TRAMAS DO SENTIDO: cultura, representações sociais, informação e leitura em
uma abordagem crítica
WEBS OF MEANING: culture, social representations, information and reading in a
critical approach
Ismael Lopes Mendonça 1
Ligia Maria Moreira Dumont 2
¹ Doutorando em Ciência da Informação pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestre em Ciência da Informação pela
Universidade Federal do Ceará (UFC).
E-mail: ismaelmendonca@gmail.com
2 Doutora em Comunicação pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IBICT), com
pós-doutorado pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris. Professora titular da
Escola de Ciência da Informação da Universidade
Federal de Minas Gerais (ECI/UFMG).
E-mail: dumont@eci.ufmg.br
ACESSO ABERTO
Copyright: Esta obra está licenciada com uma
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Internacional.
Conflito de interesses: Os autores declaram
que não há conflito de interesses.
Financiamento: Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
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neste artigo.
Recebido em: 23 maio 2023.
Aceito em: 17 out. 2023.
Publicado em: 18 out. 2023.
Como citar este artigo:
MENDONÇA, Ismael Lopes; DUMONT, Ligia
Maria Moreira. Tramas do sentido: cultura,
representações sociais, informação e leitura em
uma abordagem crítica. Informação em Pauta,
Fortaleza, v. 8, p. 1-18, 2023. DOI:
10.36517/2525-3468.ip.v8i0.2023.89237.1-18.
RESUMO
Objetiva refletir a forma social como os sentidos
podem ser produzidos, propondo diálogo entre o
conceito estrutural de cultura, a Teoria das
Representações Sociais, a perspectiva
antropológica da informação e o conceito de
leitura como apropriação de sentidos. Analisa a
natureza intersubjetiva, contextual e ideológica
presente nas operações de sentido, a saber: nos
simbolismos culturais, nas representações
sociais, na informação e na leitura. Evidencia a
problemática do poder inserido nos referidos
fenômenos, bem como a dinâmica de sentidos
mobilizada em favor do protagonismo social.
Considera finalmente a abordagem crítica como
fundamental para os estudos da Ciência da
Informação, defendendo o posicionamento ético
com o qual a área pode se engajar em prol da
dignidade humana e do exercício da
coletividade.
Palavras-chave: contextos sociais estruturas;
cultura relações de sentido; informação social;
leitura e apropriação da informação; Teoria das
Representações Sociais.
Fortaleza, CE
v. 8
2023
ISSN 2525-3468
DOI: 10.36517/2525-3468.ip.v8i0.2023.89237.1-18
ARTIGO
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ABSTRACT
This article was proposed to reflect the social
way in which meanings can be produced,
proposing a dialogue between the structural
concept of culture, the Theory of Social
Representations, the anthropological
perspective of information and the concept of
reading as appropriation of meanings. It
analyzes the intersubjective, contextual and
ideological nature present in the operations of
meaning, namely: in cultural symbolisms, in
social representations, in information and in
reading. It highlights the issue of power inserted
in the aforementioned phenomena, as well as
the dynamics of meanings mobilized in favor of
social protagonism. Finally, it considers the
critical approach as fundamental for the studies
of Information Science, defending the ethical
position with which the area can engage in favor
of human dignity and the exercise of collectivity.
Keywords: social contexts - structures; culture -
relationships of meaning; social information;
reading and appropriation of information;
Theory of Social Representations.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo tensionar a forma social como os sentidos podem
ser produzidos, tendo como referência o conceito estrutural de cultura (Thompson,
2011), a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 2015b), a perspectiva
antropológica da informação (Capurro, 2003, 2014) e a leitura como apropriação de
sentidos (Chartier, 1991, 2001, 2003). Apesar destes conceitos serem provenientes de
campos disciplinares específicos, parte-se do pressuposto de que é possível aproximá-
los, ao se considerar como característica comum o fato de se referirem a ações
significantes que acontecem no jogo das experiências coletivas. Toma-se essa
característica vinculada aos fundamentos de cada conceito para constituir a liga e o
dialogismo necessários entre eles, oferecendo destaque para os contextos de ocorrência
da experiência social e significante, uma vez que são os contextos que promovem as
operações de sentido, ao mesmo tempo que condicionam tais operações, podendo
reduzi-las a estratégias de poder codificadas e disseminadas socialmente.
De natureza teórica e bibliográfica, este estudo está inserido no âmbito de uma
pesquisa de doutoramento pertencente ao Programa de Pós-graduação em Ciência da
Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGCI/UFMG), constituindo-se
como um recorte do aporte teórico da pesquisa que, em linhas gerais, busca
compreender como um grupo de pessoas camponesas interage com as representações
mediadas pela editoria de reportagens especiais de um jornal regional. Assim, este
artigo está organizado de maneira a analisar o modo como as relações de poder
participam das produções sociais de sentido, abordando cada conceito cultura,
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representações sociais, informação e leitura de maneira complementar e dialógica. Nas
considerações finais, é enfatizada a maneira crítica como as tramas sociais do sentido
participam da problemática do poder, defendendo o posicionamento ético com o qual a
Ciência da Informação pode se engajar em prol da dignidade humana e da coletividade.
2 CULTURA: TERRENO SOCIAL DAS OPERAÇÕES DE SENTIDO
Para iniciar a reflexão sobre a forma como os sentidos podem ser socialmente
produzidos, optou-se pela introdução da ideia de cultura. E diante dos vários conceitos
historicamente formados sobre cultura (Bauman, 2012; Eagleton, 2011; Thompson,
2011), selecionou-se a concepção estrutural desenvolvida por Thompson (2011), que
destaca a preocupação com os contextos e processos socialmente estruturados, nos
quais as formas simbólicas estão inseridas” (Thompson, 2011, p. 182). Este termo,
“forma simbólica”, é utilizado pelo autor para denominar qualquer construção humana
de cunho cultural, mediadora de sentidos. São as construções simbólicas que, na visão
do autor, acontecem atreladas a circunstâncias e disparidades presentes no meio social e
que marcam o modo como os sentidos são produzidos e compartilhados entre os
sujeitos. Em vista disso, a concepção estrutural de cultura vincula tais formas simbólicas
às relações de força implícita e explicitamente atuantes nos diferentes contextos,
fazendo referência às maneiras ou intencionalidades pelas quais os sentidos podem ser
conduzidos. Por consequência, o conceito expõe a face ideológica das operações
culturais de sentido, no que diz respeito a como as formas simbólicas podem ser
mobilizadas para exercer poder e manter determinada relação dominante.
De matriz antropológica, ao mesmo tempo em que a concepção de Thompson
(2011) se apoia na semiótica cultural de Geertz (2015) em que a cultura é entendida
como teias de significados urdidos cotidianamente para ordenar modos de vida ,
percebe-se o movimento do autor em considerar as estratégias sociais de poder como
algo inserido nos processos constitutivos e interpretativos da cultura, realçando a não
isenção das práticas de sentido. Thompson (2011) acrescenta, portanto, uma dimensão
sociológica à raiz antropológica da ideia de cultura e, com isso, realça o aspecto crítico,
ideologicamente aguerrido, das formas simbólicas, em que os sentidos são socialmente
negociados ou confrontados nos fluxos da interação entre a produção simbólica e a sua
recepção, consumo ou apropriação. Nas palavras do autor:
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A concepção estrutural da cultura é tanto uma alternativa à concepção
simbólica [de Geertz], como uma modificação dela, isto é, uma maneira de
modificar a concepção simbólica, levando em conta os contextos e processos
socialmente estruturados (Thompson, 2011, p. 182).
Além de intencionais, ou seja, expressam-se como objetos de vontades, tendo em
vista a pretensa geração de efeitos, as formas simbólicas apreendidas pela concepção
estrutural de cultura o convencionais, estruturais, referenciais e contextuais. Fruto de
acordos ou regras por vezes mutáveis e nem sempre conscientes, desde gramáticas
formais até relações corriqueiras, as formas simbólicas requerem, segundo Thompson
(2011), algum tipo de convenção para significarem, pois:
[...] fazem parte do conhecimento tácito que os indivíduos empregam no curso
de suas vidas cotidianas, criando, constantemente, expressões significativas e
dando sentido às expressões criadas por outros (Thompson, 2011, p. 186).
No âmbito das convenções que atuam projetando o complexo horizonte das
operações de sentido, a inteligibilidade das formas simbólicas também acontece graças à
dimensão estrutural, que essas formas são como códigos que podem ser lidos,
traduzidos ou analisados de maneira sistemática, evidenciando o entorno que as articula
e os elementos da composição que as conduzem à interpretação. Assim, a mensagem
resultante de uma forma simbólica depende da relação estabelecida, mas nunca
exaurida, entre os componentes do símbolo e seu ecossistema sociocultural. Thompson
(2011) amplia a característica estrutural das formas simbólicas, ao afirmar que essas:
[...] não são apenas concatenações de elementos e suas inter-relações: o
também, tipicamente, representações de algo, apresentam ou retratam alguma
coisa, dizem algo sobre alguma coisa (Thompson, 2011, p. 189).
Ao esclarecer isso, Thompson (2011) tanto abre precedente para as
manifestações que acontecem no campo do cotidiano, ou seja, para aquelas de natureza
inusitada, criativa, livre da formalidade gramatical e analítica, como introduz o aspecto
qualitativo da referência nas formas simbólicas. Assim, ao evocar a função referencial, o
autor ressalta o comportamento representacional das formas simbólicas, pois estas
estão a falar de algo ou alguém ou sobre algo ou alguém , de maneira contingente, ou
seja, condicionada à situação espaço-temporal, que também é de natureza social. Com
isso, podendo se referir a um objeto ou sujeito, ou ainda a um grupo de sujeitos, todos
específicos ou não, a função referencial está preservada na medida em que as formas
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simbólicas são direcionadas para comunicar algo, mesmo que de modo vago,
generalizado ou negociado. Além disso, conforme o autor:
Ao destacar o aspecto referencial das formas simbólicas, desejo chamar a
atenção não apenas para as maneiras como as figuras ou expressões fazem
referência ou representam algum objeto, indivíduo ou situação, mas também
para as maneiras pelas quais, tendo feito referência ou representado algum
objeto, as formas simbólicas tipicamente dizem algo sobre ele, isto é, afirmam
ou declaram, projetam ou retratam (Thompson, 2011, p. 191).
Pela citação acima, percebe-se que a dinâmica de falar de ou sobre evidencia uma
porção estética relacionada a como essa “fala” acontece, ou seja, à maneira material com
que a forma simbólica está a referenciar algo ou alguém. Com base em Thompson
(2011), esse como falar também pode ser interpretado como um conteúdo significante
capaz de indiciar contextos de produção e de circulação. São, por exemplo, os sinais e
vestígios fazendo aqui uma referência a Ginzburg (2007) identificáveis
materialmente nas formas simbólicas e que comunicam nuances, facetas, origens, enfim,
realidades socioculturais. A dimensão estética e relacional de como falar é, então,
significante e está potencialmente carregada de intencionalidades, notadamente quando
acontece vinculada às estratégicas acionadas por um emissor que visa interagir e gerar
efeitos. Tendo em vista que toda essa caracterização das formas simbólicas diz respeito
à concepção estrutural de cultura, que é uma concepção crítica, pode-se inferir que a
estratégia de como falar ou seja, a estética da representação materialmente articulada
pode estar ligada às relações de poder, agindo como construto dessas, pois representar
pode implicar em exercer pressão ou força contra o representado, criando uma ideia ou
imagem simplificada sobre ele.
O aspecto ideológico das representações, em suas relações sociais de poder, será
continuado na próxima seção, cabendo por hora tecer mais algumas linhas na reflexão
de como Thompson (2011) caracteriza os contextos sociais e que impacto estes exercem
nas formas simbólicas e, por consequência, nas operações de sentido. Para o autor, os
contextos são espaços socialmente formados, estruturados e datados, isto é, demarcados
historicamente. As formas simbólicas, ao estarem inseridas em contextos e os
indiciarem, tanto agem como “expressões de um sujeito”, como se manifestam como:
[...] expressões para um sujeito (ou para sujeitos), [pois] são, geralmente,
recebidas e interpretadas por indivíduos que estão também situados dentro de
contextos sócio-históricos específicos e dotados de rios tipos de recursos
(Thompson, 2011, p. 193).
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Tais recursos são aquilo que, simbólica e materialmente, capacita os sujeitos ao
jogo da interação, em que situações de conflito e de negociação são vivenciadas, já que as
formas simbólicas não apenas são compartilhadas, mas “valorizadas e avaliadas,
aplaudidas e contestadas pelos indivíduos que as produzem e recebem” (Thompson,
2011, p. 193). Portanto, as estruturas que compõem os contextos são diversas e
assimétricas, segundo Thompson (2011), o que reflete no modo desigual como estes
capacitam os sujeitos, privilegiando uns em detrimento de outros e permitindo que
formas simbólicas circulem reproduzindo esta condição.
No desnivelamento contextual, o poder entendido como “a capacidade de agir
na busca de seus próprios objetivos e interesses” (Thompson, 2011, p. 199) é exercido
de maneira particular, refletindo as diferenças e seus processos agônicos de sentido,
que nem todos os sujeitos dispõem das mesmas condições de intervenção na realidade
em que vivem. Conforme Thompson (2011) continua, quando existe uma assimetria
sistemática nas relações de poder, fica configurada uma situação de dominação social,
em que são excluídos aqueles sujeitos que não possuem os mesmos recursos ou acessos
reservados e conservados pelo grupo dos privilegiados.
Como as formas simbólicas medeiam operações de sentido complexas por
intermédio da cultura e como a cultura se apresenta como um tear socialmente crítico
ao promover relações significantes , produzir e se apropriar de formas simbólicas são
modos de exercer poder, o que reforça o que há pouco foi dito sobre o aspecto ideológico
das representações articuladas no jogo da interação social. Partindo desse mote, por
assim dizer, sociológico e não somente antropológico de cultura, a próxima seção
está reservada a discutir, por via de outros autores e teoria, sobre a dimensão
representacional das formas simbólicas e o recrudescimento dessas nas relações
cotidianas de poder.
3 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: RELAÇÕES DE PODER EM EVIDÊNCIA
Para compreender o modo como as formas simbólicas atuam como fenômenos
representacionais nas operações cotidianas de sentido, sem negligenciar a condição
desigual presente na dimensão social, a Teoria das Representações Sociais, de Moscovici
(2015b), oferece subsídio analítico importante por considerar que tais operações são
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germinadas de maneira atravessada pelas relações contextuais de poder que marcam os
sujeitos em suas elaborações simbólicas. Para Moscovici (2015b), não existe separação
entre indivíduo e social ou entre singularidade e coletividade, mas uma mistura, tendo
em vista que a realidade humana pode ser interpretada como uma construção social e
que os sujeitos, por estarem inseridos nessa realidade, recebem dela múltiplos
condicionamentos que afetam as maneiras de interagir e de representar que são a base
da construção da realidade em que vivem. Assim, a Teoria das Representações Sociais
oferece uma espécie de “raios X” das operações de sentido, ressaltando os aspectos
gregário e ideológico provenientes do jogo da interação social, em que as formas
simbólicas são compartilhadas e negociadas.
A inserção social garante que as representações não sejam arbitrárias nem
neutras. De acordo com Moscovici (2015b), as construções simbólicas atuam como
pensamentos sociais ou saberes práticos que interligam sujeitos e contextos de maneira
dialógica e dialética, pois a interação significante acontece não somente por cooperação;
ela inclui disputas de sentido em torno de definir algo comum, um esforço, por vezes,
resultante de operações de força, pois, como dito, representar pode envolver pressão
contra o representado, exercida na medida em que o representado é objetivado por
quem realiza a representação. Com isso, as representações sociais adquirem a
característica da não isenção, porque podem afetar sujeitos e realidades que são
configurados por um modo típico de pensar sobre eles ou de efetuar poder sobre eles.
Não à toa, “as pessoas são reclassificadas, desclassificadas ou super classificadas”, como
afirma Moscovici (2015a, p. 25). O sujeito constrói, na sua relação com o mundo, um
novo mundo de significados”, completa Jovchelovitch (2013, p. 66), interlocutora desta
teoria, para quem as representações se comportam como “pedaços de realidade social
mobilizados [...] para dar sentido e forma às circunstâncias nas quais eles [os sujeitos] se
encontram” (Jovchelovitch, 2013, p. 66).
Nas ações de representar, Moscovici (2015b) descreve dois mecanismos basilares
que atuam na subjetividade ordenada pelos contextos: a ancoragem e a objetivação.
Ambas trabalham a fim de transformar o não familiar em familiar uma relação
convencionada e, ao mesmo tempo, prescrita pela experiência social do sujeito que
realiza a representação. Assim, as representações sociais seguem “um modelo de
determinado tipo, distinto e partilhado por um grupo de pessoas” (Moscovici, 2015b, p.
34), mas também a “combinação de uma estrutura que está presente antes mesmo que
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nós comecemos a pensar e [...] que decreta o que deve ser pensado” (Moscovici, 2015b,
p. 36). Isso acontece porque, como aceito por Thompson (2011), o aspecto convencional
das formas simbólicas nem sempre é evidente aos participantes da interação, devido à
possibilidade que eles têm de assimilar a ordem social e de naturalizar ordenações,
reproduzindo-as, inclusive, de maneira não consciente.
“A tensão básica entre o familiar e o não familiar está sempre estabelecida, em
nossos universos consensuais, em favor do primeiro”, diz Moscovici (2015b, p. 58), ao
que completa:
[...] as representações que nós fabricamos [...] são sempre o resultado de um
esforço constante de tornar comum e real algo que é incomum (não familiar),
ou que nos um sentimento de não familiaridade. [...] Depois de uma série de
ajustamentos, o que estava longe, parece ao alcance de nossa mão; o que
parecia abstrato, torna-se concreto e quase normal (Moscovici, 2015b, p. 58).
Conforme Moscovici (2015b), o não familiar é fixado pelo mecanismo da
ancoragem no sistema de categorias ou saberes práticos advindos da experiência social,
enquanto o artifício da objetivação materializa abstrações a partir do conjunto de
padrões estocados na memória, resultando em uma imagem socialmente reconhecível
ao que antes parecia estranho ao sujeito representante. É por meio desses mecanismos,
que são simultâneos e quase instantâneos, que coisas e pessoas são classificadas ao
serem representadas, transformando o diferente naquilo que é julgado como apropriado
por quem produz a representação. Ora, trata-se não apenas de uma operação subjetiva,
mas intersubjetiva, pois, ao ser processado pelos filtros da familiaridade instituída, o não
familiar é substituído por uma forma simbólica que, longe de ser neutra, reproduz o
modus operandi social que lhe configurou, contribuindo na estabilização das relações de
poder que definem, regulam ou estruturam esse modus operandi.
É por isso que “classificar [representar, produzir formas simbólicas] é uma
operação inocente no plano intelectual, mas perigosa no plano social” (Moscovici, 2015a,
p. 24). Porque quem classifica exerce algum tipo de pressão ou força contra quem é
classificado, podendo reduzi-lo com base em “um dos paradigmas estocados em nossa
memória” (Moscovici, 2015b, p. 63). Nas ações de classificação, quanto mais as
representações são legitimadas socialmente, mais fortalecidos ficam os paradigmas que
as germinaram, estabilizando o processo representacional e marcando sujeitos que,
pautados pelo mesmo processo, podem chegar ao ponto de rejeitar ou combater
qualquer outra representação possível. Como consequência, preconceitos e estereótipos
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são reforçados, banalizando e excluindo o outro (Jodelet, 2014). Portanto, nas ações de
representação, os sujeitos se valem de consensos e juízos tanto quanto reproduzem
consensos e juízos nas articulações simbólicas, o que pode resultar, em grau último, no
esvaziamento crítico pela trivialização das estratégias da dominação social.
Toda verdade autoevidente, toda taxonomia, toda referência dentro do mundo,
representa um conjunto cristalizado de significâncias e tacitamente aceita
nomes [ancoragens, classificações, objetivações]; seu silêncio é precisamente o
que garante sua importante função representativa: expressar primeiro a
imagem e depois o conceito, como realidade (Moscovici, 2015b, p. 77).
Assim, coadunado ao que foi refletido na seção anterior sobre a função
referencial das formas simbólicas, em que falar de ou sobre evoca uma dimensão estética
expressa em como falar que também é ética, por envolver a consciência ligada ao
impacto desta “fala” nada ingênua , estabelecer familiaridades nas operações de sentido
implica em exercer algum tipo de poder, pressão ou força contra algo ou alguém
sentença que pode ser ampliada para: exercer dominação sobre algo ou alguém,
levando-se em conta a natureza ideológica das representações excludentes. Vale lembrar
que, para Thompson (2011), a situação da dominação por via das formas simbólicas é
factível no universo dos contextos sociais; e as formas simbólicas manifestam caráter
ideológico quando o sentido mediado serve para estabelecer e sustentar relações de
dominação” (Thompson, 2011, p. 76), que, por sua vez, acontecem:
[...] quando relações estabelecidas de poder são “sistematicamente
assimétricas”, isto é, quando grupos particulares de agentes possuem poder de
uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a
outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a
qual tal exclusão é levada a efeito (Thompson, 2011, p. 80).
A visão crítica sobre as operações sociais de sentido em que os sujeitos são
ativos nas construções simbólicas e, ao mesmo tempo, passivos quando absorvidos pelos
condicionamentos oriundos do jogo da dominação orquestrada , possui relevância na
finalidade deste artigo, que se localiza no campo disciplinar da Ciência da Informação.
Em vista disso, convém agora que o fenômeno informacional também seja tensionado,
buscando aproximá-lo da problemática do poder aqui objetivada.
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4 INFORMAR E SER INFORMADO: DINÂMICAS SOCIAIS DE SENTIDO
Nesta seção, optou-se pela abordagem de Capurro (2003, 2014) e de Capurro e
Hjørland (2007) para refletir sobre o fenômeno informacional de maneira concatenada
às relações estruturais da cultura, bem como às dinâmicas representacionais do poder,
direcionando o discurso para o que estes autores intitulam como conceito antropológico
de informação. Esse conceito está ancorado na atual fase paradigmática do campo, em
que a informação se constitui por processos hermenêuticos atrelados a situações
pragmáticas (Capurro, 2003). Sendo assim, como assinalam Martins (2015) e Perdigão
(2021), o fenômeno informacional se assemelha à ideia de forma simbólica de Thompson
(2011), ao revelar uma dimensão representacional aberta às múltiplas apreensões
advindas do jogo da interação social, que molda a interface material da informação,
podendo incidir ainda nas maneiras como os sujeitos interagem com a informação por
exemplo, em como a interpretam ou com qual finalidade se utilizam dela.
Articulada com contextos, a informação se apresenta incumbida das dinâmicas
que mantêm “fluido o mundo das convenções e fixações [...], como também nos
permitem gerar a capacidade de perguntar pelo que não sabemos a partir do que cremos
que sabemos” (Capurro, 2003, p. 5). Com isso, o fenômeno informacional tanto promove
a transitoriedade das relações de poder, como pode estar a serviço da perpetuação de
perspectivas culturais e de estratégias dominantes, o que caracteriza a informação de
viés antropológico ou a informação como forma simbólica como complexa e instável,
firmada no fluxo das relações. Não por acaso, Capurro (2014) equivale a informação à
categoria das mensagens trocadas entre sujeitos sociais, justamente por apresentar
natureza significante e intersubjetiva. Portanto, ao estar inserida na trama do social, a
informação participa dos meandros pelos quais os sujeitos constroem, compartilham e
negociam compreensões de si e de seu entorno, mediando sentidos que, socialmente,
tanto têm poder para objetivar, como são passíveis de sofrer objetivações.
Essa dialética se justifica porque a informação acontece envolvida com as
operações sociais de sentido, constituindo-se como meio e fim pelos quais estas circulam
e estão a gerar efeitos. Historicamente, o fenômeno informacional tem sido vinculado a
duas instâncias representacionais, a saber: uma de ordem tangível ou objetiva e outra
intangível ou simbólica, que revezam forças de acordo com os movimentos
paradigmáticos do conhecimento institucionalizado. Nos termos de Capurro (2014), tais
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instâncias se referem, respectivamente, aos conceitos gregos eidos (ideia) e morp
(forma), ambos situados nas práticas interagentes, com suas operações de sentido. Além
disso, segundo Capurro e Hjørland (2007, p. 155), proveniente do latim informatio, o
termo informação significa simultaneamente ato de moldar a mente e o ato de
comunicar conhecimento”, estando o sufixo in a fortalecer este “ato de dar forma a
alguma coisa” (Capurro; Hjørland, 2007, p. 156). Assim, a informação compreende uma
ação interativa e interferente direcionada a algo ou alguém, ou contra algo ou alguém, a
depender da intencionalidade e do contexto da relação, o que submete o fenômeno às
irregularidades presentes nos contextos sociais, bem como à problemática do poder.
Nas operações informacionais, vale ressaltar que existe espaço para a diversidade
e, com ela, para os contragolpes significantes que reordenam a ação e seus efeitos uma
relação comum à dinâmica das formas simbólicas. Pois, conforme Thompson (2011),
existem apreensões provenientes da recepção que interferem nas estratégias de sentido.
No tocante à ideologia, Thompson (2011, p. 91) cita as formas simbólicas
contestatórias”, que são as formas insipientes de crítica mobilizadas pelo dominado
contra o regime ao qual está inserido. No caso da teoria de Moscovici (2015b), para além
das elaborações discriminatórias consideradas na seção anterior, as representações
sociais visam o estar em comunidade, a alteridade e os gestos de solidariedade, tornando
possível transgredir a lógica excludente quando o dominado consegue ancorar e
objetivar sentidos a partir de sua perspectiva de mundo, de seu contexto de vida e
atuação. Com isso, a despeito das diferenças contextuais e dos laços de dominação, é
possível haver lugar para a reelaboração simbólica e informacional, que prioriza o
pondo de vista do dominado, abrindo brechas significantes no tecido social e ideológico
para a constituição de espaços democráticos, socialmente libertários.
Retomando Capurro (2014), o fenômeno informacional é afetado não apenas
pelas atribuições do sujeito emissor, mas também pelas elaborações hermenêuticas de
quem recebe a mensagem, promovendo a dinamicidade com a qual as ões de informar
e de ser informado acontecem. Esta informação se como comunicação, e as
identidades assumidas pelos sujeitos emissores e receptores variam conforme o jogo da
interação, flexibilizando papéis e alargando o campo fértil dos sentidos. Por isso é que
esse tipo de informação pode ser interpretado como “uma categoria antropológica que
diz respeito ao fenômeno de mensagens humanas” (Capurro; Hjørland, 2007, p. 161),
cujos sentidos são elaborados e reelaborados mediante o curso da interação e dos
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contextos que essa interação abrange. Portanto, o fenômeno informacional está à mercê
das pressões e impressões que o meio social lhe causa; tanto pode cooperar com a
manutenção de determinado status quo social, como permite o devir interpretante da
recepção em sua simbólica libertária. Essa proposta será discutida na próxima seção,
dedicada à leitura uma ação capaz de promover a dinamização dos sentidos pelo
protagonismo do sujeito leitor.
5 LEITURA: AÇÃO DINAMIZANTE NAS OPERAÇÕES DE SENTIDO
Atribui-se aos teóricos da Universidade de Constança, notadamente a Hans Jauss
e a Wolfgang Iser, a mudança paradigmática acontecida no campo dos estudos literários
que, na década de 1960, deslocou a importância tradicionalmente dada à escrita e à
figura do autor para a ação leitora e para o sujeito leitor. Interessado na recepção dos
textos literários, Jauss (1979) foi o responsável por sistematizar um método
hermenêutico centrado na experiência leitora a estética da recepção , de maneira que
a obra deixaria de ser considerada como uma estrutura de sentido único, para ser
interpretada como algo aberto à exploração interpretante do leitor. Quanto a Iser
(1979), a sua contribuição se pela criação de um modelo explicativo para a interação
texto-leitor, baseado na psicologia comportamental, em que a estrutura do texto
literário, por possuir lacunas semânticas propositalmente deixadas pelo autor, oferece
oportunidades para que o leitor projete sentidos. Na perspectiva destes estudos, a obra
adquire significado pela ação interferente do leitor, que interage com a estrutura textual
e colabora na construção dos efeitos.
Apesar destas teorias serem emblemáticas na condução dos estudos focados na
experiência leitora, Lima (1979) tece críticas sobre o enfoque que dão ao perfil
idealizado de leitura e de leitor. De acordo com este autor, tanto Jauss (1979) como Iser
(1979) valorizam o tipo de leitura e de leitor metódicos, eruditos, fazendo com que a
pretensa ruptura na hegemonia textual não atinja resultado prático, já que a ação leitora
continuaria circunscrita à autoridade intelectual representada na produção literária.
Dito isso, em vista da proposta anunciada de refletir a leitura como ação dinamizadora
de sentidos e promotora do social, é mister considerar uma abordagem que favoreça
esse fenômeno de modo contextualmente gregário e, portanto, não excludente: como
uma prática cultural ancorada na realidade cotidiana de pessoas comuns.
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Nesse desafio, tem-se como pertinente a perspectiva de Freire (1983), que
trabalhou a leitura no campo da Educação como uma ação inserida nas relações
cotidianas de seus educandos. Para este autor, assim como a educação, a leitura é uma
ação sociopolítica engajada nos contextos de vida e de atuação dos sujeitos, em que se
reconhecem as discrepâncias de poder e se posiciona a favor do protagonismo social.
Conforme Freire (1983, p. 22), o ato de ler acontece precedido pela experiência cultural
de mundo e não à margem dela, mediando “uma certa forma de ‘escrevê-lo’ ou de
‘reescrevê-lo’ [o mundo], quer dizer, de transformá-lo [social e politicamente] através de
nossa prática consciente”. É por reconhecer que “as palavras do Povo [são] grávidas de
mundo” (Freire, 1983, p. 23), ou seja, são formas simbólicas ancoradas e objetivadas em
modos de vida comuns, que Freire (1983) contribui com a formação crítica de seus
educandos, cuja base está na leitura enquanto ação contra-hegemônica.
Outro autor a colaborar com a abordagem crítica envolvendo o fenômeno da
leitura é Chartier (1991, 1996, 1999, 2001, 2003), especialmente ao refletir sobre a
experiência social da apropriação. Segundo Chartier (1991), a leitura não é uma ação
passiva nem abstrata, pois envolve a produção de sentidos. Essa produção advém do
jogo da negociação simbólica protagonizada pelo leitor enquanto sujeito social que, ao
ter contato como a materialidade do texto no momento da leitura, constrói
representações a partir dessa experiência significante. Conforme Chartier (1991), a
materialidade do texto diz respeito aos simbolismos codificados editorialmente que,
assim como o sujeito leitor, também possui natureza sócio-histórica, cultural. Além de
estar inserida nos contextos editoriais e não apenas nos da escrita, como defendiam os
teóricos de Constança , a materialidade do texto medeia a intenção de conduzir o leitor
a uma leitura implícita (Chartier, 1996), isto é, a um modo predefinido de acessar e de
compreender o texto, o que reforçaria a relação dominante representada pela
autoridade tradicionalmente atribuída ao texto, subjugando, então, o leitor e sua leitura.
Enquanto ser social, participante de uma comunidade cultural que lhe fornece
“normas, regras, convenções e códigos de leitura próprios” (Chartier, 2001, p. 32), o
leitor não somente o de tipo erudito, mas também o sujeito comum, cotidiano
consegue desafiar os direcionamentos materializados pelas decisões editoriais,
apreendendo sentidos não previstos nem prescritos por elas. Ao agir assim, o leitor
impõe a sua autoridade sobre o poder empreendido no texto, fazendo com que a leitura
não seja “somente uma operação abstrata de intelecção”, mas uma forma de por [sic]
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em jogo o corpo, [...] inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro” (Chartier,
1991, p. 181). Em outras palavras, a leitura se torna uma singularidade atravessada pela
dimensão social do sujeito leitor (Chartier, 1999), conduzida por seus contextos,
motivações e maneiras de estabelecer significados ao que lê (Dumont, 2020).
É neste ato criativo e transgressor onde reside a noção de apropriação atrelada à
prática leitora significante. De acordo com Chartier (2003, p. 152), apropriar-se é
“utilizar os objetos ou as normas que circulam em toda a sociedade” (Chartier, 2003, p.
152) de modo a corromper “pensamentos universalistas” (Chartier, 2003, p. 153),
desarticulando “mecanismos da dominação simbólica” por via dos múltiplos “empregos,
usos, maneiras de fazer seu o que é imposto” (Chartier, 2003, p. 153). Nesses termos, a
apropriação não é uma ação particular ou individual, mas social; mobiliza e é mobilizada
pelo sujeito e seu entorno, pois o leitor reelabora o discurso codificado pelo autor, bem
como a intencionalidade materializada pelo editor, podendo gerar sentidos não
autorizados nem premeditados. Por isso, afirma Chartier (2001, p. 116): “apropriação é,
na ordem do discurso, a vontade por parte de uma comunidade, qualquer que seja a sua
natureza, de estabelecer um monopólio sobre a formação e circulação de discursos”.
Ao fazer “algo com o que se recebe” (Chartier, 2001, p. 116), o leitor age ancorado
em seu modo de vida, objetivando sentidos que poderão corromper condicionamentos e
prescrições mediadas pelo texto e, com isso, interferir na relação tencionada
editorialmente, em seus laços simbólicos de poder que, em alguns casos, comportam-se
como dominantes ou excludentes. Pela Teoria das Representações Sociais, em diálogo
com Chartier (1991, 2001, 2003), pode-se, então, inferir que a apropriação pela leitura
atua como uma forma dos sujeitos estabelecerem familiaridades ao texto, produzido
relações significantes sentidos, formas simbólicas articuladas segundo as estruturas
sociais internalizadas por eles, isto é, por seus condicionamentos culturais. Nessa
perspectiva, se o texto medeia informação ou se medeia a intenção ou necessidade de
informar alguém , para que esta informação se efetive e seja apropriada como tal, ela
deve convergir com os contextos socioculturais do sujeito que, conforme Moscovici
(2015b), interage com os mecanismos pelos quais as representações são germinadas.
Diante disso, vale lembrar o que afirma Capurro (2014) acerca da relação postal
manifesta pela informação, cujos efeitos são reelaborados à semelhança de mensagens
trocadas entre sujeitos sociais que se comunicam. Assim, o comportamento instável e
coletivamente aguerrido da informação mediada encontra diálogo com os pressupostos
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representacionais da leitura, notadamente na esfera da apropriação, tal como pensada
por Chartier (1991, 2001, 2003). No âmbito deste estudo, Certeau (2014) também
oferece subsídio ao conceber a leitura como uma tática pela qual os sujeitos burlam a
lógica da assimilação informacional premeditada e codificada na escrita, aventurando-se
em apreensões improváveis de sentido por via da leitura entendida como prática
subversiva. Essa leitura se comporta como uma ação transitória e oportunista, que
integra o conjunto de práticas que pessoas comuns, em tese dominadas, fazem uso para
transgredir ordenações disciplinares a elas impostas.
Pelas palavras deste autor: “a atividade leitora apresenta [...] todos os traços de
uma produção silenciosa”, em que o leitor “insinua as astúcias do prazer e de uma
reapropriação no texto do outro”, culminando em um “mundo diferente (o do leitor)
[que] se introduz no lugar do [domínio do] autor” (Certeau, 2014, p. 47-48). E como
acrescenta mais à frente, em sua obra: ler é peregrinar por um sistema imposto”
(Certeau, 2014, p. 240), um sistema que não tem evidentemente como base a
produtividade do leitor, mas a instituição social que sobredetermina a sua relação com o
texto” (Certeau, 2014, p. 243). Nesse ambiente socialmente hostil e dominante, tal como
descrito por Certeau (2014), a leitura, enquanto prática subversiva à dominação, atua
como uma das maneiras pelas quais os sujeitos dão corpo ao seu protagonismo, como
um lugar onde se entra e de onde se sai à vontade [...], numa existência submetida à
transparência tecnocrática e àquela luz implacável que [...] materializa o inferno da
alienação social” (Certeau, 2014, p. 245).
As apropriações do leitor ou sua “corrupção” advinda do ato de transgredir a
lógica e a autoridade socialmente representadas no e pelo texto , comportam-se ainda
como uma forma simbólica ideologicamente contestatória (Thompson, 2011). Não à toa,
a leitura é caracterizada por Certeau (2014) como um exemplar das práticas cotidianas:
produz efeitos, porém de maneira vigiada, limitada. Ao analisar a dimensão ideológica
transmitida pelos meios de comunicação de massa, por exemplo, Thompson (2011)
parte de uma proposta tríplice que considera não apenas os contextos da produção e a
estruturação simbólica das mensagens produzidas, mas também os contextos da
recepção, isto é, o ambiente social onde acontece a apropriação, que potencialmente
oferece meios para minar ou destruir relações de dominação, dadas as especificidades
dos contextos sócio-históricos em que os sujeitos, leitores ou receptores, estão inseridos.
Mais uma vez, tem-se a possibilidade da leitura, enquanto ação produtora de sentidos,
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atuar não somente como escape às dominações sociais configuradas, mas como um
contraponto delas, em que informações são apropriadas, realidades são postas para
interagir, e sujeitos desenvolvem protagonismo para redefinirem o cotidiano.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme refletido neste artigo, percebe-se que as tramas sociais pelas quais os
sentidos são produzidos e mediados envolvem não necessariamente cooperações, mas
interesses que são disputados de forma estratégica e, ao mesmo tempo, desigual. Isso
por considerar que a realidade humana e suas operações significantes acontecem em
ambientes onde o poder circula de modo irregular, envolvendo estruturas socialmente
privilegiadas e aquelas que não gozam dos mesmos privilégios. O desnivelamento nas
práticas de poder é a base da simbólica que intenta representar e informar de maneira a
manter situações dominantes e que, quando sistematizadas, essas relações subjugam
sujeitos, convertendo-os em objetivações que interferem na identidade deles, em seus
saberes, histórias e culturas, o que pode culminar no silenciamento dessas pessoas.
Mesmo em contextos aparentemente não tão extremos, pode-se dizer que as
relações de poder estão representadas por nuances referentes ao cotidiano assimétrico
das produções de sentido. Seja por via de um veículo de comunicação que massifica
notícias distorcidas, seja por ambientes que classificam certas leituras e leitores como
inferiores, seja ainda por meio da contação de anedotas que difamam alguém, tem-se em
cena alguma relação de força em operação e, com ela, disparidades sendo reforçadas,
por mais banal que a relação pareça ser. Logo, vê-se como fundamental a abordagem
crítica quanto às produções de sentido, reconhecendo que estas surgem da interação de
sujeitos socialmente localizados e, portanto, inseridos em dinâmicas de poder.
Criticidade exercida com ética, mobilizadora de ações que se posicionem contra
sistemas que, de maneira explícita, promovem dominação social, tal como acontece com
grandes corporações que, detentoras dos meios cnicos e capitais, optam por agravar
situações de desigualdade e exploração. Criticidade, enfim, que promova criatividade e
liberdade, estas não entendidas como falácias advindas do discurso radical, neoliberal,
tão em voga hoje, que manipula seus sentidos para desvirtuar propósitos e exercer
controle. Ao contrário, a criatividade e a liberdade devem acontecer a serviço da
transformação social, em favor da dignidade humana e do bem-estar coletivo. É nestes
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termos que os estudos realizados no campo da Ciência da Informação podem se engajar
junto ao desenvolvimento sustentável, promovendo conhecimentos e aproximando
universos sociais díspares, pondo-os para dialogar.
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