ÉTICA, PRIVACIDADE E CONFIDENCIALIDADE DE INFORMAÇÃO EM SAÚDE: investigando a
ética na sociedade do conhecimento, da informação, da aprendizagem e do controle a
partir de uma Teoriação Polilógica
ETHICS, PRIVACY AND CONFIDENTIALITY OF HEALTH INFORMATION: investigating ethics in
a society of knowledge, information, learning and control from a Polylogical Theoryaction
Dante Augusto Galeffi¹
¹ Doutor em Educação pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA).
E-mail: dgaleffi@uol.com.br
ACESSO ABERTO
Copyright: Esta obra está licenciada com uma
Licença Creative Commons Atribuição 4.0
Internacional.
Conflito de interesses: A autora declara que
não há conflito de interesses.
Financiamento: Não há.
Declaração de Disponibilidade dos dados:
Todos os dados relevantes estão disponíveis
neste artigo.
Recebido em: 01/10/2019.
Revisado em: 20/10/2019.
Aceito em: 31/10/2019.
Como citar este artigo:
GALEFFI, Dante Augusto. Ética, privacidade e
confidencialidade de informação em saúde:
investigando a ética na sociedade do
conhecimento, da informação, da aprendizagem
e do controle a partir de uma Teoriação
Polilógica. Informação em Pauta, Fortaleza, v.
5, n. especial, p. 9-22, março 2020. DOI:
https://doi.org/10.36517/2525-
3468.ip.v5iespecial1.2020.43509.9-22.
RESUMO
A motivação deste artigo/ensaio brotou de um
problema traduzido na questão: Quais são as
éticas dominantes nas relações humanas
mediadas por redes sociais telemáticas?
Intenciona-se apresentar uma perspectiva de
investigação das éticas dominantes em uma
chave filosófica e literária despojada de qualquer
intenção de acabamento ou de convicções
fechadas ao dlogo interrogante. A questão guia
interroga o que se compreende em geral por
ética quando qualquer um fala em ética,
privacidade e confidencialidade de informação
em saúde. Está em questão a construção de uma
nova modelagem ética para a salvaguarda da
privacidade e da confidencialidade de
informação em saúde e em todos os setores da
atividade humana. Esta nova modelagem precisa
incluir a complexidade dos fenômenos naturais e
humanos e ampliar o campo do conhecimento
em sua multiplicidade infinita para que seja
possível educar para uma vida civil em que
todos sejam responsáveis por todos e o respeito
pela vida alheia se torne um princípio ético sem
o qual tudo será apenas controle frio e
manipulação, e todos estarão sujeitos a todo tipo
de ameaças e chantagens, de invasões indevidas
em sua privacidade através dos rastros deixados
na rede. Compreender, entretanto, como hoje
anda a ética no gerenciamento de redes sociais
em saúde é o primeiro passo para se ter em mira
soluções viáveis e seguras que caminhem na
direção de uma aprendizagem ética comum-
pertencente que supere a barbárie atual do
dataísmo ou Religião dos dados.
Palavras-chave: Ética. Privacidade.
Confidencialidade. Informação. Teoriação
Polilógica.
Inf. Pauta Fortaleza, CE
v.5 n. especial
março 2020
ISSN 2525-3468
DOI: 10.36517/2525-3468.ip.v5iespecial 1.2020.43509.9-22
ARTIGO
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
ABSTRACT
The motivation of this article / essay arose from
a problem translated into the question: What are
the dominant ethics in human relations
mediated by telematic social networks? It is
intended to present a research perspective of
the dominant ethics in a philosophical and
literary key stripped of any intention of finishing
or of closed convictions to the interrogating
dialogue. The question guide asks what is
generally understood by ethics when anyone
speaks in ethics, privacy and confidentiality of
health information. It is in question to construct
a new ethical modeling for safeguarding the
privacy and confidentiality of health information
and in all sectors of human activity. This new
modeling must include the complexity of natural
and human phenomena and extend the field of
knowledge in its infinite multiplicity so that it is
possible to educate for a civil life in which
everyone is responsible for all and respect for
the life of others becomes an ethical principle
without which will all be just cold control and
manipulation, and all will be subject to all kinds
of threats and blackmail, from improper
invasions of their privacy through the traces left
on the network. Understanding, however, how
ethics today is in managing social networks in
health is the first step toward envisaging viable
and secure solutions that move toward a
common-ethical learning that overcomes the
current barbarism of Dataism or Data Religion.
Keywords: Ethics. Privacy. Confidentiality.
Information. Theoriaction Polilogical.
1 ABERTURA
Investigar a ética e sua relação com a privacidade e a confidencialidade da
informação em saúde se torna hoje imprescindível para que se tenha em mira as
transformações necessárias para a construção de uma sociedade em rede e
extremamente vulnerável aos interesses de um capitalismo devastador. Mais controle
provoca mais punição, mais punição gera mais violência e institui o estado de terror
como condição natural da vida social e sua produção de valores comportamentais. Uma
questão tensiona as cordas desta exposição investigativa: Quais são as éticas dominantes
nas relações humanas mediadas por redes sociais telemáticas?
Apenas para tensionar a problematização expressa na pergunta anterior, para o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001), o sujeito pós-moderno vive de relações
líquidas, o que caracteriza os enlaces de amor como mero acúmulo de experiências e não
mais se referem à união sólida das pessoas, mas à incerteza e instabilidade instituída na
liquidez dos afetos. Este traço do comportamento geral pós-moderno revela também o
espectro ético das relações interpessoais contemporâneas. A ética encontra-se na
berlinda na sociedade das redes e do “falatório” compulsivo, e mesmo assim nunca se
falou tanto de ética como agora. A ética, entretanto, mereceria uma investigação mais
amante do conhecimento libertador, pois conhecer significa aprender a agir segundo a
necessidade e seu contexto, de modo corresponsável e consciente da consciência e
consciente da inconsciência. Ética necessariamente implica em uma investigação menos
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
11
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
confortável e cheia de linhas de angústia criadora. Conceber a ética na instância da
privacidade, da confidencialidade da informação em saúde requisita uma expansão do
próprio conhecimento ético que se tem diante, porque não está em causa apenas a
descrição dos princípios éticos a seguir, mas a compreensão fenomenológica dos modos
éticos do agir humano nas redes sociais, o que aponta para uma problematização
diagnóstica tendo em vista contribuir para uma compreensão atualizada dos
agenciamentos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e dos Repositórios
Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDCArq), tendo em vista a formulação de diretrizes
para o aprimoramento do SUS e suas implicações éticas com a privacidade,
confidencialidade e informação em saúde. Nesta linha de ação, o que se diz e o que se
faz quando se fala em nome da ética o que dizemos quando falamos em ética?
Querendo ou não, todos estão implicados no esclarecimento desta questão, porque o que
está em jogo não é tanto o controle dos meios telemáticos disponíveis e sua blindagem
contra a invasão da privacidade dos usuários e confidencialidade dos dados, e sim a
evolução da consciência humana por meio de processos aprendentes permanentes,
sobretudo porque o campo da saúde é parte integrante da vida associada e também
corresponsável na gestão da qualidade da vida humana, devendo também manter um
nível de inteligência gerido por humanos e não por máquinas inteligentes inumanas.
2 A INVESTIGAÇÃO ÉTICA ENTRE OS PRECEITOS DISCURSIVOS CRISTALIZADOS E
OBRIGATÓRIOS E OS FLUXOS LÍQUIDOS DAS REDES SOCIAIS MANIPULADAS
PELO GRANDE CAPITAL: ENTRE A CRUZ E A BALA?
Qualquer Sistema de Saúde em rede necessariamente é uma Rede Social mediada
eletronicamente (telematicamente). Conceber a preservação dos dados dos usuários no
âmbito do Sistema Único de Saúde requer sem dúvida uma ampla investigação filosófica
e literária sobre o que significa ética para um sistema deste porte e quais dispositivos
garantem a privacidade e confidencialidade dos dados dos usuários cadastrados na rede.
É preciso saber se a ética aqui não se limita ao formalismo legal e tecnológico e deixa de
lado a dimensão propriamente ética das relações interpessoais. Nesta instância a
palavra ética se confunde com o caráter protocolar dos agenciamentos de controle da
rede, e se torna também expressão de uma automão perdendo a sua dimensão afetiva
e humana. Os operadores e programadores da rede precisam garantir a privacidade e a
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
confidencialidade, mas não são afetados pelos problemas éticos existentes. Cabe-lhes
criar meios de proteção contra invasões e captura de dados armazenados na rede. Então,
em qual nível ético se deve considerar a questão da privacidade e confidencialidade de
informação em saúde no mundo presente da Ética Líquida?
Consideramos importante uma melhor compreensão do substantivo “ética” para
apresentar o deslocamento conceitual intencionado e conectado à uma Teoriação
Polilógica. A ética é, desde os gregos, uma investigação filosófica do “ethos” ou
comportamento habitual dos seres humanos em suas relações interpessoais,
intrapessoais e transpessoais. Trata-se sempre de uma racionalidade examinada e
desdobrada em suas justificativas teóricas, em que muitas vezes a prática pura e simples
é completamente oposta ao plano mental do sentido ético. Ora, toda ética, enquanto
investigação racional dos perceptos, afetos, juízos e crenças humanas tem mais um
caráter diagnóstico do que afirmativo, porque não se trata de dizer o que é ético e o que
não é ético, mas sim do reconhecimento da ação ética, do ser ou não ser ético em sua
práxis humana cotidiana. Para tanto é também preciso parâmetros para a determinação
do estado de ação ética e de sua negação. Mas, como medir racionalmente o que é da
ordem do suprarracional, e não do irracional?
Avaliando bem, a ação ética sempre trás acréscimo de potência e a ação não ética
sempre provoca afetos de diminuição de potência. O problema, entretanto, é que esta
compreensão não se encontra disponibilizada em um plano objetivo, ao modo de objetos
palpáveis, sendo sempre o juízo produzido por alguém e suas circunstâncias. A clareza
alcançada por alguém sobre o verdadeiramente ético é algo incomunicável até que
mereça tradução e reconhecimento discursivo público e seja difundido sem reservas. A
ética neste sentido é o oposto da moral, compreendida como “coerção social” e atuando
como força coletiva inconsciente. A ética como atividade investigativa é criadora e não
tem nada a ver com preceitos de ação que não passam pelo exame criterioso de uma
investigação de traço fenomenológico, mas que não se filia a nenhuma escola de
pensamento e sim postula uma compreensão própria e apropriada do que se investiga e
do que se atribui valor e reconhecimento para a sua ampla difusão pública. Eis, então,
também uma tarefa para o que hoje se pode chamar de Analista Cognitivo, seguindo
algumas linhas de desenvolvimento e de fuga do Doutorado em Difusão do
Conhecimento do qual faço parte como docente/pesquisador. Um Analista Cognitivo
pode sim propor em sua análise do conhecimento e da informação modos diferentes de
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
13
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
olhar, de sentir, de pensar e de agir sobre os “objetos” investigados. Isto porque o fazer
científico também escapa à previsibilidade quando é conduzido por rigoroso processo
de teste e avança além do que convém ao já estabelecido.
A questão também diz respeito ao legado discursivo que se liga à palavra “ética”
nos âmbitos filosófico e científico. Em sentido genérico, ética é a investigação filosófica
acerca dos princípios da ação humana e sua fenomenologia afetiva, com ênfase na
essência das normas, valores, prescrições e práticas que caracterizam qualquer
realidade social. também o sentido mais erudito que se encontra em doutrinas
metafísicas e racionalistas, e se define como o estudo das finalidades últimas, aspirações
e ideais, sejam transcendentes ou imanentes, orientadores da ação humana para o
máximo de sua potência em harmonia, perfectibilidade ou excelência, universalidade,
pressupondo a superação dos desejos e paixões instintuais irrefletidas. Encontra-se
igualmente um sentido pragmático de “ética”, difundido por escolas empiristas,
materialistas e positivistas e outras, sendo o estudo dos fatores concretos determinantes
da conduta humana, tendo em vista a realização de metas práticas e utilitárias no
desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. É igualmente usual o sentido de “ética
como conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral do comportamento do
indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade maior.
Também em suas múltiplas locuções, a palavra “ética” ganha diferentes acentos e
ênfases. Assim, uma “Ética Autônoma” aparece como doutrina ética que afirma o ser
humano como legislador livre e consciente de suas condutas e limites em sua condição
social, não admitindo explicações transcendentes, teológicas e deterministas sobre o ser
humano. O Filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1802) deu a sua fundamental
contribuição à Ética em sua “Crítica da razão prática” (1994), formalizando a existência
de uma “Rao pura prática” com sua liberdade transcendental”, cuja Lei fundamental
se exprime na sentença: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer
sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT, 1994, p.
42). Uma ética formal é definida na formalização dos princípios da vontade humana em
sua estrutura transcendental a priori. Neste âmbito de definição formal da ética a
universalidade legislativa se mostra como “imperativo categórico” na orientação para o
agir ético responsável e consciente. A contrapartida da ética formal é a ética
heterônoma”, segundo a qual as leis éticas imperativas são de origem natural ou divina e
transcendem a livre autodeterminação humana. Nenhum ser humano com suas próprias
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
forças alcança a perfeição divina, que é sempre inalcançável em sua transcendência. Em
contrapartida aparece também uma “ética intelectualista” que em sentido geral se define
como qualquer doutrina derivada da racionalidade moral socrática, em que o
pensamento racional se revela o campo de todo aprimoramento ético possível, em
franca oposição à influência dos sentimentos de piedade e compaixão, considerados de
pouca importância ou mesmo de nenhuma importância na vida moral examinada
racionalmente. Há também os que defendem uma “ética material” como uma teoria
moral fundada em princípios concretos, materiais e empíricos, independente do fato de
responderem a interesses individuais e coletivos (utilitarismo, pragmatismo) ou
finalidades últimas (racionalismo) ou valores próprios (axiologias). Finalmente, para
fechar a série de locuções, a “ética médica”, definida como conjunto de regras de conduta
moral, deontológica e científica dos profissionais de saúde com relação aos
pacientes/clientes.
Todas estas variantes do sentido da ética fazem acentuar a liquidez do
conceito apesar de sua cristalização nos códigos e normas de conduta profissionais. E
isto se deve ao próprio modo de produção de sentido predominante no auge do
capitalismo global integrado, que a tudo reduz a mercadoria e dinheiro, não importando
as consequências de longo prazo na ecologia integrada do planeta. A época atual vacila
entre a irracionalidade prática do capital e o intuito do clamor da inteligência vital que
pressupõe a evolução espiritual humana, não como uma teleologia fechada e previsível,
mas como abertura de possibilidades para um sentido de cuidado que implica em um
encontro incondicional com a inteligência e a sensibilidade do mundo da vida em seu
clamor de mais-vida sem desconhecer a morte e a incontornável transformação de tudo.
As ecologias sustentáveis são incondicionalmente éticas no sentido de ações examinadas
e avaliadas por critérios racionais. Uma racionalidade, entretanto, que não pode se
limitar ao registro do discurso monológico da ciência moderna em sua redução dos
fenômenos às leis da macrofísica. Uma racionalidade que alcança todos os diferentes
registros da experiência espiritual humana. Sim, porque o que importa considerar em
uma ética como caminho investigativo é o próprio campo da experiência moral humana
em sua história. O que significa também enfatizar a importância de se compreender o
desenvolvimento moral dos indivíduos e sociedades humanas na história, como forma
de diagnosticar o tempo presente e suas derivas estranhamente morais e perigosamente
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
15
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
irresponsáveis diante das exigências inalienáveis e duras do mundo da vida em sua
inteligência afetiva e em seu clamor de justiça e equidade.
Outra consideração importante para se perceber melhor o estado líquido da ética
contemporânea é a crescente violência que se espalha por toda parte, o que aponta para
o surgimento de sistemas de poder que ignoram os mínimos princípios de uma
racionalidade democrática partilhada e comum-responsável, impondo formas
polarizadas de pensar e agir, acentuando desigualdade e fortalecendo a injustiça social.
Mas, de onde provém a força que nutre esta violência e esta forma de poder polarizado e
belicoso? Segundo Hannah Arendt (2010, p. 102):
Nem a violência nem o poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação
do processo vital; eles pertencem ao hábito político dos negócios humanos, cuja
qualidade essencialmente humana é garantida pela faculdade do homem para
agir, a habilidade para começar algo novo. E penso que pode ser demonstrado
que nenhuma outra habilidade humana sofreu tanto com o progresso da época
moderna, pois o progresso, como viemos a entende-lo, significa crescimento, o
processo implacável de ser mais e mais, maior e maior. Quanto maior torna-se
um país em termos populacionais, de objetos e de posses, tanto maior sea
necessidade de administração e, com ela, o poder anônimo dos
administradores.
A liquidez ética, então, agora ficou vaporizada e é densa a sua cortina de fuma.
Qual alternativa cabe seguir na administração da coisa pública em saúde? Qual a ética
para a garantia da privacidade, da confidencialidade da informação em saúde? Por que
se mostra insuficiente apenas uma ética prescritiva e protocolar para garantir o sentido
de privacidade e confidencialidade na saúde? Para qual ser humano se faz isto e a partir
de qual projeto de desenvolvimento social e de qual concepção de Estado?
De qualquer modo, a liquidez ética tomou conta de tudo e o sistema de saúde
também sofre seus efeitos. Como é possível valorar o ser humano em sua complexidade
afetiva quando tudo virou dinheiro e o que importa é seguir o ímpeto do sempre mais,
sempre mais”? Como praticar uma ética criadora de igualdade e equidade de direitos
formativos em um regime hegemônico capitalista que perdeu de vista a diferença radical
entre “cuidado” e “exploração irresponsável” dos bens naturais e culturais, materiais e
imateriais?
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
3 QUANDO O QUE SE DIZ NÃO É O QUE SE FAZ COMO CONSIDERAR A ÉTICA COMO O
CAMINHO NECESSÁRIO PARA A REALIZAÇÃO DO BEM COMUM?
É preciso considerar a época em que vivemos para que seja possível avançar no
agenciamento da gestão do SUS e dos Conselhos Nacionais de Saúde na formulação de
políticas públicas para a promoção, prevenção e atenção à saúde dos brasileiros. Isto
significa que de algum modo é preciso ultrapassar o horizonte político dos Estados
Modernos, em que os setores da atividade humana se encontram isolados em seus
regimes semióticos aparentemente distintos, mas que repetem a fragmentação e a
excessiva especialização dos conhecimentos úteis à manutenção econômica da vida
associada. Assim, como um regime burocrático estatal baseado na fragmentação e
isolamento dos campos da experiência humana pode operar em um processo
radicalmente ético e absolutamente inclusivo?
Será que resta seguir adiante com os dispositivos alienantes das grandes
burocracias estatais, ou também é possível projetar outras possibilidades ainda
impensadas? Mas, como escapar da alienação inumana em regimes estatais burocráticos
movidos pelo controle das massas e sem considerar o pleno desenvolvimento humano
em ecologias ambientais, sociais e mentais sustentáveis?
O fato é que quando se diz ética nem sempre se diz altivez perante si mesmo, o
outro e o mundo em uma busca incessante de realizações condizentes com o andar do
tempo interminável para o progressivo caos. O fato de tudo caminhar para sua
transformação infinita pode ser um dos motivos que justificam a persistência humana de
buscar segurança e estabilidade. Sendo um ser para a morte, o humano procura de
todas as maneiras encontrar uma justificativa para a sua existência tão dura e tão
inexplicavelmente violenta. É que a violência espreita e assalta a política humana pela
posse do poder central, e o modelo de centralidade e hierarquia de funções se impõe
como natural e/ou teológico. É mesmo de desesperar pretender justiça plena em um
mundo perpassado pela barbárie em todas as frentes. O que parecia ter acabado, a
tirania e a barbárie dos regimes autoritários e de exceção, hoje reaparece como solução
falaciosa diante do que encontra jeito através do conhecimento distribuído e
partilhado e por meio de uma educação inclusiva e criadora. Entretanto, o que se é
cada vez mais uma distância do afrontamento dos problemas reais dos seres humanos,
pela adoção de soluções técnicas que nada dialogam com o mundo da vida de humanos
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
17
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
concretos e que desconhecem o sentido ético de uma vida humana: o nascimento, o
florescimento e a transformação impassível em ciclos abertos aos eventos, que com as
palavras de Hannah Arendt (2010, p. 22), são, por definição, “ocorrências que
interrompem processos e procedimentos de rotina; apenas em um mundo em que nada
de importante acontece poderia tornar-se real o sonho dos futurologistas”. E hoje os
“futurologistas” indicados são os técnicos operadores que gostariam de modelar um
sistema completamente controlado e controlador, em que cada linha de ação pudesse
ser prevista nos mínimos detalhes. E esta forma de comportamento também aparece
com seu escudo ético. É em nome da ética que todos falam. Eis o contraste entre uma
ética da ação e uma ética da formalização discursiva. Um contraste que requer uma nova
força compreensiva dos acontecimentos humanos, uma força capaz de promover a
aprendizagem de um estado ético em que todos tenham as mesmas condições de
desenvolvimento e em que a diversidade e a diferença sejam o sinal da maior potência
humana para a sua benquerença incondicional.
O que acontece é que, na perspectiva das relações líquidas a distinção entre uma
ética criadora e uma ética que atua no campo psicológico da “coerção social” perde a sua
importância, porque a vigência é a do discurso persuasivo, em que o convencimento
forma os blocos de representações da verdade objetiva que serão utilizados como
sinalética para guiar autômatos. Esta constatação é mesmo muito desconcertante
porque mostra o abismo existente entre as formalizações coercitivas da moralidade e os
atos livres do agir ético em suas derivas criadoras de abundância comumente partilhada.
Ética sem partilha e encontro é regime discursivo coercitivo implicando em relações
interpessoais desiguais e hierarquizadas por relações de força imperial.
E entre o que se diz nos tratados de moral e o que se faz na vida prática pode
ser investigado quando se retorna às coisas mesmas segundo o modo como constituem
os atos intencionais humanos, sejam eles conscientes ou inconscientes. Conceber a ética
nos agenciamentos do SUS enquanto rede social implica em uma compreensão do ser
humano para além do que se considera natural, porque o sentimento de amor a si
mesmo e ao próximo consiste em uma conquista do espírito humano criador em sua
perene luta contra o desaparecimento de tudo e o esquecimento inevitável de todo ídolo,
de toda imagem, de toda representação da matéria-energia construída.
De qualquer modo é preciso ir direto ao núcleo de nossa questão guia porque fica
aparente como os diversos regimes nominais de ética são modo de dizer dissociados do
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
modo da ação propriamente livre. E uma ação livre não se encontra fragmentada em
pontos de vista particulares e age sempre de modo inteligente, afetivo e inventivo.
Assim, quando dizemos “ética” sempre compreendemos algo dado como juízo de valor,
em grau maior ou menor não importa. E porque o ser humano se encontra jogado
existencialmente no mundo dado, até que cada singularidade não encontre em si mesmo
o seu próprio caminho de cura, se encontra inevitavelmente no mundo das opiniões e
dos juízos impróprios, guiados sempre pelo sentimento de “coerção social” que é movido
pelo medo irrefletido. Dentro desta consideração aparece a compreensão dos
dispositivos de controle de um Estado burocrático democrático como a garantia de sua
sobrevivência como máquina abstrata”, não cabendo em seus procedimentos
ultrapassar o metron da formalização. Nesta instância de realidade instituída a ética
propagada é um conjunto de normas que exercem a mesma função de coerção social”.
Neste sentido, estaríamos falando de uma ética que se confunde com uma moral
normativa indiscutível, o que passa por cima dos atos concretos realizados por seres
humanos vivos.
Portanto, se podemos falar de ética no âmbito da privacidade e confidencialidade
das informações em saúde, é importante distinguir entre uma “ética normativa” e uma
Ética como investigação interminável do alcance de uma vida singular vivida com
sabedoria, o que significa a fundamental abertura para uma vida com sentido e cheia de
promessas e utopias. É também importante destacar como a consciência ética própria e
apropriada só encontra razão na imanência de cada singularidade vivente e suas
circunstâncias, não sendo possível mensurar este acontecimento e nem o explicar
matematicamente. A força ética não é movida por dispositivos formais que atuam como
atratores gravitacionais de controle da força e se impondo coercitivamente. A força ética
é o âmbito da liberdade criadora sem culpa e sem medo. Medo e culpa movem a alma
cativa de suas ilusões de dependência e irresponsabilidade diante de seus atos. Não
controle na ação ética e sim entrega e encontro. Ora, mas como trazer a ética assim
concebida para o âmbito em que tudo é impessoal, tudo é objetivamente formalizado,
em que o Estado é a modelização da coerção social, é controle das massas, é
centralizador e inumano uma grande máquina com cérebro eletrônico e sem espírito
em seu luzir telemático?
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
19
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
4 A PERSPECTIVA DA TEORIAÇÃO POLILÓGICA NO AGENCIAMENTO DE UMA
COMPREENSÃO ÉTICA QUE POSSA CONTRIBUIR COM A EVOLUÇÃO DO ESTADO
EM SEUS DISPOSITIVOS DE SERVIÇO AO CIDADÃO
Incluo intencionalmente a Teoriação Polilógica no interior do discurso, buscando
com isso uma via de acesso a um novo sentido ético no agenciamento da privacidade e
confidencialidade da informação em saúde. Pelo desenvolvimento investigativo até aqui
traçado fica em destaque a diferença entre uma ética como ação criadora e a ética
limitada aos dispositivos de coerção social. E se mostra evidente como em um Estado
disciplinar burocrático se torna impossível incorporar as variações intermináveis do
comportamento humano além do impessoal e genérico, supostamente objetivo em sua
transcendência. Como, então, falar em ética sem a experiência criadora das
possibilidades de realização plena inerentes ao projeto humano? Isto pode indicar como
os seres humanos e sua humanidade são criadores de valores que podem ser
reconhecidos por seres humanos. É claro que não se deve negar que os dispositivos de
controle de um Estado são imprescindíveis para o estabelecimento de uma normalidade
controlada. A questão não é esta e sim a da possibilidade de uma modelagem de
dispositivos estatais de controle que incorporem em seus algoritmos as variações
complexas do comportamento humano em suas possibilidades. O sentido aqui não é
apenas o controle e coerção social e sim a prevenção contra a redução do humano à
quantificação estatística e a dados frios. Mas isto requer um movimento de expano do
conhecimento em suas diversas frentes e em suas múltiplas ecologias, o que requisita
um projeto novo de educação para possibilitar aos seres humanos um acesso qualificado
ao mundo da informação, do conhecimento, da aprendizagem e do controle.
Em uma perspectiva das “máquinas abstratas” estatais é estranho provocar na
direção do pleno desenvolvimento espiritual como tarefa de todos em relação a todos.
Somente um Estado com outra modelagem de inteligência coletiva poderia suportar
tamanha variação de complexidade em sua gestão burocrática. E de verdade, não
acredito que isto seja possível dadas as condições espirituais presentes dos atores
sociais em destaque. Tudo parece caminhar para o inevitável “ponto de explosão” pelo
excesso de maximização dos modos de produção capitalista do planeta. Sim, também
existem as linhas de fuga alternativas e os ambientes de preservação rigorosa em todo o
planeta. Entretanto, do ponto de vista social os desequilíbrios são de longe muito mais
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
devastadores e fatais, e as diferenças entre ricos e pobres é tão grande que até parece
que se vive em planetas diferentes, quando todos são parte viva de um único planeta
com seus recursos finitos.
Isso chama a atenção para o fato de que o nosso país com toda a sua vastidão é
extremamente desigual na distribuição social de seus recursos econômicos. O Estado
brasileiro, então, age como qualquer outro sistema burocrático estatal do mundo,
criando dispositivos de compensação social para suprir as carências do povo
desfavorecido. Aqui se mostra também a ilusão de uma igualdade social garantida na
Constituição vigente, assim como a excessiva dispersão da informação que é
encapsulada por setores e sofre da síndrome da incomunicabilidade sistemática do
poder central. Revelar ao povo desinstruído e sem formação intelectual aderente ao
desenvolvimento econômico e social eqnime e comum-responsável as artimanhas
da máquina central é um erro imperdoável para a sua sobrevida como dispositivo de
controle social pela dependência afetiva e vital da maioria da população que mal tem
para comer e poder viver com a dignidade sem a qual qualquer ser humano” se torna
“ser desumano”, ser-interrompido”, “ser-não”, “não-ser”. E o que mais nesta
sociedade desigual é o “quase-ser” desprivilegiado que pela sua condição precária, pode
esperar com a santa paciência do humilde, pode fazer longas filas e morrer no meio da
multidão de desassistidos por um sistema que garante um atendimento igual para todos
em suas normas éticas. As contradições propriamente éticas se mostram de modo
desconfortável e por isso é também preciso reconhecer a dialógica despolarizante de
uma proposição que sempre inclui um terceiro termo, e nunca duvida da
incomensurabilidade das relações humanas fundadas no sentimento do cuidado triético
e sua ação efetiva: cuidado de si, cuidado do outro, cuidado do ambiente vital. Neste
caso, é a Teoriação Polilógica que nos instrui a projetar possibilidades impensadas e com
isso provocar outros caminhos possíveis para se imaginar um plano paralelo de gestão
de dados de cidadãos que aponte outros campos de informação e se conecte em uma
rede cada vez mais complexa, mas que pode ser gerenciada de modo extremamente
simples, desde que as metas a alcançar no aprimoramento da privacidade e
confidencialidade das informações em saúde se relacionem à uma política maior de um
Estado que existe para servir o seu povo, e não o contrário.
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
21
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
5 INCONCLUSÕES IMPORTANTES
Levando em consideração que sem utopias o ser humano não passa de uma falta
irreparável, é possível crer na construção de uma sociedade que eduque o seu cidadão
para a partilha do bem comum, através do seu trabalho e da sua singularidade única. Os
agenciamentos de controle dos dados pessoais de usuários em qualquer rede social
estão sujeitos às invasões das “aves de rapinas digitais” dos dados de uma rede, e isto
para atender a todo tipo de fim, como vender dados pessoais a empresas, fornecer
informações ao sistema de inteligência policial, ou outro qualquer motivo. E muitas
vezes isto acontece sem que o sistema de segurança advirta a invasão de alguma “ave de
rapina digital”, como também pode ocorrer por alguma forma de desvio técnico para fins
pessoais. Eis um poder dos programadores que está além do domínio do Controle
Central da “máquina abstrata”, apesar de se poder em algum momento capturar os
rastros deixados por qualquer operação que se faça na rede, e é o que acontece sempre
sem que a grande massa de usuária tenha ciência de que os seus dados estão sendo
“sugados” e manipulados para interesses que mesmo o grande capital sabe explicar e
que escapam de todo sentido ético mais profundo e vital. Como, então, solucionar o
problema ético maior da desigualdade social e contribuir para a justa partilha e
compartilhamento dos bens materiais e imateriais, em um momento em que as redes
sociais estatais parecem estar perdendo a atualização da história líquida em uma
velocidade assustadora? O que será de um país governado por um pai castrador e
engendrador de violência e polarização, e que acha que deve prevalecer o seu
entendimento das coisas de modo indiscutível pelo uso da coerção social militar,
negando por ação o espírito democrático pluralista e pautado nos Direitos Universais da
Pessoa Humana? Qual será a regência das redes sociais do Estado brasileiro em
governos comprometidos com interesses que ferem o espírito democrático da
Constituição Federal? Como garantir justiça e equilíbrio para todos sem exceção e não
apenas para os “novos fardados” sem o uso da força e sem violência?
É longo o caminho que temos pela frente, sobretudo porque há uma enorme lacuna
do Estado brasileiro em relação à atualização de seus sistemas de informação e suas
redes sociais ativas. Hoje a imagem da Torre de Babel para representar a dispersão dos
sistemas de informação nacional é atual e condizente com os acontecimentos, apesar da
Galeffi | Ética, privacidade e confidencialidade de informação em saúde
Inf. Pauta, Fortaleza, CE, v. 5, n. especial, mar. 2020 | ISSN 2525-3468
grande diferença do tempo bíblico para o nosso em que são muitas as torres de Babel e
são muitas babeis. Ou seja, a confusão e a complicação são muito maiores hoje.
Isso enfatiza como muito a ser construído para uma melhor compreensão da
influência das Redes Sociais telemáticas na mudança de comportamento da grande
maioria, e a ocasião marcada pela multiplicidade de visões sobre o tema proposto pode
de algum modo revelar linhas de ação que contribuam para a evolução ética do uso das
TIC e dos RDCArq. Claro, não está nas mãos de ninguém em particular o que é da ordem
da complexidade e da emergência de um Todo que não é a simples soma de suas partes.
Esta emergência maior é o que precisa ser descrita e traduzida para a sua plena difusão
social pública para todos.
É com esse espírito de um olhar novo para um mundo novo e pleno de novas
possibilidades que considero fundamental o exercício de um “pensamento divergente”,
que é um pensamento interrogante e questionador do que se apresenta como “verdade
da coerção social” e utiliza o pathos do medo e da insegurança afetiva para montar
legiões de servidores-inumanos. E o mais bizarro é que muitos humanos acreditam no
inumano como solução final. É mesmo uma questão de crença. Mas enquanto
horizonte de novas possibilidades o ser humano não pode ser considerado concluído em
suas peripécias transformativas. É uma esperança a que ainda nos projeta futuro nas
cercanias do amor que a tudo reúne no sem-fundamento e faz tudo dançar nos vórtices
pulsantes do tempo e nas superfícies de seus planos de imanência. E mesmo assim, “as
aves de rapina digitais” não param de nos roubar os dados em que nos tornamos na
sociedade fluída dos dados. O que fazer quando tudo parece ser contra o ético vigor da
partilha de tudo para todos os viventes? Ainda uma revolução molecular em curso e fora
do controle da razão calculadora.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. São Paulo: Zahar, 2004.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1994.