Fortaleza, CE

v.5, n.2

jul./dez. 2020

ISSN 2525-3468

DOI: https://doi.org/10.36517/2525-3468.ip.v5i2.2020.60816.178-200




ARTIGO




UMA PROPOSTA DE ARRANJO DOCUMENTAL PARA O ACERVO PESSOAL DE PEDRO MOACIR MAIA: “RETRATOS” A PARTIR DE UMA MEMÓRIA INDIVIDUAL


A DOCUMENTAL ARRANGEMENT FOR PEDRO MOACIR MAIA'S PERSONAL COLLECTION: “PICTURES” FROM AN INDIVIDUAL MEMORY



Letícia Oliveira de Araújo¹

Gillian Leandro de Queiroga Lima²





¹ Graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e graduada em Arquivologia pela UFBA. Bibliotecária do Mosteiro de São Bento da Bahia.



E-mail: leticia14.araujo@gmail.com



² Doutor em Difusão do Conhecimento pelo Programa de Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC/UFBA). Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).



E-mail: gillianqueiroga@gmail.com







ACESSO ABERTO



Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.



Conflito de interesses: Os autores declaram que não há conflito de interesses.



Financiamento: Não há.



Declaração de Disponibilidade dos dados: Todos os dados relevantes estão disponíveis neste artigo.



Recebido em: 18/09/2020.

Aceito em: 14/11/2020.

Revisado em: 12/12/2020.







Como citar este artigo:



ARAÚJO, Letícia Oliveira de; LIMA, Gillian Leandro de Queiroga. Uma proposta de arranjo documental para o acervo pessoal de Pedro Moacir Maia: “retratos” a partir de uma memória individual. Informação em Pauta, Fortaleza, v. 5, n. 2, p. 178-200, jul./dez. 2020. DOI: https://doi.org/10.36517/2525-3468.ip.v5i2.2020.60816.178-200.



RESUMO

Este artigo possui como objetivo propor um quadro de arranjo com base nos procedimentos, técnicas e teorias arquivísticas para potencializar o processo de construção da memória individual do acervo pessoal de Pedro Moacir. Para isto, utilizou-se das teorias arquivísticas como parâmetro para investigação do objeto de pesquisa. Nesse sentido, a metodologia do trabalho consiste em uma pesquisa descritiva. Quanto aos procedimentos metodológicos, o estudo caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica, pois foi realizado o levantamento de publicações para embasar o trabalho; é uma pesquisa documental, por trabalhar os documentos do acervo pessoal de Pedro Moacir; e uma pesquisa de campo, porque o processo ocorreu no acervo do titular. Com base nos resultados do trabalho, constatou-se que a identificação das espécies e tipologias do conjunto documental contribui para o desenvolvimento do arranjo, além de revelar as atividades do titular do acervo pessoal, colaborando, assim, para a disseminação da memória. Ademais, a apresentação do quadro de arranjo representa a organização do acervo e a relação de hierarquia entre os grupos existentes, de maneira que a aplicação de normas e teorias arquivísticas garantem a preservação da memória do titular, pois, para lembrar, faz-se necessário saber o que existe em um arquivo pessoal. Ao final do trabalho, averiguou-se que, embora a teoria e as normas da Arquivologia sejam necessárias para o tratamento documental, ainda existe um olhar arquivístico voltado para os arquivos administrativos, dificultando a aplicação das teorias e normas nos arquivos pessoais.

Palavras-chave: Arquivo Pessoal. Pedro Moacir Maia. Memória – preservação. Teorias arquivísticas. Normas – Arquivologia.



ABSTRACT

This article aims to propose an arrangement framework based on archival procedures, techniques and theories to enhance the building process of the individual memory of Pedro Moacir's personal collection. For this, archival theories were used as a parameter for the research object investigation. In this sense, the methodology consists of a descriptive research. As for the methodological procedures, the study is characterized as a bibliographic research, because a survey of publication was carried out to support the work; it is a documentary research as it works with documents from Pedro Moacir's personal collection; and it is a field research, since the process took place in the holder's collection. Based on the work's results, it was found that the identification of the documentary set's species and typologies contributes to the arrangement's development, in addition to revealing the activities of the holder of the personal collection, thus collaborating for the dissemination of his memory. In addition, the arrangement chart's presentation represents the collection's organization and the hierarchical relationship between the existing groups, so that the application of archival standards and theories guarantees the preservation of the holder's memory, because, to remember, it is necessary to know what is in a personal file. At the end of the work, is was found that, although theory and norms of Archivology are necessary for documental treatment, there is still an archival look focused on administrative archives, making it difficult to apply theories and norms in personal archives.

Keywords: Personal Archives. Pedro Moacir Maia. Memory – preservation. Archival theories. Norms – Archival Science.




1 INTRODUÇÃO


Este artigo possui como objetivo propor um quadro de arranjo com base nos procedimentos, técnicas e teorias arquivísticas para potencializar o processo de construção da memória individual do acervo pessoal de Pedro Maocir. Pedro Moacir Maia foi professor da Universidade Federal da Bahia, diretor do Museu de Arte Sacra, editor da Edição Dinamene1 e ocupou a cadeira de número sete da Academia de Letras da Bahia. O seu acervo é salvaguardado pelo Mosteiro de São Bento da Bahia, instituição religiosa responsável por um acervo numeroso e rico, subdividido em acervo histórico, acervo de obras raras e acervo de referência, onde se encontra o acervo pessoal de Pedro Moacir.

Em 2007, ainda em vida, Pedro Moacir doou ao Mosteiro de São Bento da Bahia a primeira parte do seu acervo, composto por uma numerosa e rica biblioteca de aproximadamente 8 mil itens, que foram organizados em um espaço físico reservado para o acervo bibliográfico do titular. Durante esse processo, foram identificados uma quantidade significativa de documentos, dentre eles: cartas, minutas, recortes de jornal e rascunhos de sua produção intelectual.

De acordo com Hobbs (2016), a história do tratamento dos documentos pessoais é abordada por autores como Graeme Powell, Terry Cook, Chris Hurley, Adrian Cunningham e Richchard Cox. Dentre os teóricos mencionados, Cox aponta que os arquivos pessoais são semelhantes aos outros tipos de arquivo, pois, assim como os documentos institucionais, registram ações e fatos, mas, no caso desses conjuntos documentais está relacionado a vida de seus titulares – na esfera profissional e pessoal. Os arquivos pessoais são formados e preservados de acordo com os desejos e vontades de seus proprietários, e assim controlados por meio de práticas de eliminação, definição de formas de organização até serem, em alguns casos, doados ou adquiridos por uma instituição jurídica que venha a se responsabilizar pela sua custódia (HOBBS, 2016).

Vale destacar que as práticas de organização do acervo nem sempre possibilitam a manutenção de sua ordem original, uma vez que a utilização dos documentos sem a adoção de critérios pode ocasionar a perda da organicidade de determinados grupos documentais. A exemplo, durante o processo de identificação documental do acervo de Pedro Moacir, constatou-se que uma parte do acervo estava originalmente organizada em dossiês (85 pastas) enquanto que, em outra parte (24 pastas), os documentos não apresentavam identificação. Com base na organização deixada pelo titular do acervo, foi realizado o tratamento documental de 1092 pastas e de parte da documentação que não possuía qualquer tipo de acondicionamento.


Diante das espécies e tipologias documentais existentes no acervo documental, constatou-se que o tratamento arquivístico seria o método mais adequado para a organização do acervo recebido, uma vez que a Arquivologia trabalha com o vínculo documental, isto é, com a relação que existe entre os documentos de um determinado conjunto documental. O estudo dos acervos pessoais é significativo para a Arquivologia, dada a sua importância, pois estes acervos trazem consigo elementos da memória individual do proprietário e da memória coletiva, onde os papéis reunidos refletem características culturais da sociedade em que os itens documentais foram produzidos e reunidos. Nessa perspectiva, é importante ressaltar que Pedro Moacir Maia desenvolveu trabalhos significativos para a sociedade da Bahia, sendo possível, a partir do seu acervo pessoal, analisar características da sociedade baiana nas décadas de 1950 a 2007.

Até a primeira metade do século XX, os acervos pessoais eram de responsabilidade das bibliotecas, de maneira que os papéis eram organizados como materiais especiais ou até mesmo lotados em coleções de livros raros, a depender do tipo de acervo, porém essa mentalidade foi se transformado ao longo do tempo (HOBBS, 2016). Os acervos pessoais são postos em uma condição antagônica, uma vez que a teoria arquivística está atrelada primeiramente aos documentos governamentais e de organizações. Por isso, os fundos pessoais estão, ao mesmo tempo, dentro e fora da teoria arquivística (HOBBS, 2016). Por este motivo, evidencia-se, neste trabalho, a relevância do estudo da temática dos arquivos pessoais como forma de contribuir para o aprofundamento e discussão das teorias e práticas arquivísticas.

Quanto aos procedimentos metodológicos, esta pesquisa caracteriza-se como descritiva, uma vez que foi realizada a identificação documental e uma proposta de arranjo do acervo pessoal de Pedro Moacir. Quanto à abordagem, é uma pesquisa quantitativa e qualitativa. Durante o processo, foram apresentadas as características do acervo e levantamento dos documentos que formam o objeto analisado.

Quanto ao uso de técnicas, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, porque foram levantadas fontes bibliográficas para sustentar as observações a respeito do acervo analisado, tomando como parâmetro, principalmente, os teóricos e pesquisadores da Arquivologia e áreas afins. Além disso, a pesquisa documental também foi tomada como base, face à consulta dos documentos pessoais de Pedro Moacir Maia.



2 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA INDIVIDUAL POR MEIO DOS ARQUIVOS PESSOAIS


De acordo com Bellotto (2006, p. 23), a função principal dos arquivos históricos ou permanentes é “[...] recolher e tratar documentos públicos”, depois de cumprirem o objetivo pelo qual foram criados. Ainda com o olhar voltado para os arquivos administrativos, Paes (1997, p. 121) pontua que “o destino dos arquivos é passar por uma lenta evolução que os afasta cada vez mais de seu objetivo primitivo”. Ainda nessa perspectiva, a autora afirma que “os documentos históricos de hoje foram os administrativos de ontem e os documentos administrativos de hoje serão os documentos históricos de amanhã” (PAES, 1997, p. 121).

O valor do documento é atribuído de acordo com o seu uso. Quando ele atende às demandas para as quais foi criado, isto é, servir à administração, tem-se o valor primário, informação de caráter orgânica; mas quando o item documental é usado para fins de pesquisa científicos ou culturais, assume-se o valor secundário (GAMA; FERNANDA, 2010). Bellotto (2006, p. 27) complementa a respeito dos documentos históricos pontuando que


Um arquivo permanente não se constrói por acaso. Não cabe apenas esperar que lhe sejam enviadas amostragens aleatórias. A história não se faz com documentos que nasceram para serem históricos, com documentos que só informem sobre o ponto inicial ou final de algum ato administrativo decisivo. A história se faz com uma infinidade de papéis cotidianos, inclusive com os do dia-a-dia administrativo, além de fontes não governamentais.



Ainda segundo Bellotto (2006), até mesmo a localização física reflete a especificidade de cada arquivo, pois, normalmente, os documentos de arquivo corrente ficam localizados próximos a seu produtor/administrador para facilitar o acesso e consulta. Já os documentos da segunda idade – intermediária – por serem pouco acessados, normalmente, ficam mais distantes da administração e podem ser liberados para pesquisas com autorização prévia. Na fase em questão, os papéis aguardam seu prazo de vida ou são recolhidos. Quanto ao arquivo permanente (terceira idade), estes devem ser mantidos próximos a universidades ou centros culturais, por interessar mais a pesquisadores (BELLOTTO, 2006).


É notória a importância dos arquivos históricos, uma vez que são fontes para pesquisas, o que possibilita o desenvolvimento de novas informações. Entretanto, para que o conjunto documental tenha uma apresentação lógica, é fundamental que os documentos não se misturem a documentos originários de outras instituições, ou seja, é aplicado o Princípio de Respeito ao Fundo. O Princípio do Respeito ao Fundo foi estabelecido pelo francês Natalis de Wailly (1841). Esse princípio fundamental da Arquivologia “propõe o agrupamento de documentos que provêm de um mesmo estabelecimento, indivíduo, corporação ou família, sem que haja confusões com outros documentos que advêm de diferentes estabelecimentos, indivíduos, corporações ou famílias” (FERREIRA, 2012, p. 19, grifo nosso). Mais tarde, na Alemanha, Princípio de Respeito ao Fundo foi aperfeiçoado, onde foram definidos


[...] dois outros princípios que refletem o respect des fonds: o princípio de proveniência, que costuma ser tratado como sinônimo do princípio de respeito aos fundos, e o de manutenção da ordem original. Mais recentemente é definido como o princípio de integridade ou indivisibilidade (RODRIGUES, 2006, p. 106).


Para Cook (2017, p. 9), com o princípio da proveniência e da ordem original, é possível preservar a natureza orgânica dos arquivos. O arquivo apresenta uma relação “[...] contextual, orgânica e natural [...]” com a instituição produtora, o que difere das coleções, à medida que essas são “artificiais adquiridas, arranjadas e descritas inicialmente por tema, local ou tempo”, ou seja, o arquivo forma-se naturalmente em função das necessidades.

A respeito da ordem original, há divergência por parte dos teóricos sobre sua origem. Para os portugueses, teria surgido a partir da necessidade de aperfeiçoar o princípio da proveniência, porque o fundo era considerado uma unidade indivisível, mas sua organização interna era estabelecida por critérios alheios a organicidade do acervo (RONDINELLI, 2013, p. 128). Rondinelli (2013, p. 128) ainda afirma que o respeito à ordem original se dá “com base na história de cada instituição”. Não obstante, Duchein (1992) entende o respeito à ordem original como decorrente ao princípio da proveniência, “foi identificado como struckturprinzip pelos arquivistas alemães do Arquivo Real da Prússia por volta de 1880” (RONDINELLI, 2013, p. 128). De acordo com Rodrigues (2006, p. 106, grifo da autora),


A ordem original seria aquela em que os documentos de um mesmo produtor estão agrupados conforme o fluxo das ações que os produziram ou receberam. Se o documento é a corporificação de ações que ocorrem em um fluxo temporal, a ordem original, ou melhor, a ordem dos documentos em correspondência com o fluxo das ações torna-se indispensável para a compreensão dessas ações e, conseqüentemente, para a compreensão do significado do documento.


Através do princípio da ordem original3, o arquivista pode manter a organicidade4 do arquivo, evidenciando as transações realizadas, de maneira a refletir “[...] as funções, programas e atividades da pessoa ou instituição que os produziu” (COOK, 2017, p. 9). Assim, a relação entre os documentos é mantida, o autor ainda destaca que o valor atribuído ao documento abrange aspectos como a evidência e a importância para pesquisa, e é por meio desses valores que arquivistas de todo mundo precisam compreender a complexidade entre a relação do documento com a entidade produtora que o gerou, além disso, entre os grupos e séries, pois estão inter-relacionados (COOK, 2017).

Por meio da análise do conceito de princípio de respeito ao fundo/proveniência, buscou-se estabelecer uma aproximação entre as características do arquivo permanente e do arquivo pessoal (Quadro 1). Ambos os arquivos estão voltados para a pesquisa acadêmica ou cultural, além disso, apresentam guarda permanente, conforme quadro apresentado abaixo.


Quadro 1 – Aproximação conceitual entre o arquivo permanente e o arquivo pessoal.

Conceito

Arquivo permanente

Arquivo pessoal

Princípio da proveniência

Princípio básico da arquivologia segundo o qual o arquivo produzido por uma entidade coletiva, pessoa ou família não deve ser misturado aos de outras entidades produtoras. Também chamado princípio do respeito aos fundos” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 136).

O Princípio da proveniência também pode ser observado nos arquivos pessoais, à medida que os papéis pertencentes a esse tipo de arquivo são organizados separadamente de outros acervos de proveniência distinta.

Valor permanente


Valor probatório ou valor informativo que justifica a guarda permanente de um documento em um arquivo. Também chamado valor arquivístico ou valor histórico (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 171).

Os documentos de arquivo pessoal também apresentam valor informativo, por isso são consultados e funcionam como fonte de informação para pesquisadores. São preservados por tempo indeterminado.

Fonte: (ARAÚJO, 2019).

Nesse sentido, os documentos históricos são carregados de memórias, sejam elas coletivas ou individuais, oriundas dos registros salvaguardados nesses “espaços”. Jardim (1995, p. 2), com base conceitual em Nora (1993), afirma que “a memória verdadeira, transformada por sua passagem em história, dá lugar a uma memória arquivística”. De qualquer forma, é importante ressaltar a diferença entre memória e história. Nesse sentido, Nora (1993, p. 9) contribui ao afirmar que “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”, já a história “[...] é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais” (NORA, 1993, p. 9).

A memória é sempre atual e apresenta um elo com o que foi vivenciado e o presente, já a história é a representação do passado. A primeira uni-se a um grupo, por isso não só existem várias memórias, mas também apresenta “por natureza múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p. 9). Quanto à história, ao mesmo tempo que pertence a todos, acaba por não pertencer a ninguém, além de possuir vocação para ser universal (NORA, 1993).

Ainda segundo Nora (1993, p. 12-13), “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção”. Logo, esses lugares são carregados de vestígios e uma coletividade os transforma e os renova. Os “museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade” (NORA, 1993, p. 13).

Mesmo se valendo de instituições como arquivos, bibliotecas e museus, “a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado” (POLLAK, 1992, p. 4, grifo do autor). Mas esses espaços contribuem de forma significativa para preservar vestígios destas memórias. Neste sentido, o arquivo e as memórias podem ser evidenciados por meio das práticas arquivísticas e a respeito dessa relação, Lodolini (1990 apud JARDIM, 1995, p. 4) diz que







desde a mais alta antigüidade, o homem demonstrou a necessidade de conservar sua própria ‘memória’ inicialmente sob a forma oral, depois sob a forma de graffiti e desenhos, enfim, graças a um sistema codificado. A memória assim registrada e conservada constituiu e constitui ainda a base de toda atividade: a existência de um grupo social seria impossível sem o registro da memória, ou seja, sem os arquivos. A vida mesma não existiria – a menos sob a forma que nós conhecemos sem o ADN, ou seja, a memória genética registrada em todos os primeiros ‘arquivos’.



Ainda segundo Jardim (1995), com base teórica em Robert (1990), o arquivo possibilita a criação da memória de uma organização, em função disso, permite a criação do futuro; ele existe para registrar memória coletiva. O arquivo histórico é imbuído de expressar a memória materializada. Para Murguia (2010), existem dois tipos de memória, a coletiva e a individual, uma é objeto de estudo das Ciências Sociais e a outra, da Psicologia, respectivamente. Já Le Goff (1990) descreve a memória como a propriedade de conservar algumas informações, logo, está ligada a um conjunto de funções psíquicas, assim o indivíduo pode atualizar informações retrógradas, dando-lhes novo significado. A memória individual faz parte de uma realidade maior, isto é, a memória coletiva apresenta aspectos parciais de acontecimentos sociais (RIOS, 2013). Dessa forma, quando as impressões de um indivíduo são apoiadas a de outras pessoas, a confiança na exatidão é maior (HALBWACHS, 1990).

Oliveira, Macêdo e Sobral (2016, p. 6) apontam que “a memória individual corresponde ao passado pessoal, na medida em que o passado compartilhado corresponde à identidade coletiva”. Nesse sentido, segundo Oliveira, Macêdo e Sobral (2016), “devemos entender os documentos como ferramentas para a preservação e ressurreição de memórias individuais, articuladas como parte de uma identidade comum”. Por isso, os registros criados por um indivíduo ou guardados intencionalmente para lembrar de uma ocasião ou acontecimento possibilitam a lembrança coletiva.

Os arquivos pessoais são produzidos, acumulados e preservados por seus titulares, e podem apresentar os mais variados tipos de itens (quadros, fotografias, pranchas, mapas, recortes de jornais, entre outros). Antes de darem entrada em uma instituição arquivística ou centro de informação, são geridos por seu produtor/acumulador (HOBBS, 2016). Logo, desde a formação dos dossiês à preservação dos documentos, é decidida por seu titular, e em decorrência disso: “ao contrário dos institucionais, os arquivos pessoais não possuem qualquer estrutura indicando que certos documentos foram ou deveriam ter sido criados/preservados” (HOBBS, 2016, p. 334). Um acervo dessa natureza transmite, não só, a memória de seu produtor, mas também a memória coletiva, com textos carregados da mentalidade de uma época; matérias de jornais com notícias que dizem muito a respeito do seu tempo.

O acervo pessoal contém a vida particular de seu produtor, isto é, suas experiências, relações pessoais, profissionais, assim como, a vida pública dos seus responsáveis, como aponta Oliveira (2010, p. 35), “[os documentos] em qualquer forma e em qualquer suporte, representam a vida de seu titular, suas redes de relacionamento pessoal ou de negócios. Representam também o seu íntimo, suas obras etc. São, obviamente, registros de seu papel na sociedade, em um sentido amplo”. Os fundos pessoais são fontes de pesquisa significativas, podendo ser trabalhadas por diferentes olhares. Entretanto, por apresentar formação diferente dos arquivos organizacionais, eles acabam por ganhar plano secundário na teoria arquivística,


[...] o lugar obscuro dos arquivos pessoais na literatura da área baseia-se na própria formação profissional dos teóricos da Arquivologia, que usualmente são oriundos de uma vivência no âmbito dos arquivos públicos. De acordo com essa hipótese, suas formulações teóricas estariam direcionadas à realidade de produção, gestão, preservação e acesso dos documentos públicos e, portanto, não considerariam os arquivos pessoais (OLIVEIRA, 2010, p. 34).


Neste sentido, as raízes da área estão ligadas a arquivos públicos e organizacionais, fazendo com que osarquivos pessoais começassem a ganhar atenção somente a partir da segunda metade do século XX.


3 O ARRANJO DOCUMENTAL EM ARQUIVOS


Na Arquivologia brasileira, os termos arranjo e classificação são usados para designar as operações que visam agrupar os documentos em unidades significativas, isto é, aqueles que apresentam relação entre si, evidenciando uma organicidade. Na prática arquivística brasileira, tornou-se frequente o uso do termo classificação para arquivos em idade corrente e intermediária e, para os arquivos permanentes, prevaleceu o uso da nomenclatura arranjo (BELLOTTO, 2006). Desta forma, diante da aproximação das características de organização entre os arquivos pessoais e os arquivos permanentes, optou-se, neste trabalho, por adotar o uso da expressão arranjo. De acordo com o Arquivo Nacional (2005, p. 37), entende-se por arranjo a “seqüência de operações intelectuais e físicas que visam à organização dos documentos de um arquivo ou coleção, de acordo com um plano ou quadro previamente estabelecido”. Nesse sentido, Bellotto (2006, p. 139) afirma que

o arranjo é uma operação ao mesmo tempo intelectual e material5: deve-se organizar os documentos uns em relação aos outros; as séries, uma em relação às outras; os fundos, uns em relação aos outros; dar número de identificação aos documentos; colocá-los em pastas, caixas ou latas; ordená-los nas estantes.

Ainda conforme Bellotto (2006, p. 140), com base em Antonia Heredia Herrera, a “classificação de fundos” é uma operação preliminar em relação à “ordenação dos documentos e de séries documentais”, ou seja, primeiro é feito o arranjo do fundo para posteriormente ordenar as seções e séries (BELLOTTO, 2006).

A operação do arranjo é iniciada na primeira e segunda idade dos documentos, fruto da aplicação da tabela de temporalidade e destinação de documentos. Por isso o arranjo

Deve respeitar a classificação de origem, apenas admitindo-se algumas adaptações no caso dos documentos recolhidos sistematicamente. No caso das massas documentais acumuladas, o arranjo deve se basear na classificação correta, mesmo que não tenha conhecimento imediato das atividades e funções que originaram os documentos e se necessário pesquisá-las para se atingir a indispensável organicidade (BELLOTTO, 2006, p. 136).


Trazendo a ideia da perspectiva de “quadro de arranjo” para os arquivos pessoais, a organização preliminar do fundo acontece durante a vida do titular do arquivo, pois à medida que o indivíduo realiza atividades, incorpora documentos ao acervo. Entretanto, nos arquivos pessoais, nem sempre o ordenamento dado pelo titular segue um viés lógico e pode até acontecer dos documentos não apresentarem nenhum tipo de organização.

De acordo com Camargo (2003), existem três pontos mais discutidos no âmbito dos arquivos pessoais, o primeiro diz respeito à recontextualização da organização dada ao arquivo por seu titular ou por seus sucessores. A autora explica que a questão da ordem original não pode ser tratada de forma arbitrária, não sendo possível aplicá-la “[...] como simples manutenção de critérios adotados para ordenação de unidades documentais no interior de uma série” (CAMARGO, 2003, p. 2).

O segundo ponto é “o da própria constituição do universo documental abrangido pelo arquivo” (CAMARGO, 2003, p. 2). A realidade do indivíduo está ligada a instituições sociais como o Estado, a escola, a Igreja, e a realidades menos visíveis como “relações de amizade e de amor, opções intelectuais, obsessões” (CAMARGO, 2003, p. 2). Desta forma, pode ocorrer exclusão de itens documentais, dada a dificuldade de entendê-los como parte do arquivo, o que seria evidente em um arquivo institucional, ao analisar o estatuto, um organograma e até mesmo por meio das espécies documentais que refletem o ato que cria o documento. Já nos arquivos pessoais é mais complexo identificar a atividade que gera o documento, em função da diversidade de formatos e materiais existentes nesse tipo de arquivo, por isso muitas vezes acabam sendo integrados a bibliotecas e museus (CAMARGO, 2003).

Por fim, “a inexistência de parâmetros normativos” (CAMARGO, 2003, p. 3) para arquivos pessoais, sendo que as normas existentes não abarcam todas as atividades realizadas por seu titular, o que torna a atividade de arranjo nesse tipo de arquivo onerosa. Camargo (2003, p. 3) completa ao dizer que “o estabelecimento de áreas de ação, funções e atividades como categorias classificatórias dos documentos é, simultaneamente, a construção esquemática de uma biografia”. Durante a atividade de arranjo, é preciso buscar o contexto de produção e “uma abordagem temática da documentação” (CAMARGO, 2003, p. 3).

Já para Ducrot (1998, p. 162), “após o trabalho preliminar de documentação sobre a pessoa ou família cujos arquivos serão classificados, toma-se conhecimento da totalidade de seus dossiês, respeitando a maneira como se apresentam e tentando identificar os grandes conjuntos e sua ordem original”. Caso haja desordem, a organização será dada pelo arquivista, por meio de uma estrutura lógica que represente o fundo. As correspondências e sucessivas versões de trabalhos intelectuais, por exemplo, devem ser preservadas. Tais procedimentos devem ser adotados no caso de pessoas que tiveram seu trabalho reconhecido, como escritores, cientistas, arquitetos etc., o que não se aplica a pessoas comuns, para estas últimas citadas o descarte é permitido (DUCROT, 1998).

Durante o processo de redefinição dos grupos ocorrem as eliminações de cópias e documentos contábeis. Após essas etapas preliminares, o arranjo definitivo é adotado (DUCROT, 1998) e “os dossiês constituídos são reagrupados em caixas segundo a ordem do quadro, as caixas são codificadas, e o inventário é redigido retomando-se a análise dos dossiês feita no curso da classificação” (DUCROT, 1998, p. 163). Segundo Benrand e Genevieve Gille (1970 apud DUCROT, 1998, p. 164), “o arranjo é imposto pela natureza dos próprios documentos, porque, de fato, nenhum arranjo pode ser estabelecido a priori, e o arquivista deve-se deixar guiar pelo fundo”, ou seja, é a natureza dos documentos e as funções presentes neles que regem a elaboração do arranjo. Ducrot (1998) aponta ainda que o arranjo dado a um arquivo se distingue de pessoa para pessoa. Entretanto, apresenta recomendações para a organização de arquivos pessoais (Quadro 3).


Quadro 2 – Recomendações para a elaboração de arranjo em arquivos pessoais.

Item

Critérios de Organização

Descrição

1

Documentos pessoais

Documentos de estado civil; documentos relativos à escolaridade e à formação, à situação militar, à carreira (editais de nomeação e promoção, atribuições de condecorações [...]; agendas, diários íntimos e memórias, cadernos de notas e todos os documentos que tragam informações cronológicas e sociais, fotografias; livros de contas domésticas, documentos contábeis etc. (DUCROT, 1998, p. 164).

2

Bens da pessoa

Títulos de propriedade, registros de contas etc.; depois, os testemunhos de relações com a família e com o mundo exterior (correspondências e processos) (DUCROT, 1998, p. 164).

3

Documentos originados nas funções exercidas pelo indivíduo

São classificados à parte, distinguindo-se cuidadosamente as funções exclusivamente privadas, as eletivas (municipais, departamentais, legislativas, com os diversos mandatos que a mesma pessoa possa ter exercido simultaneamente, mas cujos papéis classificamos separadamente), e as funções públicas ou oficiais (DUCROT, 1998, p. 164).

Fonte: Elaborado pelos autores, com base em Ducrot (1998).


Ressalta-se que os modelos apresentados por Ducrot (1998) são apenas orientações para os profissionais que trabalham com arquivos pessoais. A descrição padronizada da informação arquivística aumenta a qualidade técnica do trabalho. Por meio da normalização, é possível garantir intercâmbio de informação entre instituições custodiadoras de acervos de arquivo. Além disso, “as normas habilitam o pesquisador ao uso mais ágil de instrumentos de pesquisa que estruturam de maneira semelhante a informação” (CONARQ, 2006, p. 10), em função da padronização nacional e internacional da representação da informação arquivística.

As normas de descrição estão baseadas no princípio de respeito ao fundo e na estrutura multinível, pois


cada nível do arranjo documental representa um conjunto de documentos sob um mesmo vínculo de produção, que de forma hierárquica se relaciona com o fundo arquivístico objeto de estudo, e ainda, cada nível de relacionamento ocupa um ‘lugar’ no processo de produção do fundo em si (OLIVEIRA, 2013, p. 12).





De acordo com Oliveira (2013, p. 12), nos arquivos pessoais,


esses conjuntos de documentos igualmente representam os personagens que se relacionam com os titulares dos arquivos e os lugares de encontro na sociedade (afetos, família, negócios, participação na sociedade civil etc.) entre o produtor do arquivo e seus contemporâneos. Cada unidade de descrição pode se tornar objeto de um estudo particular no processo de análise do contexto arquivístico, uma vez que consideramos a compreensão do contexto histórico e social em que esses personagens viveram como parte integrante da análise do arquivo como um todo.


A estrutura multinível apresenta a descrição do fundo do nível geral para o nível particular, assim, evidencia-se a estrutura hierárquica e as partes que o compõem, conforme a figura apresentada abaixo.



Figura 1 – Modelo de níveis de descrição.

Fonte: (CONARQ, 2006, p. 62).



Neste trabalho, optou-se em utilizar a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (NOBRADE), por apresentar a área de pontos de acesso e descrição de assuntos, sendo que essa área não consta na Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística (ISAD-G).


4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O acervo pessoal de Pedro Moacir chegou organizado em pastas identificadas com cartões, nos quais havia o assunto do conteúdo datilografado. Em algumas dessas pastas, aparecia a expressão reorganizar ou redistribuir. Provavelmente, alguns dos documentos foram reunidos por sua esposa, Celeste, pois a menção a Pedro Moacir está na terceira pessoa: Reunidos por Pedro Moacir. Além disso, também foram encontrados documentos póstumos, como o convite para missa de sete dias de falecimento de Pedro Moacir e um comprovante de pagamento de nota em jornal de missa de 30 dias.

Retomando o pensamento de Nora (1993, p. 9), observa-se que “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”. Para que tudo que está relacionado à memória de Pedro Moacir não fique esquecido, realizou-se o levantamento das espécies documentais presentes em seu acervo. Para isto, utilizou-se o Glossário (1997), do Sistema de Arquivos da Universidade de São Paulo; o Glossário de espécies e tipos documentais em arquivos de laboratórios (2014), do Arquivo de História da Ciência, Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST); e o estudo intitulado Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documentos de arquivo (2002), como modelos. A identificação do documento, neste sentido, permite a preservação e a ressurreição da memória individual, que carrega uma carga de identidade comum (OLIVEIRA; MACÊDO; SOBRAL, 2016). Dessa forma, para evidenciar essa memória e para auxiliar no desenvolvimento do quadro de arranjo, foi elaborado um quadro para levantar os dados do acervo, com as seguintes categorias: Identificação das pastas, Espécie documental, Tipologia, Data-limite e Observações (Cf. Quadro 6).









Quadro 3 – Coleta de dados6.


FUNDO


IDENTIFICAÇÃO DAS PASTAS


ESPÉCIE DOCUMENTAL


TIPOLOGIA DOCUMENTAL


DATAS LIMITE


NOTAS

Pedro Moacir

Documentos Pessoais

Passaporte



1982-2008

Original e cópia (3) de Pedro Moacir; Cópia Celeste

Original e cópia


Certidão

Certidão de nascimento

Certidão de casamento



Fotografia


Foto 3x4 de Pedro Moacir

Bilhete


Celeste

Celeste e Pedro Moacir

Tradução

Tradução juramentada

Tradução Roberto Joaquim de Oliveira – tradutor público e intérprete comercial

Cédula

Cédula de identidade


Recibo

Recibo de serviços de telégrafos


Bloco

Bloco de anotação

Bloco com anotações de atividades particular, como fazer pagamentos de contas pessoais, Papelzinho de agendamento de senha CAC/DRF/SDR

Diários




Recorte

Recorte de reportagem

Parabenizando Pedro Moacir pela publicação do livro: “Museu de Arte Sacra” – consta foto de Pedro Moacir

Fonte: Elaborado pelos autores (2020).


A variável identificação das pastas, na sua maioria, foi atribuída pelo titular, a fim de agrupar os itens por assunto. A espécie documental foi utilizada para designar as espécies ou itens7; quando possível foi indicada a tipologia, as datas-limite e as observações que consistem no levantamento de informações não contempladas nas variáveis anteriores, com informações que podem contribuir para o desenvolvimento da pesquisa (variável adaptada da área de pontos de acesso e descrição de assuntos da NOBRADE).

Na pasta “Vidas Secas: gênese, motivos, composições”, por exemplo, além de levantar as tipologias, foi possível estabelecer o vínculo arquivístico entre os documentos, pois localizou-se:


  1. Ofício de convite para participar do Ciclo de Estudos sobre Graciliano Ramos – Secretaria de Estado da Cultura/Sergipe;

  2. Ofício de aceite do convite para participar do evento Ciclo de Estudos sobre Graciliano Ramos – Secretaria de Estado da Cultura/Sergipe;

  3. Folder do evento;

  4. Os apontamentos8:

    • Vidas Secas: gênese, composição, motivos

    • Gênese de Vidas Secas

    • A provável gênese de Vidas Secas

  5. Bilhete de passagem Salvador – Aracaju/ Aracaju-Salvador;

  6. Recorte de reportagem sobre o evento.


A relação orgânica presente na pasta “Vidas Secas: gênese, motivos, composições” demonstra a relação existente entre os documentos, o que garante o sentido de ser de um arquivo, seja ele administrativo, histórico, de família ou pessoal. Desse modo, a desintegração dessa composição romperia com o vínculo orgânico do acervo. Além disso, foi possível evidenciar as cinco características de um documento de arquivo: autenticidade, imparcialidade, organicidade, naturalidade e unicidade, no arquivo pessoal (OLIVEIRA, 2010). Desta forma, vale destacar que


[os documentos] em qualquer forma e em qualquer suporte, representam a vida de seu titular, suas redes de relacionamento pessoal ou de negócios. Representam também o seu íntimo, suas obras etc. São, obviamente, registros de seu papel na sociedade, em um sentido amplo (OLIVEIRA, 2010, p. 35, grifo nosso).


A fim de representar a estrutura do acervo e apresentar os grandes grupos temáticos existentes na composição e os subgrupos relacionados à cada agrupamento, foi estabelecida a posição entre os conjuntos de documentos do Acervo de Pedro Moarcir, o que possibilitou apresentar a hierarquia entre cada nível. Nesse sentido, Oliveira (2013, p. 12) afirma que “cada nível do arranjo documental representa um conjunto de documentos sob um mesmo vínculo de produção”. Ou seja, trata-se das atividades e motivos de criação ou acumulação dos itens documentais representados em cada nível. Com base nesta análise do acervo, a Figura 2 apresenta a proposta de Arranjo para o Acervo Pessoal de Pedro Moacir Maia.

Figura 2 – Proposta de Arranjo do Acervo Pessoal de Pedro Moacir Maia.



Mosteiro de São Bento da Bahia









Pedro Moacir Maia













Documentos Pessoais



Carreira Profissional

Pesquisa científica/acadêmica






Bibliofilia














Acadêmico da ALB


Diretor do Museu de Arte Sacra




Embaixador



Editor da Dinamene


Documentos não-oficiais



Documentos Oficiais




Arte Sacra


Azulejaria


Literatura Brasileira













Machado de Assis

Graciliano Ramos










Fonte: Elaborado pelos autores (2019).











O arranjo elaborado nesse estudo apresenta a seguinte estrutura hierárquica:



Ao examinar as pastas dessa estrutura, notou-se grandes grupos temáticos que englobavam os documentos. Dentre eles, dentro do grupo dos Documentos pessoais, foram reunidos os documentos de identificação pessoal, anotações domésticas, diários e etc. O grupo dos documentos diplomáticos deu origem a uma subdivisão (oficiais) e os não diplomáticos a outra subdivisão (não-oficiais). Como citado anteriormente, a maioria das pastas já chegaram à instituição identificadas. Entretanto, esses documentos estavam dispersos, por este motivo o ordenamento dos documentos foi elaborado durante o trabalho de pesquisa realizado.

A vida acadêmica do titular, bem como sua dedicação à pesquisa, contribuiu para a produção e acumulação de vários documentos, por isso criou-se a seção Pesquisa acadêmica/científica, que desencadeou subgrupos, com temas nos quais o titular era especialista, a saber: Arte sacra, Azulejaria e Literatura brasileira. Isso ocorreu porque a atuação nessas áreas gerou apontamentos, fotografias, correspondências etc. Nos trabalhos e pesquisa sobre Literatura brasileira, o titular debruçou-se de forma especial no estudo sobre Machado de Assis e Graciano Ramos, direcionando a ordenação do acervo para a criação destas subséries.

Por meio da aplicação do quadro de arranjo, evidenciou-se a área de atuação de Pedro Moacir e as temáticas que contêm em seu acervo, por isso que os arquivos pessoais são considerados fontes de pesquisa da memória individual e coletiva de seus produtores. Além disso, permite lembrar da atuação do titular como estudioso e sua atuação na sociedade. Tais constatações foram possíveis em função do levantamento das espécies, tipologia e aplicação da estrutura multinível.

Com relação ao grupo Carreira profissional, foram criadas as subdivisões Editor da Dinamene, onde Pedro trabalhou com livros em tiragem reduzida, plaquettes, cartões personalizados entre outros; e produziu diversos documentos relacionados ao cargo. Quanto à subdivisão Embaixador, na função de embaixador, o titular recebeu muitas correspondências de instituições de diferentes países e documentos relacionados ao curso de Literatura portuguesa, como os programas do curso de acordo com o período letivo, por exemplo. Já como diretor do Museu de Arte Sacra, onde realizou publicações, documentos oficiais, folders de diferentes períodos. E, por fim Acadêmico da Academia de Letras da Bahia, na qual realizou exposições, conferências, preparou cursos, textos etc.

A seção Bibliofilia9 contempla as correspondências entre o titular e José Mindlin10, as listas de livros especiais que possuía, os comprovantes de compra de obras, os eventos que participou, os recortes sobre a temática.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS


O acervo Pessoal de Pedro Moacir Maia reúne documentos que representam sua atuação no Brasil e no mundo e a sua dedicação às artes e literatura, além das relações de amizades. Nesse sentido, os recortes e correspondências são carregados da mentalidade de uma época, e a aplicação da teoria e técnicas da Arquivologia garantiram o tratamento adequado do acervo.

Embora a teoria arquivística seja importante para os arcervos pessoais, o estudo da Arquivologia é voltado para os arquivos administrativos. Como foi apresenatdo por Oliveira (2010), teóricos influentes da área tiveram sua atuação em arquivos nacionais e históricos, como: Hilary Jenkinson (1882-1961), que trabalhou no Arquivo Público Britânico; Schellenberg (1903-1970), que atuou no Arquivo Nacional dos Estados Unidos e Michel Duchein (1926-) – funcionário no Arquivo Nacional da França.

Diante do olhar da Arquivologia voltado para os arquivos administrativos, por vezes, exige-se conhecimento aprofundado do acervo para aplicar as normas e teorias arquivísticas aos arquivos pessoais. Foi um trabalho árduo, em alguns momentos, conseguir estabelecer as espécies do acervo aqui analisado, em função da variedade de materiais que compõem esse tipo de acervo, considerando que, para os documentos burocráticos, existe uma normalização da sua forma de apresentação.

Dessa forma, o desenvolvimento dessa pesquisa destaca a importância das teorias arquivísticas para a preservação da memória em arquivos pessoais, como é o caso do acervo pessoal de Pedro Moacir Maia. A aplicação da teoria e o trabalho de pesquisa permitiram demonstrar a representação intelectual do acervo e dos documentos existentes, o que facilitará as consultas futuras ao acervo e por meio desse acesso garantir a preservação da Memória de Pedro Moacir.



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1 De acordo com Creni (2013, p. 75), “a Edição Dinamene começou como uma coleção que era apêndice de uma revista de arte-literatura, que fizemos aqui entre 1948 e 1952, chamada Caderno da Bahia”. Como a revista passava por dificuldade financeira, os administradores decidiram criar uma coleção de “livros de luxo”, “em tiragem limitada e impressos em papéis especiais, seriam vendidos a preço altos, para bibliófilos”. Foram publicados apenas dois livros da Coleção Dinamene: Poemas de amor (1950) e O canto de amor e morte do porta-estandarte Cristovão Rilke (1951) (CRENI, 2013). Em 1957, Pedro Moacir retoma o trabalho com a Dinamene, conforme explica o próprio Moacir: “voltei a esse trabalho por conta própria, já com o título definitivo de Edição Dinamene, no singular. E entre 1957 e 1960 fiz treze livros por minha própria iniciativa, com meu próprio dinheiro” (CRENI, 2013, p. 76).

2 Identificação realizada até dezembro de 2019.

3 De acordo com Cook (2017, p. 11), a ordem original “reflete a classificação, organização, arquivamento ou qualquer outro processo que forneça aos documentos (e séries de documentos) sua forma ou estrutura interna”.

4 Entende-se por organicidade a “relação natural entre documentos de um arquivo em decorrência das atividades da entidade produtora” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 127).

5 De acordo com Ducrot (1998, p. 157), existem uma dupla notação, são elas: “(intelectual) correspondente ao lugar normal do documento no seio de seu fundo de origem; notação (material) correspondente à caixa ou ao móvel no qual está colocado”.

6 O quadro completo apresenta 69 páginas, mas, em função dessa extensão, optou-se por apresentar um recorte, para tal foi selecionada a pasta: documentos pessoais.

7 Utilizados para os documentos que não foram possíveis categorizar dentro de uma espécie.

8 De acordo com Silva (2014, p. 9), apontamento é o “registro informal do que foi lido, ouvido, observado, ou pensado, para eventual uso posterior”.

9 “Qualidade de bibliófilo”, ou seja, “colecionador de livros; amigo dos livros” (ALVES, 2006, p. 91).

10 Importante bibliófilo brasileiro.