulin Rouge. Para ello, una investigación exploratoria cualitativa fue operacionalizada por medio de entrevistas pautadas en historia oral temática con 17 prostitutas de dicha región; sus datos fueron sometidos al análisis del discurso (vertiente francesa). Los análisis indicaron sentidos frágiles e identidades fragmentadas y multifacéticas. Sufrimiento diario, el placer propio silenciado y los sueños inmaduros retratan que, a costa de lo que cueste, “el espectáculo debe continuar”.

Palabras clave: sentido del trabajo, identidad, prostitutas, Moulin Rouge, Guaicurus.

1 INTRODUÇÃO

Popularmente conhecida no senso comum como a profissão mais antiga do mundo, a prostituição sempre foi um assunto controverso, envolto em uma série de estigmas que, historicamente, trazem à tona discussões, das mais diversas naturezas. Notavelmente, as discriminações sofridas pelas prostitutas e o estigma que carregam remontam à antiguidade e persistem até hoje (SILVA; CAPELLE, 2015). Socialmente reconhecidas como seres errantes, sujas, pecadoras, mulheres de vida fácil, escória da sociedade, dentre outras expressões pejorativas (PAIVA et al., 2017), as mulheres prostitutas estão inseridas em contexto de marginalização, criminalização, adversidade, degradação e aviltamento.

Ao longo dos anos, a prostituição tem sido objeto de análise de vários estudos em diferentes áreas do conhecimento. Definida como a atividade por meio da qual se troca sexo por dinheiro, ela é exercida em diversos locais diferentes, como em ruas, boates, hotéis, motéis e rodovias (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO, 2008). O termo “zona”, por sua vez, é popularmente conhecido como uma região de grande concentração de atividades de prostituição e de boemia de uma determinada cidade.

A capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, atualmente abriga uma das “zonas” mais conhecidas do Brasil, a Guaicurus (ANDRADE; TEIXEIRA, 2014), reconhecida pela população local como a rua do “sobe e desce”, termo que alude ao intenso fluxo de homens a subir e descer as escadas dos hotéis de prostituição da região, associado ao ato sexual em si. Nessa região, é possível identificar um frenesi de veículos e pessoas que “disfarçam” as entradas dos hotéis de prostituição, escondendo a “pouca vergonha” do restante da “paisagem urbana” (BARRETO; PRADO, 2010).

Atualmente, a Guaicurus é socialmente reconhecida como um território marginal, intensamente frequentada e marcada pela decadência do baixo meretrício (PEREIRA et al., 2016). Contudo, cabe aqui salientar que a região já viveu seus tempos de glória nos primórdios da capital mineira, sendo o palco principal da boemia, do glamour e da sensualidade. Permeada por cabarés, clubes noturnos e bares inspirados nos moldes parisienses, o local passou a ser frequentado por jovens intelectuais que buscavam, no fim de noite, bebidas, conversas com amigos e, sobretudo, sexo pago, isso tudo oculto dos olhos das mulheres e da “tradicional família mineira” (OLIVEIRA, 2008). Entre seus principais locais, destacam-se os cabarés Olímpia, Montanhês Dancing, Chantecler, e os hotéis Majestic e Maravilhoso (ANDRADE; TEIXEIRA, 2014).

Em seus tempos áureos, a “zona” da Guaicurus poderia ser facilmente comparada com outras grandes “zonas” do mundo, dentre as quais se destaca a parisiense Moulin Rouge (Moinho vermelho) ou “Moinho dos escândalos”, fundado em 1889, no boêmio bairro de Montmartre. O Moulin Rouge era um cabaré, depois teatro, cinema, palco de music-hall; além de alvo de um filme estrelado pela atriz Nicole Kidman em 2001. A lenda do Moulin Rouge, assim como da Guaicurus, foi construída ao longo das décadas. No caso da Guaicurus, os cabarés cederam espaço aos “hotéis de batalha”, estabelecimentos compostos por numerosos quartos alugados diariamente pelas prostitutas para prestarem seus serviços (PEREIRA et al., 2016).

Apesar do glamour em torno da história dessas duas “zonas”, este estudo optou por centrar suas análises nas mulheres que trabalham nesse local e muitas vezes passam despercebidas pela história, hoje menos gloriosa que outrora. Neste artigo, objetivou-se analisar os sentidos atribuídos por prostitutas ao próprio trabalho e o processo de construção de suas identidades, fazendo-se um paralelo com o filme Moulin Rouge, que possibilitou uma ação reflexiva sobre as práticas das prostitutas da zona da Guaicurus de Belo Horizonte.

De acordo com Bendassolli et al. (2015), a temática sobre os sentidos do trabalho em geral começou a ser mais explorada no Brasil a partir dos anos 2000, especialmente no campo da Psicologia. Entretanto, apesar de haver diversos estudos na literatura internacional que abordem tal temática em ocupações/profissões marginais, pouco se tem debatido sobre isso no Brasil (BENDASSOLLI; FALCÃO, 2013). Além disso, como destacado por Sá e Lemos (2017), ainda se faz necessário estudar o sentido do trabalho, dado o número pouco expressivo de publicações nacionais sobre a temática, muito menos baseadas em modelos teóricos e metodologias diversificados. Diante disso, este estudo pretende preencher tal lacuna na literatura, ao utilizar um arcabouço teórico diferente do convencional e com uma abordagem metodológica inovadora, ao utilizar a história oral temática com as prostitutas e fazer um paralelo dos achados com o filme Moulin Rouge.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Este capítulo apresenta a abordagem teórica que suporta a discussão ora proposta. Nesse sentido, discutem-se as seguintes temáticas: sentido do trabalho, identidade, comportamentos desviantes. Posteriormente ainda é apresentada uma breve sinopse do filme Moulin Rouge.

2.1 Sobre sentido do trabalho e universo feminino

De acordo com Borges, Alves Filho e Tamayo (2008), alguns estudiosos têm criticado os estudos sobre o sentido do trabalho que visam melhor compreender os modelos de organizações e o próprio trabalho por meio de distintos instrumentos nacionais ou importados, mesmo que devidamente validados. Houve um crescimento desordenado das abordagens acerca da temática desde a década de 1980, tido porém como positivo (BORGES; ALVES FILHO; TAMAYO, 2008) na medida em que permitiu aprofundar análises macro, meso e micro, inclusive conjuntamente com outros construtos (KATZELL, 1994; ESTRAMIANA, 1995).

Esses aspectos ressaltam a complexidade da temática que, para Fiske (1992), inclui a percepção do significado que o próprio sujeito tem de si na sociedade e que impacta no seu esforço na busca de um trabalho compatível com suas idealizações e possibilidades de vínculos. O sentido do trabalho se relaciona a diversos contextos, sejam esses específicos como o tipo do trabalho ou amplos como a política, cultura nacional e macroeconomia (BORGES; ALVES FILHO; TAMAYO, 2008). Destarte, a construção do sentido do trabalho ocorre de maneira subjetiva, abarcando desde a história dos indivíduos até a sua inserção social, reforçando assim a necessidade de uma compreensão histórica da intenção humana construída (FISKE, 1992). Ou seja:

os significados são construídos coletivamente em um determinado contexto histórico, econômico e social concreto, ao passo que os sentidos são caracterizados por ser uma produção pessoal em função da apreensão individual dos significados coletivos, nas experiências do cotidiano. (TOLFO; PICCININI, 2007, p. 44)

Segundo Morin (2004), o sentido do trabalho relaciona-se com a significância atribuída pelo indivíduo às tarefas que realiza, com suas representações acerca destas e com a importância que elas assumem na sua vida. O significado do trabalho, por sua vez, está ligado ao valor de significância que o trabalho possui para o indivíduo. Sendo assim, é o sentido que destaca a “singularidade historicamente constituída pelo sujeito e se torna a melhor forma de aproximação com a subjetividade expressa por ele” (LIMA et al., 2013, p. 46).

Em complemento, Borges, Alves Filho e Tamayo (2008) elucidam que o sentido atribuído ao trabalho, além de ser influenciado por variáveis sociais, leva em consideração questões subjetivas, bem como o tipo de trabalho em questão, sendo este último de grande valia para investigar atividades laborais consideradas às margens da sociedade, como por exemplo a prostituição. Considera-se, ainda, que a sociedade contemporânea é marcada por profundas desigualdades econômicas e pela instabilidade social, de modo que a lógica do capital sobrepuja a força humana de trabalho, desafiando o trabalhador a sobreviver em condições fragmentadas e instáveis (SILVEIRA; MEDEIROS, 2016).

Cabe salientar que os papéis são construídos a partir da (des)construção tanto de pressupostos histórico-sociais, quanto das identidades de gêneros estabelecidas. Contudo, “o processo de construção da subjetividade, seja de mulheres ou de homens, no bojo de um sistema relacional instruído sob a chancela da supremacia masculina, configura-se como dominação de cunho androcêntrico” (VANNUCHI, 2010, p. 127), que auxilia e perpetua o temor de a mulher lidar com o sucesso e com o poder (BOURDIEU, 1999; HIRATA, 1998).

Ressalte-se, ainda, o caráter tridimensional do sentido do trabalho: subjetivo, oriundo da história pessoal de cada um; social, com aspectos compartilhados por um conjunto de indivíduos e refletindo as condições históricas da sociedade; dinâmico, inacabado, em permanente processo de construção (BORGES; ALVES FILHO; TAMAYO, 2008).

De acordo com Vannuchi (2010), as estruturas objetivas se subjetivam, tomando o princípio masculino como medida de todas as coisas. Segundo Bourdieu (1999), as relações verticais são criadas na objetividade de ações institucionais, essas por sua vez estabelecem formas de divisões dos espaços sociais e determinam visões sexualizantes. O processo de dominação masculina – consciente ou inconsciente – constitui uma das formas de dominação simbólica. Para o autor, as estruturas sociais, inclusive laborais, subjetivam-se em hábitos, ou seja, disposições adquiridas, gostos, estilos, princípios de distinção e classificação.

O sentido atribuído ao trabalho, além de sofrer diversos impactos sociais, conta também com percepções distintas, a depender dos níveis analisados e do tipo de atividade em questão. Daí a grande relevância de investigar trabalhos considerados às margens da sociedade (BORGES; ALVES FILHO; TAMAYO, 2008). Incluem-se aí estudos que busquem compreender melhor a estrutura escrita nas coisas e nos corpos, subjetivados, considerando os processos vigentes de refrear e distorcer, por exemplo, a alma feminina em suas expectativas, no intuito de adequar, à realidade e à possibilidade dominantes, suas percepções do sentido do trabalho e seus sonhos (VANNUCHI, 2010).

Quando o olhar se destina ao sentido atribuído pelas mulheres ao trabalho que desenvolvem, nota-se que muitas são mutiladas simbolicamente por um universo sexuado de cima a baixo, no qual, em determinados momentos, cargos e organizações são desencorajados direta ou indiretamente, podendo trazer à superfície uma “impotência aprendida” (BOURDIEU, 1999). Para Vannuchi (2010), a etapa do desestímulo impede ou prejudica a continuação das mulheres em algumas organizações, pois elas não percebem sentido em seus cargos ou percebem claramente a desigualdade. Esses acontecimentos podem levá-las a abandonar a ideia de uma carreira de sucesso e a optar por “escolhas/preferências” de trabalhos com horários mais flexíveis, em domicílio, mais precários e, de preferência, com meio expediente, para poder conciliar os seus demais papéis nos outros horários, tais como o de dona de casa, mãe e esposa (VANNUCHI, 2010).

2.2 Sobre identidade e os encalços da sua construção

O conceito de identidade é complexo e tem sido fonte de estudos em diversas áreas, como por exemplo, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia e a Antropologia, sendo abordado sob uma diversidade de perspectivas – a individual, a profissional, a organizacional, a cultural, a social, dentre outras (DUBAR, 2005). Especificamente na Administração, os estudos sobre identidade são construídos com base na transdisciplinaridade entre as teorias das organizações e outras áreas (SOUZA; CARRIERI, 2012; MARRA; FONSECA; MARQUES, 2014).

Entretanto, a despeito das diversas perspectivas, nota-se uma convergência da maioria para entender “identidade” como uma definição que os sujeitos têm de si e dos outros, oriunda das relações de socialização (AVELAR; PAIVA, 2010; MARRA; FONSECA; MARQUES, 2014). Nesse sentido, a socialização pode ser compreendida como um “processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de atividade que cada um encontra durante sua vida e das quais deve aprender a tornar-se sujeito” (DUBAR, 2005, p. 17).

Marcada pela socialização e pela capacidade reflexiva dos indivíduos, a construção identitária reflete movimentos de interiorização (processo que permite ao sujeito aprender novas formas de agir ou se socializar, também conhecida como socialização secundária) e externalização (maneira pela qual o indivíduo se mostra ao mundo). Esses dois movimentos constituem o processo de institucionalização, no qual as ações tipificadas são compartilhadas com o ambiente externo, transformando-se em referência para a ação individual e coletiva dos sujeitos (BERGER; LUCKMANN, 2002).

O estudo da identidade está envolto em diferentes níveis analíticos. De maneira geral, dois são tratados na maioria dos estudos: o pessoal e o social, sendo essa a primeira classificação utilizada por autores que se debruçam sobre a temática para distinguir o fenômeno em seus níveis perceptivos (MARRA; FONSECA; MARQUES, 2014)”. A identidade pessoal está ligada a uma construção individual do conceito de si, enquanto a identidade social trata do conceito de si a partir da vinculação da pessoa a grupos sociais” (MACHADO, 2003, p. 53), podendo legitimá-lo e orientá-lo frente à vinculação e ao reconhecimento social (AVELAR; PAIVA, 2010). Assim, a identidade “não é uma substância ou atributo individual ou coletivo, mas uma elaboração determinada pelas estruturas mentais e processos psíquicos a partir das interações com outros indivíduos, grupos e comunidades”, remetendo ao individual e ao coletivo, bem como ao particular e ao geral (FREITAS, 2010, p. 12), ou seja, um processo em permanente construção e reconstrução (HALL, 2006; AVELAR; PAIVA, 2010).

Dubar (2005) ressalta que a identidade pessoal se constitui como tentativa de explicação do conceito de si, sendo o fruto de uma construção psicológica. Trata-se de um processo definido pela intermediação constante das identidades visadas e das identidades assumidas (MACHADO, 2003; DUBAR, 2005), sendo o gap existente entre os dois tipos de identidades o espaço de formação do eu, ou seja, é nesse espaço que as interações sociais irão se processar na construção identitária (AVELAR; PAIVA, 2010). Sendo assim, a identidade pode ser compreendida como um fenômeno que emerge a partir da interação dialética entre sujeito e sociedade, ou seja, por meio de um processo contínuo, dinâmico e socializante (DUBAR, 2005; AVELAR; PAIVA, 2010).

Importante salientar que a identidade pode se apresentar de maneira múltipla, fragmentada e muitas vezes contraditória, principalmente para indivíduos em contexto de “trabalho sujo”, ou seja, aquelas ocupações e atividades profissionais estigmatizadas, de pouco (ou nenhum) prestígio ou visibilidade social (LHUILIER, 2010; LEITE; OLIVEIRA; PAULA, 2012; BORGES; MOURÃO, 2013; TEIXEIRA; SARAIVA; CARRIERI, 2015), como por exemplo, as prostitutas. O estigma que envolve o “trabalho sujo” parece tornar para esses indivíduos quase impossível construir uma autoidentidade (ASHFORTH; KREINER, 1999), apesar de alguns estudos apontarem que esses profissionais, via de regra, possuem grande orgulho de sua função, reconhecendo seu papel enquanto agentes sociais (ASHFORTH; KREINER, 1999; SCHWARTZ; DURRIVE, 2007; SOUTHGATE; SHYING, 2014).

O processo de identificação e de construção identitária de “trabalhadores sujos” se estrutura em um cenário marginal e desmoralizado, no qual seu estigma pode ser compreendido com um tipo de identidade deteriorada (GOFFMAN, 1959). Notavelmente, esses indivíduos sofrem um processo social de diferenciação em função do estigma que carregam, tendendo a percorrer o que o autor denomina “carreira moral”: processo pelo qual o ego do estigmatizado passa por um processo de mudança na tentativa de alinhar-se às normas sociais. Nesse sentido, nota-se uma estreita relação entre a formação identitária e a possibilidade de ocultar seu estigma, o que tende a aumentar a pressão psicológica sobre o trabalhador em função de suas dificuldades e impossibilidades, levando-o ao sofrimento e a quadros de adoecimento (GOFFMAN, 1959).

Observa-se, ainda, uma ligação direta entre a execução de “trabalhos sujos” e a degradação das representações de si, como é o caso, por exemplo, das prostitutas. Estas, em diversos momentos, veem-se como escória da sociedade, algumas justificando o não status profissional da prostituição com base na transitoriedade que o trabalho ocupa em suas vidas, outras seguindo uma vertente moral religiosa, que atribui à profissão uma pecha de pecado (SOUSA et al., 2017).

Consideram-se, então, três importantes aspectos nos processos de identificação e construção identitária de uma prostituta: I) o gênero, dada a maior complexidade da formação identitária em mulheres que em homens (BUTLER, 2004); II) a temporalidade, dada a evidência de uma fragmentação da identidade para indivíduos que adotam múltiplas identidades no trabalho (BROWN, 2015) e, por fim; III) a moralidade, dada a observância de que “quem nós éramos, somos e estamos nos tornando são questões fundamentalmente morais” (BROWN, 2015, p. 33). Isso se justifica porque alguns grupos de trabalhadores estão sujeitos a um profundo sentimento de perda e sofrem vergonha, culpa e sentimentos de inadequação ao ponto em que “as pessoas perdem a confiança e autoestima, a integridade moral se evapora” (GABRIEL, 2012, p. 1147).

Nesse sentido, a perda do valor feminino configura-se nas distorções da identificação de seu corpo, pois aquela que sai de sua casa e vai à luta, trabalha, se esforça ao máximo, ainda assim é percebida exclusivamente por seu papel de mãe, esposa e do lar (BEAUVOIR, 1970). Observa-se que a sociedade brasileira segue um modelo patriarcal, de modo que os papéis de cuidados com a família permanecem quase inquestionáveis, sendo de responsabilidade principal das mulheres (CAMPOS, 2010). A divisão sexual do trabalho e da reprodução amplia a percepção de uma sociedade patriarcal e duplica o trabalho feminino, além de serem observadas, nas organizações, definições de cargos que favorecem a segregação das mulheres. Sua permanência implica a masculinização em termos identitários (NOGUEIRA, 2011), dificultando o rompimento com o ideário do corpo da mulher atrelado a objeto de prazer masculino e aos cuidados com o lar (CAMPOS, 2010).

A partir disso, entendem-se as observações feitas por Bourdieu (1999), de que a mulher sofre de mitigação de autonomia e, portanto, de agência, caracterizando uma constante violência que envolve mutilações reais e simbólicas, e por Campos (2010), quanto às buscas incessantes por corpos ideais, ritmos e comportamentos que socialmente são aceitáveis e desejosos. Para Greer (1970), os saltos, os espartilhos, as cintas e as maquiagens, caracterizados como símbolos femininos que permitem desde maiores alturas, cinturas mais finas, nádegas arrebitadas e, por fim, rostos corados e olhos cerrados (curiosamente associados aos rostos de mulheres quando excitadas em uma relação sexual), concomitantemente, deformam ou disfarçam os corpos femininos, a fim de encaixá-los em um padrão masculino desejado.

Portanto, pode-se considerar que o tratar do corpo da mulher constrói-se socialmente com a ideia de objeto de desejo sexual, trazendo adolescentes, jovens e adultas a reproduzirem o que se espera de uma mulher de “boa fama”. Já aquelas desviantes tendem a ser desprezadas socialmente (CAMPOS, 2010; SILVA, 2010; SOUZA, 2010), o que é tema de discussão da próxima seção.

2.3 Sobre os percalços dos comportamentos desviantes

Desde a antiguidade, os percalços dos comportamentos considerados desviantes da cultura dominante eram percebidos, expostos e punidos para desestimular mais pessoas de tomar atitudes semelhantes, o que, no entanto, não evitava que sempre ocorressem (SOUZA, 2010). Assim, formas de agências dos indivíduos são sempre singulares e vivenciadas particularmente, mesmo no interior de relações de poder, demonstrando que a subjetividade está em constante movimento de (re)construção e (re)invenção por meio das táticas acionadas, das ações despendidas e das racionalidades intentadas (SILVA, 2010). Nesse sentido, “perder a pureza”, “ser desonrada” e/ou “ceder ao desejo” são ações que implicam outras posturas para mulheres, no sentido de reaverem uma integridade moralmente aceita, por meio de um casamento, por exemplo, ou a abandonarem de vez, tornando-se prostitutas (SILVA, 2010).

Certo é que a prostituição se revela território do prazer ilegítimo na vida cotidiana, por muitos negada em rodas de diálogos e em discussões acadêmicas, mas presente em poemas e romances ao longo do tempo. Uma realidade mais próxima do que distante, na qual muitos acreditam poder revelar suas fantasias e identidades sexuais, ainda que temporariamente desestruturadas, sem correr o risco de comprometer suas identidades sociais e retornando íntegros ao lar, à família e ao trabalho (LIMA, 2011).

Segundo Meihy (2015), mais de 40 milhões de pessoas estão se prostituindo no mundo. Dessas, 75% são mulheres entre 13 e 25 anos. Mesmo com o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, da profissão de prostitutas ou “profissionais do sexo”, como consta na Classificação Brasileira de Ocupações (BRASIL, 2002), o preconceito e a exclusão estão enraizados na sociedade de forma que a denominação social é utilizada por anos como xingamento para desmoralizar pessoas. Avaliando as expressões “puta” ou os xingamentos “filho da puta” e “vai para a puta que o pariu”, identifica-se que são carregados de preconceito, desrespeito, segregação e outras variadas formas de violência (LIMA, 2011). Ainda segundo a autora, expressões como essas, verbalizadas a priori em momentos de raiva, perpetuam a “redução moral”, ou seja, a minimização de um sujeito para a sobreposição social de outros, mascarada como válvula de escape.

Contrariamente a esta redução, Silva e Capelle (2015) lembram os movimentos feministas e suas influências na busca de direitos até́ então negados às mulheres, de uma maneira geral, e o direito de vivenciar o sexo como um ser biológico, tal como os homens o fazem, por uma dita necessidade, em especial. Essa perspectiva abandona a antiga noção da mulher submissa ao homem, incluindo a maior liberdade quanto à escolha da sexualidade e promovendo a organização das prostitutas como classe.

Em algumas situações bem específicas, tal organização toma contornos glamourosos, como o filme discutido a seguir tenta retratar.

2.3 Sobre o filme Moulin Rouge

“Moulin Rouge: amor em vermelho”, filme dirigido por Baz Luhrmann e lançado em 2001, retrata Montmartre, conhecido bairro boêmio da capital francesa, onde está localizado o lendário e glamouroso cabaré Moulin Rouge. O filme inicia-se quando o jovem escritor, Christian, decide se mudar para a região, desafiando a autoridade do pai. Chegando lá, ele começa a escrever sobre os ideais boêmios de liberdade, verdade, beleza e amor. Em seguida, depara-se com Toulouse Lautrec e seus amigos – Satie, o Argentino inconsciente e o doutor –, que descobrem o seu talento como poeta e decidem usá-lo como peça-chave para conseguir ajuda financeira para empregar na peça Spectacular.

Com o objetivo em mente, eles partem para o famoso e luxuoso clube noturno, Moulin Rouge, planejando um encontro de Christian com a mais bela e requisitada cortesã do bordel, a famosa Satine, para que ela convença Zidler, proprietário do estabelecimento, a aprovar a peça de ideais boêmios. Observe-se o ideário de glamour, distinção, riqueza e sofisticação na cena apreendida na Figura 1.


Figura 1
A cortesã e os sonhos de Moulin Rouge
Fonte: Luhrmann (2001).

Com grande poder de persuasão, Satine e Christian conseguem convencer o dono do bordel e um famoso, rico e influente duque (que estivera apaixonado pela cortesã e pretende investir seu dinheiro em troca da exclusividade da principal estrela) a darem início às obras para transformar o local em um teatro. Então, começam os ensaios e preparativos para o Spectacular.

De forma inesperada, Satine e Christian se apaixonam, um amor condenado desde seu nascimento. Satine se vê obrigada a decidir entre a riqueza, que sempre almejara, e o sentimento, que nunca experimentara. Nos bastidores de um Moulin Rouge em reforma, a peça Spectacular vai ganhando vida e tornando-se cada vez mais um reflexo da história do casal que precisa enfrentar os avanços do duque, que não abdica da estrela e acaba interferindo no enredo da peça e na vida do casal. Apaixonada, ao som de “One day I’ll fly away”, Satine decide ir embora do Moulin Rouge após a apresentação da peça e partir em busca de seu sonho ao lado de Christian. Contudo, o duque descobre o romance do casal e ameaça matar Christian caso Satine não fique com ele na noite da grande estreia.

Além disso, outra cortesã descobre que a grande estrela é portadora de uma grave doença, a tuberculose, típica dos boêmios românticos da época. Para não condenar a vida de Christian, Satine decide acabar de uma vez por todas com o romance dizendo não o amar e haver decidido ficar com o duque e seus diamantes; afinal, custe o que custar, “o show tem que continuar”.

No dia da grande estreia do Spectacular, com o teatro lotado, desenrola-se uma peça cujo desfecho não era o pretendido. Desolado, Christian invade o espetáculo, humilha Satine e diz ter pagado sua prostituta. Nesse momento, ouve-se uma voz dizendo “nada mais importante que amar e ser amado em troca”, palavras que desvelam o verdadeiro sentimento dos dois.

No final apoteótico para o Spectacular, as cortinas fecham-se e, ao som de fervorosos aplausos plateia, Satine vai desfalecendo nos braços de seu amado, causando grande comoção (Figura 2).


Figura 2
“One day I’ll fly away”
Fonte: Luhrmann (2001).

As palavras finais da cortesã são um pedido a Christian: escrever a sua história como forma de estarem para sempre juntos. Um ano se passa, e o poeta finaliza sua derradeira obra aos dizeres de que “esta é uma história de amor. Um amor que viverá para sempre”.

Com esta inspiração cinematográfica e atento ao objetivo da pesquisa, delineou-se uma pesquisa nos seguintes moldes.

3 METODOLOGIA

A abordagem qualitativa foi considerada a mais adequada à compreensão do fenômeno estudado, cujo método consiste em utilizar estratégias de coleta de dados baseadas nas interações sociais (VERGARA, 2009). Quanto aos fins, trata-se de uma pesquisa exploratória (VERGARA, 2009), uma vez identificado um gap de estudos sobre o tema juntamente com o objeto aqui abordado. Quanto aos meios, trata-se de um estudo de caso, por representar uma investigação empírica em profundidade de um indivíduo ou determinado grupo social (CRESWELL, 2007), sendo o caso constituído por um grupo de prostitutas que trabalham na Guaicurus (Belo Horizonte, MG).

Foram abordadas 17 prostitutas, em seus próprios locais de trabalho, onde se iniciaram as entrevistas depois de explicados os critérios sobre confidencialidade dos dados. Os nomes apresentados na análise de dados são seus “nomes de guerra”, todos diferentes de seus nomes de registro oficial e, conforme relatado por elas, mudados periodicamente. A coleta de dados ocorreu entre o segundo semestre de 2016 e o segundo de 2017.

Todas elas foram escolhidas segundo o critério de acessibilidade, após ter sido contatado um total de 35 mulheres. As entrevistadas trabalham em quinze diferentes bordéis da região, algumas trabalhando em mais de um local, mas apenas na Guaicurus. Nas entrevistas, utilizou-se da história oral temática, método que tem sido amplamente considerado para compreender a pluralidade e a conexão das experiências humanas (RITCHIE, 2011; THOMSON, 2007), uma vez que as narrativas pessoais valorizam a singularidade dos sujeitos, produzindo um tipo específico de conhecimento que abarca a diversidade de experiências (ROGALY, 2015). Nesse sentido, mais do que desenvolver metanarrativas sobre o comportamento humano, o ponto central da história oral reside no desejo de compreender a complexidade, as contingências e a agência humana (SLOAN; STAMM, 2010).

Salienta-se que, na história oral temática, parte-se de um assunto específico e preestabelecido (MEIHY, 2002), neste caso, o sentido do trabalho e a construção de identidade das prostitutas. Esses dois temas, com o auxílio de um roteiro previamente planejado, perpassaram as perguntas e o próprio relato de cada uma das mulheres. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra posteriormente, tendo cada entrevista durado aproximadamente três horas. Visto que as entrevistas com cada prostituta podiam ocorrer em mais de um dia, os pesquisadores propunham com antecedência horários e locais (nos quartos dos bordéis) específicos para realizá-las.

Por fim, os dados foram organizados e analisados por meio da Análise do Discurso em sua vertente francesa, a qual relaciona uma perspectiva histórica ao estudo reflexivo dos textos (GARCIA, 2003) com o objetivo de ir além da superficialidade para analisar também o interdito, os subentendidos, os implícitos e silenciamentos (FONSECA-SILVA, 2005). Assim sendo, destacamos alguns pontos principais tanto de identificação quanto de análise que nortearam e compuseram este estudo, a saber: a construção discursiva de personagens (temas e figuras); a análise lexical das narrativas e músicas do filme; aspectos lexicais que apontam personagens, implícitos, explícitos e silenciados nas entrevistas; aspectos interdiscursivos; e os percursos semânticos encontrados a partir do corpus da pesquisa.

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Neste capítulo os principais resultados são apresentados e analisados à luz das proposições da análise francesa do discurso.

4.1 Dos “nomes de guerra” às “batalhas”: as personagens e o enredo

Das entrevistadas, predominam aquelas com faixa etária entre 18 e 29 anos (14 delas), solteiras (15 delas) e naturais de cidades de outros estados brasileiros (16 delas).

Segundo elas, em um “dia bom de serviço”, elas fazem em média de 40 a 55 programas por dia. Delas, 15 possuem como única fonte de renda o trabalho como prostituta, cujo rendimento mensal médio fica em torno de 8 a 10 mil reais, líquido. Um interdiscurso frequente que se percebeu pelos relatos se refere à situação econômica atual do país. As entrevistadas comentam que, dependendo de tal situação, o valor de cada programa oscila para mais ou menos, sendo de 10 a 150 reais cada um, também dependendo: de como percebem o poder aquisitivo do cliente, da aparência (asseio) e até mesmo do dia do mês. Os relatos corroboram a afirmação de Fiske (1992) quanto aos impactos de diversas áreas no trabalho e os contra impactos do trabalho.

Interessante salientar que, assim como no Moulin Rouge, várias das entrevistadas residem (13), mesmo que temporariamente, nos próprios locais onde prestam seus serviços, ou seja, nos quartos dos hotéis de prostituição, como forma de economia financeira e de tempo. As quatro prostitutas que não residiam no local sublinharam o peso psíquico desagradável daquele ambiente.

Não me aceito morando aqui não... esse lugar é muito pesado. Sei que gasto muito com aluguel, mas isso me mantém mais para cima ou menos para baixo. Imagina você morar e trabalhar nisso aqui, esse lugar sujo e carregado, Deus me livre (Gi).

Assim como Satine, várias das entrevistadas justificam seu trabalho em função de uma necessidade maior. No caso da estrela do Moulin Rouge, o sonho era ser uma atriz famosa; já na Guaicurus, os sonhos convergiam para subsistência própria e de seus familiares.

Meu sonho é poder ter uma vida digna, sabe? É poder olhar para meu pai, para minha mãe, que já são mais velhos, e para minha filha, sem a culpa de não ter o que comer, assim como várias vezes a gente já passou. A fome não é algo bom (Samara).

Depois que comecei a me prostituir, meus filhos sempre tiveram o do bom e do melhor, nunca mais passaram falta de nada. Por isso, meu filho, por eles sou capaz de me prostituir para o resto da vida (Carla).

Nesse ponto, os relatos não diferem dos achados de outros estudos no que tange aos motivos e justificativas para ingressar na prostituição (BARROS, 2005; DUARTE, 2009; BARRETO; PRADO, 2010; SILVA et al., 2013; SILVA; CAPELLE, 2014) e essa é uma das principais características comuns, ou seja, prostituição como forma de suprir as necessidades básicas da sobrevivência humana. Entretanto, tal aspecto não é avaliado como em outras atividades laborais, uma vez que as relações deste trabalho estão imbricadas com a cultura, a moral e os costumes dominantes, ou seja, uma cultura patriarcal e preconceituosa. Reporta-se, portanto, às colocações de Barros (2005, p. 12) segundo a qual “dificilmente regras forjadas há séculos sob alicerces religiosos, morais, políticos e filosóficos cederão espaço à perspectiva de a prostituição ser entendida como uma atividade de trabalho como outra qualquer”. Assim, essas mulheres são eternas condenadas à discriminação e ao estigma social, fazendo suas necessidades básicas não serem as mesmas de indivíduos em outras atividades laborais.

Os relatos ainda evidenciam um interdiscurso da fragilidade socioeconômica de uma considerável parcela da população brasileira, permeada por desestrutura familiar, necessidades do básico para a sobrevivência, falta de perspectiva de futuro etc. Associa-se a isso a construção de um discurso marcado pelo “peso” da imoralidade, de uma “sujeira” impregnada que não se limpa “com água e sabão”.

Só estou aqui porque realmente preciso muito. Não é fácil você ser discriminada e rebaixada por causa disso aqui. A prostituição nunca, nunca será um trabalho comum (Renata).

Isso aqui é a pior coisa do mundo, não é trabalho, não é profissão, isso aqui é sobrevivência. A prostituição é a pior coisa do mundo, é pior que matar e traficar. Traficante pelo menos tem fama; a prostituta não, é só difamada (Carol).

Assim, é possível traçar um paralelo entre a realidade e a arte (Moulin Rouge). Mesmo no filme, apesar da grande fama de Satine, pode-se perceber certo aviltamento de sua autoimagem enquanto pessoa; a personagem, por vezes, se sente rebaixada em função de seu ofício. Já no contexto da Guaicurus, tais sentimentos são refletidos e potencializados nos discursos das entrevistadas, nos quais facilmente se identificam sentimentos construídos com base nos estigmas a que estão expostas, muitas vezes verbalizados nos tons de fala e em lágrimas recorrentes durante as entrevistas. Considerando que o ser se constitui e estrutura com base em padrões ditados pela sociedade – como certo ou errado, moral ou imoral – (BROWN, 2015), torna-se evidente que as demonstrações de sofrimento das entrevistadas têm cunho basicamente moral.

Outro interdiscurso recorrente nas entrevistas refere-se ao preconceito e à discriminação, não apenas da sociedade em geral, mas das próprias colegas, que se negam a conviver ou estabelecer laços de amizade com “essas putas daqui” (Ana) fora do espaço de trabalho, assim como se sentem ofendidas por serem chamadas “de puta, de vadia, de piranha” pelos clientes (Tatiana Dalila).

Faço questão de não conviver com essas putas daqui lá fora. Não levo ninguém na minha casa, não faço questão da amizade delas. Lá fora sou uma mulher de respeito, aqui é trabalho (Ana).

Até os que nos frequentam nos discriminam (Michelle).

Tem homem que chega aqui, no meio do programa quer humilhar a gente, rebaixar. Tem uns que faz de maldade, sabe? Chama a gente de puta, de vadia, de piranha... querendo humilhar mesmo (Tatiana Dalila).

Tal aspecto novamente reporta ao filme Moulin Rouge: em várias cenas, não só a personagem principal, mas também as outras cortesãs sofrem preconceitos e humilhações em função de seu ofício. Tal fato torna-se mais evidente durante a apresentação do Spectacular, quando Christian, tomado pelo ódio, joga dinheiro em Satine gritando que está pagando sua prostituta. Para as entrevistadas, cenas como essas são recorrentes, xingamentos e palavras de baixo calão são comumente utilizados para referir-se a elas. O termo mais comum de se ouvir é “puta”, que a própria estrutura lexical remete a um processo histórico e contínuo de desmoralização da mulher prostituta.

Note-se que, mesmo com o reconhecimento formal da profissão de prostituta (BRASIL, 2002), o preconceito e a exclusão estão enraizados na sociedade, de forma que a denominação social é utilizada por anos como xingamento para desmoralizar pessoas e outras formas de violências (LIMA, 2011).

No enredo de suas vidas reais, elas seguem desmoralizadas, invisibilizadas e ocultadas pelos seus comportamentos desviantes, inclusive as que professam religiões conservadoras quanto ao sexo (CAMPOS, 2009). Todavia, questões mais objetivas, como sustentar a família e pagar fiança para tirar o filho da cadeia seriam justificativas para seu “comportamento desviante” (STARK; BAINBRIDGE, 2013). Assim, elas não têm identidades definidas, mas refletem identidades fragmentadas e multifacetadas, que por vezes são utilizadas para se esconderem em personagens que agradam o imaginário masculino, sendo um primeiro passo para isso a troca de seu nome oficial (parte significativa de sua identidade) por “nomes de guerra”, usualmente consistindo em representações que retratam momentos importantes da vida, como por exemplo, a infância ou até mesmo denotam sentimentos e identidades que elas pretendem transmitir (PEREIRA et al., 2016).

Escolhi ‘Bianca’ por que foi o nome de uma professora que marcou muito minha vida. Sempre sonhei ser igual ela era (Bianca).

Meu “nome de guerra” é exatamente o que busco na minha vida, um dia eu chego lá (Vitória).

4.2 Identidades, sentidos e significados de um “ofício errante”

A partir das próprias entrevistas, pôde-se perceber a presença de múltiplas identidades dentre as prostitutas abordadas: estas tendiam no início a ser mais ríspidas em suas colocações, numa postura defensiva e de resistência aos questionamentos realizados; transcorrendo a entrevista, iam se reposicionando e agindo de maneira mais suave e aberta à situação a que estavam sendo expostas. Claramente, esse movimento representa muito do ser/estar prostituta, retratando um comportamento social ao qual estão submetidas em seu cotidiano profissional, onde impera lidar com hostilidade, estigmas e preconceitos.

Ao entrar nos hotéis de prostituição da Guaicurus, nota-se que as portas dos quartos ficam sempre abertas. Algumas prostitutas ali posicionadas negociam os preços e as posições sexuais que realizam. Outras ficam deitadas em suas camas, às vezes em posições sugestivas e provocativas. No horário de trabalho, a maioria das mulheres utiliza somente roupas íntimas, e outras nem roupas usam. O fluxo de homens no interior destes hotéis é intenso, e as aglomerações nas portas também, principalmente nos primeiros horários da manhã, dada a possibilidade de “consumir mercadoria nova”, e ao findar da tarde, por volta das 18 horas, fim do expediente comercial na cidade. Afinal, “a noite é a melhor amiga daqueles que preferem o anonimato. Não são poucos os homens que procuram o trabalho das prostitutas: o início da noite é o momento e a hora oportuna de ‘dar uma passada na zona’ e ‘relaxar os nervos de um dia duro de trabalho’ (BARROS, 2005, p. 3).

Nas portas dos quartos, algumas arriscam sorrir, outras se entortam para mostrar os seios ou os quadris. Como no Moulin Rouge, onde as atrizes-cortesãs entretêm a plateia com seus espetáculos, na Guaicurus as atrizes-prostitutas se “produzem” com perucas, fantasias, maquiagens carregadas ou máscaras sobre a face. Seguem os trechos de alguns discursos das entrevistadas evidenciam tais aspectos (Figura 3).

Esta não sou eu. Esta é uma alegoria de mim mesma (Vitória).

Aqui somos todas atrizes, nossa função é fazer o homem acreditar no que ele quer. Fingimos orgasmos, fingimos que amamos, fingimos que está muito bom quando está péssimo. Faz tudo parte do show (Tatiana Dalila).

É meio que a gente incorporar uma personagem. No meu caso, aqui eu sou uma pessoa e lá fora, mesmo sabendo que eu sou prostituta, eles têm que respeitar, então é mais para o lado do dinheiro mesmo (Lorena).


Figura 3
As “estrelas” da Guaicurus
Fonte: acervo próprio.

Nesse espetáculo cotidiano, a prostituta se torna “uma alegoria” dela mesma (Vitória), uma atriz que “incorpora uma personagem” (Lorena) por entender que “faz tudo parte do show” (Tatiana Dalila). Dentre suas facetas, pode-se citar a de representarem uma mulher com autoestima bem elaborada e pronta para servir. Essa mulher, por vezes, só é atingível por parte da “atriz” que a representa com o auxílio de drogas ilícitas, que porém garantem certo poder de negociação, uma representação de seu(s) personagem(s) e uma garantia de maior retorno financeiro (LIMA, 2011; VANNUCHI, 2010). Notavelmente, as prostitutas entrevistadas enxergam seu trabalho como vazio de sentido e sublinham a questão financeira como o único motivo que as fazem “aguentar” firmes em cena.

Olha, hoje em dia, né, para todo mundo é profissão, ‘pra mim né não’. Profissão, profissão é você ter uma vida em paz, é botar a cabeça no travesseiro, saber que você não vai levantar para ter relação com ninguém, à força ou através do dinheiro (Carol).

Assim, um sentimento de indignidade permeia os quartos, confirmando Lima (2011), e as entrevistadas se sentem enxergadas como mulheres sem valor, demonstrando um pesar por sua própria escolha e intitulando-se como “escória” da sociedade. “Carregam o peso da culpa”, advindo, conforme Souza (2010), de postulado da religião cristã, que marginaliza aquelas que optam por um comportamento desviante da conduta esperada. Lamentavelmente, esta culpa, em casos extremos, é exteriorizada de maneiras radicais, como automutilações físicas (Figura 4).


Figura 4
Mutilações
Fonte: acervo próprio.

Para além do corpo físico, as mutilações simbólicas em vários níveis e a (re)construção do lugar “aceitável” dessas mulheres na sociedade (BOURDIEU, 1999; SILVA, 2010) refletem a pressão psicológica oriunda da tentativa de ocultar ou, pelo menos, atenuar o estigma ao qual estão impostas. Tal pressão tende a levar um indivíduo a quadros de adoecimento e/ou sofrimento (GOFFMAN, 1959).

Outro ponto importante a ser salientado refere-se às identidades dentro do trabalho e fora dele. Assim como ressaltado por Vannuchi (2010), a maioria das entrevistadas esconde dos familiares que são prostitutas, tentando se camuflar em papéis socialmente aceitos de “boas moças”, “mulher de família” e até mesmo “santas”.

Não, eu trabalho como cuidadora de idosos. Eu tenho filhos, né?... e meus filhos não precisam passar por nenhum tipo de discriminação, se eu não tivesse filho eu falaria numa boa porque cada um com a sua vida (Bianca).

Fora daqui não sou isso aqui não, Deus me livre. Sou mulherzinha de igreja virgenzinha (Hellen).

Mais uma vez, a prostituição traz à tona o trabalho (ASHFORTH; KREINER, 1999) que envergonha suas prestadoras e seus respectivos familiares, manchado tanto por uma vertente social, que as invisibiliza socialmente, quanto moral, que as avilta enquanto indivíduos.

Então, eu de manhã toda vez que eu levanto eu falo com Deus para ele me proteger e direcionar as pessoas certas para entrarem aqui no meu quarto. Que Deus me livre e guarde porque, se acontecer alguma coisa aqui dentro, como vai ser a reação da minha família, entendeu?! Se acontecer alguma coisa de ruim aqui (Kamilla).

Ocultar o estigma, portanto, faz parte de sua construção identitária (GOFFMAN, 1959), tendo em vista a “carreira moral” que buscam seguir para alinhar-se enquanto indivíduo às normas sociais. Entrar na vida da prostituição significa, por outro lado, “suspender” a “vida comum”, cotidiana. Os relatos de muitas prostitutas apontam uma intermitência entre o tempo do trabalho e o de “viver”, demarcando que o exercício da prostituição se constitui de entradas e saídas, de um espaço intermediário, um lugar de não envolvimento.

Aqui não é lugar de puta gozar, não, meu filho; aqui é lugar de fazer dinheiro (Fernanda).

Aqui eu estou trabalhando, procuro não me envolver, sabe?! (Malu).

Ao entrar para o “trabalho”, as prostitutas suspendem sua vida social e familiar, dedicando-se unicamente a “fazer dinheiro”, um lugar, portanto, amplamente demarcado pelo controle do tempo (PAIVA et al., 2017) que reforça a associação de tempo a dinheiro (THOMPSON, 1991). Esse “tempo do trabalho” demarca também uma separação entre o tempo de trabalhar para cuidar dos filhos e familiares, para que depois os projetos e sonhos individuais possam ser retomados.

Eu preciso agora cuidar dos meus filhos, até eles crescerem. Depois vou cuidar da minha vida. Estudar e trabalhar no que quero. Quero ser aeromoça (Samara).

Diante desses dados, reporta-se às colocações de Berger e Luckmann (2002), segundo os quais a identidade de um indivíduo é construída considerando a realidade em que se encontra, fragmentando-se a cada suspensão e incorporando outra, como uma atriz que entra no palco e passa a “representar” seu personagem. Essas identidades se sobrepõem e passam a conviver. Assim como nos espetáculos do cabaré parisiense, nos hotéis de batalha da Guaicurus, é como se as histórias individuais fossem um palco, com holofotes e refletores que iluminam suas partes enquanto deixam o resto na escuridão. A tarefa de cada atriz é “limpar” o palco, preparando-o para o consumo visual e intelectual dos espectadores (BAUMAN, 2005). Ao findar seu expediente, elas prostitutas abandonam essa identidade de trabalho e passam a se identificar por meio de outros laços e condições de vida que verdadeiramente têm sentido e significado para elas: mães, filhas, ou outros tipos de profissionais socialmente aceitos como “comuns”.

4.3 Custe o que custar, “o show tem que continuar”

No filme, uma canção chamou a atenção: “The Show Must Go On”, de autoria da banda Queen. Ela ressalta que, mesmo diante da possibilidade de um coração partido, o show deve continuar e nada deve impedi-lo. Portanto, apesar do “coração partido por dentro” como diz a música, a maquiagem e o sorriso devem resplandecer.

O show deve continuar. Por dentro meu coração está se partindo, minha maquiagem está se desfazendo, mas meu sorriso ainda permanece. O que quer que aconteça, eu deixarei tudo à sorte. Uma outra melancolia, um outro romance fracassado, de novo e de novo. Alguém sabe pelo que nós estamos vivendo? (QUEEN, 1991, tradução nossa).

Em analogia com o cotidiano das prostitutas entrevistadas, mesmo diante da discriminação, exclusão social, desprezo, fragmentações e perdas de suas próprias identidades, o que se espera delas é que o show continue (CAMPOS, 2010; LIMA, 2011).

Às vezes, a gente é tratada igual um lixo aqui dentro, cada cliente escroto! Mas eu não choro, não dou esse gostinho para eles. Assim que eles saem eu desabo, choro horrores, fico com uma mistura de ódio e vergonha de mim. Mas não posso sofrer por muito tempo, tempo aqui é dinheiro. Aí me levanto, lavo meu rosto, retoco a maquiagem, abro a porta sorrindo e bora para o próximo (Fernanda).

Conscientes da perda do seu valor feminino (BEAUVOIR, 1970), a melancolia é frequente, mas não há tempo para que o sofrimento seja vivido. Trata-se de uma questão de sobrevivência, com os sentidos, significados e identidades se (des)estruturando em ambientes “apocalípticos”, dado que “as imagens sonhadas sob o terror se tornam então imagens produzidas sobre o terror” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 138).

Interessante salientar que, dada a visão sexualizante de seu trabalho, as profissionais do sexo são vistas por si mesmas como mercadorias, e as mutilações simbólicas que sofrem no corpo e na alma se destinam, principalmente, a sustentar o prazer masculino, independentemente de uma preocupação com o aspecto humano mais geral (Bourdieu, 1999; Campos, 2010; Vannuchi, 2010).

Por fim, preparando para acender todas as luzes deste palco, fechar suas cortinas e dar início aos demais questionamentos e percepções, embasados pelo filme Moulin Rouge, cujo desenrolar do enredo deixa clara a busca de Satine por uma nova realidade, menos dura e cruel, “os contos de fadas vão crescer”. Isso se inicia no andar pela noite, porque Satine não suporta a luz e segue no desejo de viver novamente e poder sonhar. O filme traz o anseio de um dia a cortesã voar para longe, abandonar seu estigma e viver como alguém “sem manchas”, assim como ressaltado na segunda metade de “the show must go on”.

Eu acho que estou aprendendo, eu preciso ser mais caloroso agora. Em breve estarei virando a esquina. Lá fora está amanhecendo, mas dentro da escuridão eu estou esperando para ser livre. O show deve continuar, por dentro meu coração está se partindo, minha maquiagem está se desfazendo, mas meu sorriso ainda permanece. Minha alma é pintada como as asas das borboletas. Contos de fada de ontem vão crescer, mas nunca morrer. Eu posso voar, meus amigos (QUEEN, 1991, tradução nossa).

Os anseios expostos no filme e na canção também podem ser observados nos discursos das entrevistadas, que inclusive, comumente foram levadas pela emoção nos momentos em que expunham sua vontade de sair dali e seguir um caminho menos tortuoso e condenável.

Eu acho que, se a maioria das meninas tivesse uma oportunidade de mudar e ficar certa, seguir o caminho certo, trabalhar, ficar certinha, então a maioria sairia da prostituição e ficaria certa. Eu sou uma (Samara).

O momento mais feliz do meu mês é quando compro minha passagem para voltar para minha cidade, é o momento que eu volto a sorrir. Aí quando vou embora, toda vez que desço essas escadas eu peço desculpas a Deus pelo que estou fazendo. Queria ser um computador sabe? Com o botão de delete, aí quando eu descesse as escadas eu iria apertar ele e apagar tudo o que passei aqui dentro, para assim voltar a viver de novo (Ana).

A percepção do significado social atribuído pelo sujeito a si próprio exerce impacto direto sobre o sentimento de satisfação ou desconforto com o seu trabalho (FISKE, 1992). Considerando o continuum entre passado, presente e futuro das prostitutas participantes desta pesquisa, nota-se a construção de um nexo capaz de identificar não só o sentido que elas atribuem ao trabalho que desenvolvem, mas também os rompimentos diários vistos como necessários para manter a integridade psíquica. Desse modo, elas tomam consciência tanto de si como mercadorias, quanto da estrutura de uma sociedade de classes que marginaliza o feminino, pelo próprio olhar de dentro, nas vozes que se silenciam (MEIHY, 2015).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo contribui para expandir o conhecimento sobre o sentido do trabalho, uma vez que este fenômeno ainda não tem um número expressivo de publicações, sendo grande parte destas baseada em modelos teóricos e metodológicos pouco diversificados (SÁ; LEMOS, 2017). Assim, discutir sentidos do trabalho em profissões/ocupações marginalizadas é um debate necessário, principalmente no contexto brasileiro.

As análises aqui desenvolvidas permitiram identificar um processo fragmentado de construção de sentido do trabalho em função do significado que este assume socialmente; já o significado do trabalho construído coletivamente contribui para expor fissuras e contradições relacionadas à importância que tal trabalho assume para as entrevistadas, desde fonte de sobrevivência (sendo esta sua principal importância, segundo elas) até fonte de sofrimento, principalmente em função do seu peculiar estigma.

Como tal, esse estigma fortalece as mutilações físicas e simbólicas em vários níveis, e a (re)construção do lugar “aceitável” dessas mulheres na sociedade torna-se um processo delicado, sofrido e quase impossível, de um modo muito menos glamouroso que no filme Moulin Rouge. Afinal, as estruturas culturais a que estão sujeitas, no tempo e espaço que lhe são particulares, ou seja, no século XXI e numa região de baixo meretrício, moralmente situada em um espaço conservador, implicam elevadas barreiras para a construção de uma identidade mais consistente e plena.

Além disso, as profissionais ainda têm de lidar com o sofrimento pessoal e social em face de serem “fontes de prazer” e com isso conseguirem o sustento seu e da família. Reside nisso seu próprio prazer, de caráter parcial, já que o prazer de seu próprio corpo foi silenciado em todas as entrevistas. Contraditoriamente, o poder de fazer o outro sentir prazer foi observado em alguns discursos, o que se entende como face a ser aprofundada em estudos futuros, por interferir diretamente no sentido atribuído ao trabalho e na relação deste com a identidade pessoal. Também surgiram como elementos de reflexão, carecendo de maior amparo empírico, a resiliência na prostituição e as relações com valores pessoais em diferentes espaços de trabalho (ruas, casas de shows etc.).

A saída de Satine foi pedir ao amado que lhe eternizasse numa história de amor com final feliz; para as prostitutas entrevistadas na Guaicurus, esse final não é tão sofisticado e parece amparar-se na tênue esperança de um futuro longe da prostituição, mas inviável pelo modo como elas vêm desenhando o significado do seu trabalho. Pois custe o que custar, o “show tem que continuar”.

Por fim, destaca-se como principal dificuldade da pesquisa a coleta de dados com as participantes, já que as entrevistas foram interrompidas em vários momentos pelo público masculino (clientes) que desejavam fazer programa. Entretanto, há de se considerar que, por opção metodológica dos autores, todas as entrevistas foram realizadas nos quartos em que as profissionais prestam seus serviços, dado que aspectos espaciais dos “hotéis de batalha” da Guaicurus seriam importantes em alguns aspectos da proposta do estudo.

Para futuras pesquisas, sugere-se ampliar algumas inquietações levantadas aqui, como por exemplo o papel da resiliência no ser/estar prostituta, o silenciamento do prazer no ofício e o paradoxo do trabalho da prostituição com a religião das profissionais, tendo em vista que esta foi uma temática frequente nos relatos das participantes deste estudo. Sugere-se o desenvolvimento de pesquisas com prostitutas que “batalham” nas ruas, dada a diferenciação do campo no qual o fenômeno ocorre, bem como explorar o sentido do trabalho de outras profissionais marginalizadas que trabalham na mesma zona de prostituição da Guaicurus e que não foram analisadas neste estudo: os travestis.

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