Graduada em Psicologia; Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Ceará, Brasil.
Há mulheres na perversão? Essa pergunta serve de título para o livro de Lígia Furtado Mendonça (2018), a qual é resultado de seu percurso significativo de pesquisa acadêmica dedicada à temática das perversões. O livro trata das relações possíveis entre a estrutura perversa e o feminino, a partir da Psicanálise. Como afirma a própria autora, o seu objetivo é o de confrontar posições teóricas, não unânimes, que reservam a possibilidade da existência de uma estrutura perversa ao campo do masculino. Encontra-se dividido em sete capítulos que orbitam em torno de três tópicos: o primeiro dedica-se ao modo como a perversão era compreendida antes do surgimento da Psicanálise, e por seu entendimento propriamente freudiano e lacaniano. De forma mais específica, diríamos que o livro retoma a teorização acerca das perversões em Freud a partir de um marco teórico lacaniano, o qual serve à delimitação das concepções diferencias do feminino e do masculino a partir da lógica da sexuação e de sua consequente aplicação ao domínio das perversões.
Tal percurso é distribuído a partir de três grandes tópicos: o primeiro abrange o percurso dos estudos sobre as perversões anteriormente à edificação da psicanálise e as contribuições de Freud e de Lacan ao mesmo; o segundo tópico trata das noções de feminino e de masculino, que são discutidas partir do conceito de fantasia; por último, no terceiro tópico, a autora recorre à discussão de um caso clínico e de uma personagem ficcional para articular as questões teóricas levantadas nos capítulos anteriores.
A relevância teórica e clínica da referida publicação consiste sobretudo em examinar a controvérsia sobre a existência ou não de mulheres que apresentam uma estruturação psíquica perversa, contribuindo para o alargamento desse debate a partir da inserção de novos elementos à sua discussão, de modo a proporcionar sua inteligibilidade formal.
Como pontua a autora, na introdução que faz de seu livro, tanto a afirmação de não haverem mulheres perversas, quanto a de que elas existiriam são precipitadas e causam confusão, pois nenhuma delas são de justificativa óbvia, sendo necessário delimitar os elementos que possam levar a um exame teórico-clínico que sirva de fundamento a uma resposta adequada à tal certame.
Estrutura-se o livro, inicialmente, a partir de uma retomada histórica e cronológica dos autores que se ocuparam das perversão na tradição médica e psiquiatríca nos séculos XIX e XX. Primeiramente, retoma a teoria de Pinel, de 1809, em cuja concepção da perversão tinha por cerne a degenerescência moral do indivíduo e, depois, as teorias organicistas cujas concepções sobre a perversão eram pautadas por explicações anatômicas e fisiológicas, resultando em sua tipificação como uma doença. Logo em seguida, discute a contribuição dada a esse campo de estudos pelo eminente psiquiatra alemão Richard von Kafft-Ebbing, responsável pela introdução dos conceitos de sadismo, masoquismo e fetichismo centrais ao entendimento das perversões. Foi desse autor que Freud tomou emprestadas diversas nomenclaturas conceituais, atribuindo, no entanto, novos sentidos às mesmas a partir de seus estudos clínicos, que apontavam para direções bem diferentes das do estudioso alemão da medicina sexual.
A autora prossegue a sua exposição com o exame da especificidade com que as perversões foram abordadas por Freud, que teria ressaltando a relação intrínseca entre a perversão e a sexualidade infantil. Tal vinculação é considerada como fundamental para a elaboração da teoria das pulsões sexuais, responsáveis pela subversão por ele provocada quanto ao conceito de perversão. Com isso, a autora demonstra como Freud contribuiu para que as perversões não fossem mais pensadas no âmbito eminentemente patológico, na medida em que as considera como parte da sexualidade humana, sobretudo pela demarcação da concepção de perversão-polimorfa da sexualidade infantil e de sua relação com a organização da libido, bem como com sua interligação com a dimensão da fantasia.
Buscando demarcar os aspectos desenvolvidos por Freud a respeito das perversões, o capítulo
seguinte discute os aspectos envolvidos na forma como se constrói, como se estrutura uma
perversão abordando os conceitos de fixação e exclusividade da pulsão em torno de um objeto,
assim como a consequente regressão do investimento para um estádio onde as fixações se
fizeram notar pela preponderância de um modo específico de satisfação. O objetivo da autora,
nesse momento, é descrever, a partir de Freud, de que modo a organização libidinal das
pulsões, fundamental tanto para o entendimento da formação dos sintomas quanto no modo de
satisfação próprio das perversões, irá determinar essa segunda opção. É nítida sua intenção
em sugerir que tal não deve nos levar a tomar as perversões como sendo resultantes de um
acidente do desenvolvimento pulsional, sobretudo quando demarca - retomando Freud - que
seria papel do
A partir disso, Lígia Mendonça passa a abordar a operação de defesa denominada de Renegação
(
É a partir da construção desse percurso que a autora poderá, no capítulo subsequente, abordar de modo mais detalhado o fetichismo e os pares de opostos “voyeurismo - exibicionismo” e “sadismo – masoquismo” e sua relação com os modos diferenciais de perversão. Aborda, ainda, o voyeurismo e o exibicionismo a partir da demarcação do circuito pulsional entre atividade e passividade e da função do olhar na fantasia do perverso. Ressalta ainda, que o sadismo e masoquismo ganham maior amplitude conceitual a partir do impacto que lhes causou a segunda tópica freudiana, em que se dá a introdução da pulsão de morte e a reformulação da noção de sadismo primário.
Ressaltamos a importância do emprego que a autora faz do legado de Lacan ao estudo da fantasia e do complexo de Édipo a partir de seus estatutos lógicos para a especificação dos avanços do estudo psicanalítico das perversões, sobretudo pelo lugar das diferentes versões da metáfora paterna nas estruturas clínicas e de sua relação com a estruturação da fantasia do sujeito, como suporte ao confronto traumático com o real, que servirá para pensar a Estrutura e a relação do sujeito com a diferença sexual e com a posição de gozo nos âmbitos masculino e feminino.
Por fim, a autora irá discutir justamente tais posições de gozo, para tanto retoma as noções de feminino e feminilidade em Freud em relação ao narcisismo e os tipos de amor masculino (objetal) e feminino (narcísico). Além disso, demonstra as contribuições presentes no texto freudiano “O Eu e o Isso” (1923) para a sistematização do conceito de Complexo de Édipo e da especificação de sua vivência e dissolução no menino e na menina, assim como para a elaboração do conceito de falo enquanto símbolo da diferença sexual. Tais desenvolvimentos foram vitais, consoante a autora, para a posterior elaboração das fórmulas quânticas de sexuação por Lacan, onde a discussão sobre o feminino e o masculino são definitivamente dissociadas do sexo biológico e pensadas a partir da relação do sujeito ao falo e de seus consequentes modos de gozo. É a partir do recolhimento desses deslocamentos conceituais que a discussão em torno da existência ou não de mulheres na perversão vai ser empreendida e consolidada. A autora conclui que algumas das posições expressas em obras psicanalíticas em torno da negação da possibilidade da existência de mulheres perversas resultam da tomada da posição feminina num sentido anatômico e não enquanto uma posição perante a diferença sexual. A autora demarca sua posição em relação a tal controvérsia e defende a possibilidade de uma mulher vir a se situar na estrutura perversa, entendendo com isso que ela se posicionaria no lado fálico das fórmulas da sexuação. Quanto o seu alinhamento com as teses de que existem mulheres perversas, serve-se do esquema do fetichismo de Lacan, no qual a mulher - enquanto mãe - estaria numa posição fálica para afirmar sua conclusão de que: “se enquanto mãe uma mulher pode ser perversa, isso já nos prova que há mulheres perversas”.
No sentido de dar legitimidade formal à sua hipótese e aos argumento em prol disso, Lígia Mendonça irá examiná-los, no último capítulo de seu livro, a partir da análise do crime da americana Gertrude Bainszewski e da personagem ficcional Erika Kohut, o que a leva a afirmar sua tese da existência de mulheres na estrutura perversa.