Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2019.

 

 

Justiça e democracia:
personalismo, participação política e poder judiciário no Brasil

 

Marilde Loiola de Menezes
Universidade de Brasília, Brasil
marildeloiola@unb.br

 

Introdução

No estudo das relações entre os poderes a análise do judiciário pode ser considerada como aquela que promove menos interesse no âmbito das ciências sociais. Tradicionalmente considerada pela teoria política moderna como um poder neutro, intérprete da lei “invisível e nulo” (MONTESQUIEU, 2000, p. 169), somente mais recentemente o judiciário começa a surgir na cena nacional e internacional como um campo a ser estudado a partir de dois fenômenos: o da judicialização da política e do ativismo judicial.

No que concerne aos estudos sobre a judicialização da política, autores como C. Neal Tate e Torbjorn Vallinder inauguram essa vertente analítica com a publicação do famoso artigo The Global Expansion of Judicial Power em 1995. O estudo demonstra que a expansão da área de atuação do poder judiciário nos Estados Unidos teve como causa principal a transferência de decisões da legislatura para as Cortes Judiciais. Essa discussão chega ao Brasil com destaque em, pelo menos, duas abordagens de explicação distintas e, ao mesmo tempo, complementares.

Uma primeira vertente de análise considera que o processo de judicialização da política ocasionado pela expansão do judiciário é um fenômeno típico do século XX, associado à crise do Estado de Bem-Estar Social. Nesse sentido, a proliferação dos direitos, ou a “juridificação do bem-estar social” (SANTOS et al, p. 11), traduziu-se através de um aumento exponencial da procura jurídica cujas reivindicações demandavam a ampliação de direitos sociais e econômicos tais como o direito ao trabalho, ao salário justo, à segurança no emprego, à saúde, à educação, à habitação, à segurança social. Ou seja, a “juridificação” da justiça distributiva. Tal protagonismo tem consequências em relação a eventuais confrontos com a classe política que, de certa maneira, sentia-se acuada frente à interferência do judiciário no seu campo original de ação. Por se tratar de um poder contra majoritário, o judiciário só se revela publicamente como poder político à medida que interfere no campo dos demais poderes: “Daí que a judicialização dos conflitos políticos não possa deixar de traduzir-se na politização dos conflitos judiciários” (SANTOS et al, p. 3).

Uma segunda abordagem atribui ao processo de judicialização o desenho constitucional que, seguindo a tendência do que hoje é denominado “Constitucionalismo moderno”1, confere ao Poder Judiciário um grau de autonomia que não se esgota na defesa da lei ou na garantia dos direitos individuais. O texto constitucional abre caminho para a inclusão ampla sobre os direitos sociais favorecendo ao Poder Judiciário um excepcional protagonismo político independente da ação do executivo ou mesmo da maioria parlamentar. Nesse contexto, questões de natureza social, econômica, cultural, religiosa, e mesmo aquelas de natureza essencialmente política, se deslocam para a área de atuação do Judiciário.

Em um olhar mais aprofundado em torno das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN), Werneck Vianna (1999) demonstra que o adensamento do Direito Positivo e o aumento progressivo de intervenção do Poder judiciário no Brasil, em particular nas políticas e nas relações sociais, ocorrem mediante a “incapacidade de o Executivo e o Legislativo fornecerem respostas efetivas à explosão das demandas sociais por justiça” (1999, p. 149). Desta forma, a extensão do direito sobre o social progride, sobretudo, no que concerne à regulação dos setores mais vulneráveis da sociedade: “Há um claro processo de substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente republicanos pelo judiciário, visando a dar cobertura à criança e ao adolescente, ao idoso e aos portadores de deficiências físicas” (WERNECK VIANNA et al, 2007, p. 41). O autor ainda conclui que nestes casos, “O juiz torna-se protagonista direto da questão social” (WERNECK VIANNA et al, 2007, p. 41). Isso, entretanto, não significa dizer que existe uma invasão ou mesmo um “projeto de poder” por parte do judiciário. Para o autor esses processos de judicialização ocorrem originados por múltiplas instâncias e não pode ser explicado somente pela ampliação das funções dos magistrados em seus respectivos papéis constitucionais.

Em relação ao Ativismo Judicial o fenômeno é normalmente descrito como consequência da ampliação da capacidade de interpretação das leis por parte do Poder Judiciário, tendo como referência geral, os valores fundadores da Constituição. Nesse caso, a atuação do juiz ou da Corte não está vinculada a eventuais omissões do parlamento, mas na ampliação de interpretação da lei por parte da magistratura.

Atribui-se a Arthur Schlesinger o uso pioneiro do termo “ativismo judicial”, em artigo publicado em 1947 pela revista Fortune. A autoria do termo foi registrada pelo americano Keenan D. Kmiec, em 2004, em artigo intitulado The Origin and Current Meanings of Judicial Activism.

De acordo com a descrição de Kmiec (2004), Schlesinger analisou o comportamento dos nove juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, conforme as alianças e as divisões que se estabeleciam nos seus pareceres e votos. Assim procedendo, o artigo caracterizou quatro juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos como sendo “Ativistas Judiciais”, três juízes como “Campeões da Autocontenção” e o restante fora classificado em um “Grupo Intermediário”. Schlesinger percebeu o grupo dos “Campeões da Autocontenção” (Grupo Frankfurter Jackson) como aqueles que acreditam que as leis têm significados fixos e por isso seria inadequada qualquer forma de interpretação em prol de qualquer grupo a ser beneficiado. Esse Grupo busca manter a supremacia judicial em nome do respeito à vontade do legislador, independente do perfil ideológico. Tem como base de ação o respeito pela separação dos poderes no processo democrático. O segundo grupo, os “Ativistas Judiciais”, é interpretado como sendo mais maleável a um leque de significados do direito e por isso essa corrente é considerada “menos científica”. Para os “Ativistas Judiciais”, lei e política são dimensões inseparáveis. Nesse sentido, não há possibilidade de se atingir a “verdade” através de critérios internos das práticas judiciais. Durante um julgamento não há respostas corretas ou indiscutíveis e as questões políticas acabam se manifestando. “Um juiz sábio aceita essa filosofia e sabe que a escolha política é inevitável. Ele não tem a falsa pretensão de objetividade e conscientemente exerce o poder judicial visando a resultados sociais” (KMIEC, 2004, p. 1447). Para o Grupo “Ativistas Judiciais”, a lei e a política são inseparáveis.

A partir da obra pioneira de Kmiec, outros autores deram continuidade aos estudos do Ativismo Judicial e nesse contexto Craig Green publica a obra intitulada An Intellectual History of Judicial Activism (2009). Na obra, Green cita a diversidade de significações do ativismo judicial apontado por Schlesinger, não porque considere a impossibilidade de uma objetividade no julgamento, mas porque atribui uma disfunção proveniente da imprecisão dos estatutos judiciários da Corte americana. Dessa forma, o ativismo judicial estaria ligado ao abuso do poder devido à ausência de definições claras da atividade jurisdicional.

No Brasil, no âmbito específico da ciência política, as análises de autores como Andrei Koerner e Rogério Arantes deram um significativo destaque ao estudo dessa temática, sobretudo no que concerne aos limites e às possibilidades da identificação no ativismo judicial no sistema de justiça brasileiro.2

Para Andrei Koerner (2013) o uso do conceito de ativismo judicial no Brasil apresenta-se de forma bastante simplificada por colocar em segundo plano analítico o caráter institucional, político e socialmente inserido dos tribunais. Para o autor, a partir de 2002, o que tem sido chamado de ativismo judicial no Brasil “resulta de uma aliança entre a presidência da República e elites jurídicas voltada a promover as políticas do governo e a configurar um novo regime governamental” ( p. 85). A longo prazo, essa aliança teria modificado as formas de atuação do Tribunal, reforçada pelas suas bases de apoio, mas também teria provocado reações e resistências aos “regimes governamental e jurisprudencial”, isto é, os conflitos entre juízes e governo.

Koerner constata, ainda, que o entendimento corrente de ativismo judicial seria uma situação-limite entre os mundos da política e do direito que, quando ultrapassada, faz com que o juiz ou um tribunal extrapole seus domínios e suas funções, com o risco de distanciar-se de seus quadros de referência e atuar com valores subjetivos, preferências, interesses e programas políticos. Tal situação seria prejudicial ao Estado de direito e tem como problema normativo a inadequação em relação à Constituição e à democracia. Em última instância, juízes passam a fazer leis, violam a separação dos Poderes sem serem responsáveis perante os representados e provocam mudanças da Constituição sem a alteração de seu texto.

Para Koerner, no entanto, as pesquisas que focam nos padrões decisórios, atitudes e comportamentos estão baseadas em dimensões analíticas formuladas por juristas conservadores e carecem da percepção de que a prática judicial é um exercício de articulação entre diferentes lógicas. Então, a fim de sanar essa lacuna, no artigo Ativismo Judicial? Jurisprudência constitucional e política no STF pós-88 (2013), o autor propõe uma metodologia que combina três dimensões: i) institucional; ii) da prática jurídica e histórica e; iii) os conceitos de regime governamental e jurisprudencial (KOERNER, 2013, p. 76).

Essa metodologia, segundo o autor, permite que o problema do ativismo judicial não seja simplificado, trazendo para o centro do debate não só a atuação do juiz, como também o caráter institucional, político e social nos quais o tribunal está inserido. Isso porque os agentes históricos possuem identidades institucionais e, ademais, existem práticas e processos pelos quais o problema foi historicamente constituído.

O cientista político Rogério Arantes preocupou-se igualmente em estudar a atuação do sistema de justiça no cenário político brasileiro a partir de uma análise que considerasse a construção histórica do Judiciário moderno e da expansão de suas funções judiciais e políticas ao longo no século XX. Seu artigo intitulado: Judiciário: entre a Justiça e a Política (2015), tem como objetivo responder se o Judiciário moderno é um órgão de justiça ou de poder político.

Arantes esclarece que as revoluções Americana (1787) e Francesa (1789) influenciaram muitos países como modelos principais de definição do Judiciário moderno. O modelo americano, mais liberal do que republicano, atribuiu à magistratura a função de prestação de justiça nos conflitos entre particulares e elevou o Judiciário à condição de poder político. O modelo francês, mais republicano do que liberal, modernizou a justiça comum do Judiciário, sem conferir-lhe poder político.

O sistema de controle constitucional brasileiro acabou se desenhando de forma híbrida entre as opções americana e europeia. Ele entrega ao Judiciário, de maneira difusa, a capacidade de controlar a constitucionalidade das leis, porém conta com o mecanismo da ação direta de inconstitucionalidade, que pode anular ou ratificar a lei em si.

A partir dos modelos acima apresentados, Arantes refaz o caminho da forma pela qual as heranças ideológicas do sistema brasileiro impactam na atuação política do Supremo Tribunal Federal (STF), sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando o judiciário sofreu forte expansão em várias democracias, “transformando-se em instância de solução de conflitos coletivos e sociais e de implementação de direitos muito mais orientados pelo valor da igualdade do que pelo valor da liberdade” (ARANTES, 2004, p. 99).

Segundo o autor, a primeira onda de expansão do Judiciário no Brasil, entre 1930 e 1940, foi impulsionada pela desconfiança em relação às instituições político-representativas e à capacidade do regime democrático em atender a sociedade, o que inspirou soluções alternativas para os problemas de ordem social e para os conflitos coletivos. A segunda onda, na década de 1970, repetiu essa matriz, o que resultou na criação do Ministério Público, um órgão do Estado com a atribuição de defender interesses difusos e coletivos. Mas foi a Constituição de 1988 que finalmente consolidou essa expansão da justiça “rumo à proteção dos direitos coletivos, reafirmando-os como categoria jurídica constitucional” (ARANTES, 2004, p. 102-103). A partir dessas mudanças operadas no sistema de justiça, vários outros direitos específicos foram reconhecidos, confirmando assim a independência e o papel tutelar do Ministério Público em relação aos demais poderes do Estado.

Arantes explica que esses elementos de transformação social e de ampliação de direitos, sobretudo no que diz respeito a igualdade e a cidadania, não são suficientes para levar a magistratura ao ativismo judicial, mas certamente tem inclinado suas novas atribuições na tênue demarcação entre a justiça e a democracia.

Justiça e democracia

A história da democracia ocidental está alicerçada em um modelo de Estado cujas funções se organizam através de três poderes distintos: o legislativo, o executivo e o judiciário. Montesquieu, considerado o pai fundador dessa formulação3, via nessa forma de organização política uma alternativa no combate aos excessos relativos à concentração do poder absolutista. O reconhecimento da necessidade de que todo “poder constitua um freio para o poder” (MONTESQUIEU, 2000, p. 166), evitando assim o “abuso de poder”, deu ensejo a construção do Estado liberal democrático moderno4.

Além dessa prerrogativa, a Idade Moderna afirma sua característica universal democrática fundada no respeito aos direitos do homem e na legitimação do regime democrático via soberania popular. Na prática, isso significa que o poder político supremo será exercido através da escolha da maioria via voto popular. Diferentemente dos demais poderes, o judiciário se apresenta como uma instância que prescinde da escolha popular. Sua legitimidade se afirma no fato de que esse poder representaria, em tese, “la bouche de la loi”, a boca da lei (MONTESQUIEU, 2000, p. 175). Portador de uma neutralidade assegurada pelo compromisso de submissão às leis, os magistrados estariam impedidos do exercício de qualquer “criatividade pessoal” em suas interpretações em relação ao direito. A Constituição representaria, assim, a “vontade geral”, (MONTESQUIEU, 2000, p. 169) interpretada pelo legislador, posta em prática pelo executivo ficando o poder judiciário restrito à aplicação das leis nos casos particulares. Sendo considerado essencialmente como intérprete da lei, “o poder de julgar, tão terrível entre os homens”, torna-se, assim, “invisível e nulo” (MONTESQUIEU, 2000, p. 169). O que se sugere é que o poder judiciário deveria ter o mínimo possível de pessoalidade, devendo-se temer “a magistratura e não os magistrados” (MONTESQUIEU, 2000, p. 169).

Essa tradição originada entre os séculos XVII e XVIII, que recusa ver o judiciário como um campo de poder tão importante quanto os demais poderes, aos poucos vai cedendo lugar a uma gama de interpretações que deslocam a discussão do executivo e do legislativo, tão caras a fundação do Estado Moderno, para a centralidade do poder judiciário nas democracias contemporâneas.

Nessa retomada dos estudos sobre o judiciário temos a proeminência de várias análises que, de certa forma, inauguram a discussão contemporânea sobre a relação entre justiça e democracia. Dois autores se destacam nessa discussão: Habermas e Rawls.

A argumentação desenvolvida por Habermas visa essencialmente provar a existência de um nexo conceitual entre Estado de direito e democracia. Esse “nexo” não seria assim meramente histórico ou casual. Ele se expressa concretamente através da “dialética entre igualdade de fato e de direito”, dando ensejo ao paradigma do Estado social em oposição ao Estado liberal. A partir desses pressupostos, o autor adota uma “autocompreensão procedimentalista do Direito e do Estado democrático de direito5” (HABERMAS, 1997, p. 301). Esse arranjo habermasiano, tenta mostrar que os pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática da opinião e da vontade são as únicas fontes de legitimação constitutiva do nexo interno entre o Estado de direito e democracia:

Tal compreensão é incompatível, não somente com a ideia platônica, segundo a qual o direito positivo pode extrair sua legitimidade de um direito superior, mas também com a posição empirista que nega qualquer tipo de legitimidade que ultrapasse a contingência das decisões legisladoras (HABERMAS, 1997, p. 310).

A comprovação de um nexo interno entre Estado de direito e democracia exigiria o esclarecimento das seguintes posições: (i) o direito positivo não pode ser submetido simplesmente à moral; (ii) a soberania do povo e os direitos humanos pressupõem-se mutuamente; (iii) o princípio da democracia possui raízes próprias, independente da moral. Isso porque a proteção moral refere-se à integridade de sujeitos individuais independentes dos ditames sociais ou históricos. Enquanto a comunidade jurídica – “localizada no espaço e no tempo” (HABERMAS, 1997, p. 312) – protege a integridade geral de seus membros na medida em que são portadores de direitos subjetivos. Nesse aspecto, a atuação seria ao mesmo tempo mais ampla e mais limitada em relação a questões morais.

Para Rawls, o Estado de Direito no interior das democracias modernas implica, sobretudo, no papel determinante de certas instituições, bem como das práticas judiciais e legais a elas associadas. São elas: “a imparcialidade e a coerência, a adesão à lei e o respeito pelos precedentes” (RAWLS, 2000a, p. 377).

Para o autor, uma sociedade política bem ordenada exige que seja igualmente justa do ponto de vista social. Assim, na medida em que existe um “fim último comum”, um fim que conclama à cooperação do maior número de pessoas, o bem concretizado é social. Ele se concretiza graças à atividade conjunta de cidadãos que lhe permite participar da “cooperação social equitativa” (RAWLS, 2000b).

O arcabouço jurídico de uma sociedade justa, elaborado por Rawls, garante ainda ao cidadão, direitos e liberdades que assegurem seu status de pessoas livres e iguais:

Pois tais direitos e liberdades se referem aos princípios fundamentais que determinam a estrutura do processo político – os poderes legislativos, executivo e judiciário, os limites e a extensão do governo exercido pela maioria assim como os direitos civis e políticos e as liberdades básicas que as maiorias parlamentares devem respeitar, tais como o direito de voto, o direito de participar da vida política, a liberdade de pensamento e a liberdade de consciência, assim como todas as proteções garantidas pelo Estado de direito (RAWLS, 2000a, p. 347-348).

Rawls parte da convicção de que ao assegurar os direitos e as liberdades básicas iguais para todos, bem como a igualdade equitativa de oportunidades, a sociedade política garantirá os elementos essenciais do reconhecimento público das pessoas como membros livres e iguais, isto é, seu status de cidadãos.

Para ambos os autores as práticas jurídicas em sintonia com a soberania popular, expressam o funcionamento formal das instituições, no interior de um sistema liberal democrático. Ambas as formulações conservam a ideia de autonomia segundo a qual, os homens agem como sujeitos livres na medida em que estão submetidos às leis que eles mesmos estabeleceram para si. O poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais. A partir de seus respectivos projetos filosóficos, os autores elaboram um arcabouço jurídico de como seria uma sociedade justa, desconsiderando as eventuais contradições que possam interferir entre o direito, o judiciário e o Estado moderno.

Mais recentemente, um terceiro autor, Pierre Rosanvallon, retoma esse debate e chama atenção para um fenômeno que certamente extrapola o caso específico da França. Analisando os processos de legitimação das democracias contemporâneas, Rosanvallon (2011) observa que o tão disseminado e consensual regime democrático não cumpriu sua promessa mais elementar: a diminuição das desigualdades sociais. O parlamento – considerado, desde a sua origem, como uma instituição que resumia o espírito e a forma do governo representativo – perdeu a sua centralidade e assistimos a um processo de progressivo desgaste na natureza de seu próprio funcionamento. Os constantes conflitos de ideias e interesses no jogo político-partidário aprofundam o fosso existente entre representantes e representados.

Nesse quadro de enfraquecimento das instituições político-partidárias, a legitimidade democrática, antes alicerçada na soberania popular, migra paulatinamente em direção das instituições consideradas neutras e imparciais: as “autoridades independentes” e as cortes constitucionais. À medida que esses agentes do Estado e das Cortes constitucionais denegam sua relação com o político, cresce sua legitimidade enquanto poder destituído de interesses pessoais ou preferências político-partidárias (ROSANVALLON, 2008).

Essa nova geração formada por “instituições supostamente neutras” (ROSANVALLON, 2008, p. 171) transforma-se em um instrumento de realização de uma sociedade sedenta por uma “imparcialidade radical” no que concerne a competência de seus governantes e o respeito aos interesses gerais de seus cidadãos.

A nova categoria da “imparcialidade” se impõe, assim, na ordem política como um vetor geral de aspiração da sociedade que se estende através da formação de um espaço público mais aberto, receptivo e transparente. A força da demanda por imparcialidade exprime uma profunda mutação na forma de apreensão das democracias contemporâneas. Ela passa a responder pela formação de uma nova cultura política de transformação social, sendo possível falar de uma perspectiva de imparcialidade como sendo a atual “verdadeira política”. A nova gramática das instituições democráticas; nas quais se inscrevem as autoridades de controle independentes, bem como as cortes constitucionais; marca a ruptura da legitimidade do regime democrático.

Tal deslocamento de legitimidade deve conduzir, necessariamente, a uma considerável reflexão das condições práticas da produção normativa do legislativo e do exercício do poder executivo, considerados originalmente como as figuras centrais das revoluções americanas e francesas. O crescimento do império das autoridades independentes e das cortes constitucionais começa assim a revolucionar o repertório clássico de formulação da questão democrática. O espectro que ameaça a atual “revolução de legitimidade” (revolution de la légitimité) poderá ter como consequência o surgimento de uma “democracia apolítica” (démocratie impolitique) cujas bases repousam na rejeição da política definida como o lugar das manobras partidárias e dos cálculos pessoais. Sua substituição por esses poderes “neutros e independentes” torna-se assim a chave da compreensão do novo pensamento social contemporâneo.

Essa breve reflexão sobre o papel do poder judiciário tanto do ponto de vista do Estado de Direito (Habermas e Rawls) como de sua tendência preponderante nas democracias contemporâneas (Rosanvallon) nos remete ao caso brasileiro nos seguintes termos analíticos. Mesmo que a Constituição cidadã de 1988 tenha estabelecido as bases da nossa democracia, baseada na separação e vigilância entre os poderes, bem como nas práticas jurídicas a elas associadas, é também visível um certo deslocamento da legitimidade via soberania popular em direção a um poder contra majoritário expresso tanto pela Suprema Corte como pelos demais agentes controladores do Estado (Ministério Público, promotores, entre outros).

No Brasil, tais deslocamentos – ainda que não sejam literalmente nomeados como tal – de certa forma estão sendo mapeados pelos estudos relativos à judicialização da política e do ativismo judicial. A análise que se segue tem como objetivo demonstrar a ocorrência de um terceiro fenômeno que tem ligação direta com o deslocamento de legitimidade do regime democrático a que se refere Pierre Rosanvallon. Trata-se do personalismo e da participação política do poder judiciário no Brasil.

Personalismo e participação política

Já se tornou quase uma tradição da nossa história contemporânea apontar o personalismo, – ao lado do clientelismo e do populismo, – como um dos males ou vícios da política brasileira (CARVALHO, 1997). De forma bem simplificada, o personalismo é compreendido quando certas lideranças, quer por sua capacidade de persuasão, quer pelo carisma, são tão proeminentes que chegam a ofuscar as agremiações partidárias. Claro que todos os partidos precisam de grandes nomes para eleger suas respectivas bancadas. Entretanto quando o líder chega a ser maior do que o seu partido estamos, via de regra, diante do fenômeno do personalismo na política.

O personalismo também está associado a uma crença de um “salvador da pátria” (RIBEIRO, 2000, p. 66), criando-se no imaginário popular a ideia de uma salvação coletiva sob a liderança messiânica dotada de poderes especiais capazes de reconduzir a nação aos trilhos da ética e da igualdade social.6

Mesmo aparentando antigas e já superadas, essas ideias provenientes do século passado parecem ser revigoradas, sobretudo com a penetração dos novos meios de comunicação de massa e sua importância na vida quotidiana de todo país. Atualmente uma liderança que levaria anos para ser reconhecida em um país das dimensões do Brasil, basta aparecer nos meios de comunicação hegemônicos ou mesmo marginais, que poderá ter sua fama – ainda que efêmera – assegurada. Esse fenômeno, já tão conhecido na vida política do país, começa a se fortalecer, sobretudo através da atuação de personagens importantes do Poder Judiciário.

A partir do grande sucesso de audiência do chamado julgamento do “mensalão petista7” as câmeras se voltaram para outros personagens que, tal como o Ministro Joaquim Barbosa, surgiam no cenário nacional como figuras messiânicas capazes de “passar o Brasil a limpo8”. Juízes, procuradores e agentes da Polícia Federal passam a exercer um excepcional fascínio na população, tendo algumas personalidades atingindo, inclusive, o verdadeiro status de “pop-star”.

Não sabemos ainda com precisão, as consequências dessa glamorização da justiça, especificamente no que diz respeito ao fortalecimento do regime democrático. A pesquisa ora realizada procura, entretanto, apontar o fenômeno como um sintoma importante do atual estágio da democracia brasileira.

Com esse objetivo, a análise procura focalizar a atenção na questão específica do personalismo exercido por membros do STF e suas incursões – nem sempre claras – no jogo político brasileiro. Escolhemos como estudo de caso a análise de eventos ligados a dois atores que, apesar de atuarem de maneira diametralmente opostas em suas ações e declarações, se constituem como dois “tipos ideais” do fenômeno a ser estudado. São eles: Ministro Gilmar Mendes e o Ministro Luís Roberto Barroso.

Na sequência apresentaremos a forma pela qual os dois ministros “participam” das discussões políticas através de suas respectivas exposições no plenário, em palestras e nos principais meios de comunicação. Em ambos os casos esses personagens agem como atores políticos, mesmo que se apresentem como portadores fiéis do campo jurídico.

Troca de farpas entre barroso e mendes

Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso são duas lideranças importantes no Supremo Tribunal Federal e ambos são considerados como “ministros midiáticos” devido as suas constantes aparições nos meios de comunicação. Nos últimos meses parte do público que acompanha os trabalhos da Corte assiste estarrecido às desavenças entre esses dois personagens que, tal como ocorre na política, se destacaram mais pelas suas idiossincrasias individuais do que pelo trabalho exercido na Instituição a qual estão ligados. Estamos nos referindo ao personalismo e a forma pela qual esses dois atores participam de forma aberta ou eufemizada das discussões da vida política do País.

As primeiras cenas explícitas de agressões mútuas se deram em 26/10/2017, quando os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso protagonizaram um “bate-boca” no plenário da Corte.9 Incomodado com o estilo irônico de Mendes, Barroso reagiu afirmando que o colega “não trabalha com a verdade”, “muda de jurisprudência de acordo com o réu”, “tem parceria com a leniência em relação à criminalidade do colarinho branco”, “fica destilando ódio o tempo inteiro, não julga, não fala coisas racionais, articuladas, sempre fala coisas contra alguém, sempre com ódio de alguém”, e finalizou afirmando que “Isso não é Estado de Direito, isso é estado de compadrio. Juiz não pode ter correligionário”. Em revanche, Gilmar acusa Barroso de ter advogado para “bandidos internacionais” e de fazer "populismo em suas decisões", afirmando seu compromisso individual com os direitos fundamentais.10

As agressões não pararam por aqui. Em 21/03/2018 o clima mais uma vez esquentou entre os ministros Gilmar Mendes e Luiz Roberto Barroso durante a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF). Mendes insinuou que o colega teria manipulado uma votação referente à liberação do aborto. Ao se sentir ofendido, Barroso, em plenária, deu o seguinte “troco”: “A vida para vossa excelência é ofender as pessoas. Vossa excelência é uma desonra para todos nós. Vossa excelência desmoraliza o tribunal (...). O senhor é a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia". O ministro ainda disse que Gilmar não tem nenhuma ideia: "Nenhuma! Só ofende as pessoas. Qual é a sua ideia? Qual é a sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, é uma coisa horrível”. E prosseguiu: “Vossa excelência nos envergonha, vossa excelência é uma desonra para o tribunal; uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo, grosseiro, rude. É péssimo isso. Vossa excelência, sozinho desmoraliza o Tribunal. É muito ruim. É muito penoso para todos nós termos que conviver com vossa excelência aqui. Não tem ideia, não tem patriotismo, sempre atrás de algum interesse que não é o da Justiça. Uma coisa horrorosa”.11Em revanche Mendes afirmou que continuará fazendo autocrítica, “incomode a quem quiser” e concluiu: “Nós não falamos com as pessoas, falamos com a história. Estamos tentando chamar atenção para erros que nós mesmos cometemos”. Disse que “tem ódio mesmo, de quem quer manipular”. E mandando “modéstia às favas”, afirmou que “o Direito Constitucional é um antes dele e um depois dele12.

Longe de querer resgatar esses lamentáveis episódios ou focar em uma análise entre “mocinhos e bandidos” a pesquisa se interessa pelos “sintomas” dessas desavenças, que põem em claro a disputa personalista entre membros da mais alta corte, demonstrando que se trata muito mais de briga entre fogueiras de vaidades do que uma discussão acadêmica sobre direito, justiça, cidadania e o papel do STF.

Não se trata igualmente de uma “luta simbólica” entre agentes que se enfrentam tendo em vista a acumulação de capital (cultural, econômico, acadêmico) garantidor da dominação do campo. O que se presencia foge completamente à explicação sobre as “leis gerais dos campos” descritas por Bourdieu (1994). Ao contrário, trata-se de uma “luta concreta”, onde o que está em jogo é a imposição ou desqualificação de supostos atributos morais e pessoais de cada adversário cuja atuação não se identifica com qualquer concorrência ou relação de forças entre agentes ou instituições em uma “estrutura de distribuição de poder”. Essas desavenças entre “personagens” não se comparam à luta entre agentes pelo “domínio do campo” no trabalho de imposição de “modos de pensar e modos de agir” que vão redefinir ou conservar o habitus da instituição. Trata-se muito mais de um “corpo a corpo” personalista nos moldes tradicionais do “bateu levou” do que luta simbólica entre posições no interior do campo.

Ao afirmar que um ministro do STF “não trabalha com a verdade” é como se ficasse escancarada a fragilidade dos controles internos da Instituição. A afirmação de que um ministro “muda a jurisprudência de acordo com o réu” é o mesmo que afirmar a total falta de controle do próprio STF no seu compromisso com a justiça e com a Constituição. Ter “leniência com os crimes de colarinho branco” é declarar que criminosos fazem parte da mais alta Corte do país. Acusar ministro da corte de fazer populismo com suas decisões é o certificado de que a vulnerabilidade em relação à mídia – típica do campo político – já atingiu também o STF. Finalmente, declarar que na mais alta Corte do país impera, não o Estado de Direito, mas de “compadrio” é o mesmo que admitir, como diria Sérgio Buarque de Holanda (1991), que a democracia entre nós foi sempre um mal-entendido.

Além das consequências devastadoras do ponto de vista institucional que discussões dessa natureza provocam, o teor personalista e desqualificador das agressões mútuas entre os ministros em nada contribui para o aperfeiçoamento do poder judiciário nem tampouco para consolidação da nossa claudicante democracia. Mendes e Barroso representam duas lideranças expressivas do Supremo Tribunal Federal e não por acaso são igualmente considerados os ministros mais midiáticos e suscetíveis no que tange às declarações públicas sobre o ambiente político-partidário do país.

Já se tornaram famosas as declarações do Ministro Gilmar Mendes envolvendo os membros e a orientação ideológica do Partido dos Trabalhadores. Um desses rompantes se deu durante a votação em plenária sobre o veto a doações privadas de campanha.

Durante a leitura de um longo voto – que durou mais de quatro horas – em que se posicionou a favor do financiamento de empresas em campanhas eleitorais, Mendes afirmou que o “PT tinha o ‘plano perfeito’ para se ‘eternizar no poder’”. Acrescentou ainda que o PT é contra esse tipo de doação porque o partido já teria conseguido esses recursos via propinas na Petrobrás: “Ou seja, sem novos ‘pixulecos’, o partido teria condições de financiar, só com o valor já desviado, eleições presidenciais até 2038”.13

Mesmo não sendo o Partido dos Trabalhadores objeto do julgamento, Mendes continuou fazendo alusões ao PT, acusando-o de ter sempre obtido vantagens indevidas sob formas de propinas provenientes das empresas públicas e privadas: “O partido que mais leva vantagem na captação de recursos das empresas privadas agora, como madre Tereza de Calcutá, defende o fim do financiamento privado. O partido consegue captar recursos na faixa dos bilhões de reais por contratos com a Petrobrás e passa a ser o defensor do fim do financiamento privado de campanha. Eu fico emocionado, me toca o coração”, ironizou.14

Sendo considerado um dos ministros mais controvertidos do STF, Mendes também não poupa críticas aos seus colegas da Corte e aos demais integrantes do sistema judiciário. Uma dessas represálias aconteceu igualmente durante a sessão do tribunal quando o Ministro, ao criticar duramente a “lei da ficha limpa”15 afirmou que, de tão mal elaborada, “parece ter sido feito por bêbados”.16

Em outro evento, ao falar sobre a composição dos tribunais, o ministro criticou igualmente o Tribunal Superior do Trabalho nos seguintes termos: “O TST foi o laboratório do PT, foi onde deu certo. E o aparelhamento foi exitoso exatamente no âmbito do TST. Hoje, o tribunal é composto por muitos simpatizantes que foram indicados pela CUT. E nós temos um direito do trabalho engessado. O país tem 13 milhões de desempregados e com um sistema inflexível”, afirmou.17

Durante o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, em seu voto Mendes afirmou acreditar que a onda de intolerância vivida pelo país foi motivada pelo governo petista:“Todos sabem que venho do governo FHC e aqui até vou fazer uma reflexão que certamente não vai agradar meus amigos petistas. Creio que nós devemos muito desse quadro hoje de intolerância à prática que o PT desenvolveu ao longo dos anos. De intolerância, de ataque às pessoas”. Na avaliação do Ministro “O PT tem uma grande chance nesse momento de fazer um pedido de desculpas públicas (...) Gestou-se esse germe ruim da intolerância. Aprenderam na oficina dos diabos essa gente que hoje está aí, fascistóides atacando as pessoas”.18

Entretanto, tais investidas no sistema político não é uma característica isolada do Ministro Gilmar Mendes. Apenas para ficar no exemplo dessas duas lideranças do Supremo, podemos citar outras tantas declarações do Ministro Luís Roberto Barroso que, através de um estilo mais discreto e com ares mais intelectualizado, também passeia com bastante frequência nos labirintos da política. Uma dessas declarações controvertidas diz respeito à visão da sociedade e do STF sobre a corrupção no sistema político brasileiro.

Durante o seminário “Diálogos sobre Integridade”, o Ministro Barroso, se referindo à política brasileira, declarou que “Já conseguimos separar o joio do trigo. O problema é que muitas pessoas ainda preferem o joio”, destacou. Afirmou ainda que “Apesar da fotografia devastadora do momento, temos que olhar o filme. E o filme tem conquistas a celebrar e das quais devemos nos orgulhar. Em 30 anos, derrotamos a ditadura, a hiperinflação e parte da extrema pobreza. Portanto nenhuma batalha é invencível e, assim como derrotamos a ditadura a hiperinflação e parte da extrema pobreza, acredito que podemos derrotar a corrupção, reduzindo-a a níveis toleráveis”.19

Referindo-se aos escândalos revelados pela operação Lava Jato, disse que “Temos que ter vergonha do que aconteceu, mas temos que ter orgulho do que já fizemos. Já ganhamos esta batalha no campo de ideias”, frisou.20

Barroso destacou ainda o papel do judiciário nas mudanças recentes do país, mas que a classe política ainda não se conscientizou: “Acho que estamos mudando o Brasil. A sociedade deixou de aceitar o inaceitável. A classe política ainda não mudou. O Judiciário está mudando aos poucos”.

Ao falar da onipresença do Estado e de como os empresários buscam sempre apoio, bênçãos e financiamento dos órgãos públicos, Barroso foi categórico: “No Brasil, o que temos é a República da Parentada. Temos um capitalismo viciado em Estado. Capitalismo pressupõe risco, competição e igualdade. No Brasil predominam as desonerações, os financiamentos, etc. Isso não é capitalismo. Isso é socialismo para ricos. E aí vale aquela máxima: ’Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”.

Apesar do cenário conturbado da política brasileira o Ministro concluiu seu discurso com uma mensagem de otimismo e de esperança nas mudanças que vêm ocorrendo no Brasil: “É emocionante a demanda por integridade. Esse ímpeto de mudar as coisas. Nosso dever é não ceder antes de cumprida a missão que a História nos deu, de entregar um país melhor. Viver não é esperar a tempestade. É aprender a dançar na chuva”, destacou.21

Posteriormente, na mesma semana em que o STF deveria julgar um pedido de habeas corpus para o ex-presidente Lula, Barroso defendeu que a Suprema Corte brasileira precisaria interpretar a Constituição “em sintonia com o sentimento social”. “Numa democracia, todo poder é representativo, ou seja, é exercido em nome do povo e em interesse da sociedade. Consequentemente, a sociedade, via Constituição, deu poder à Suprema Corte, mas não é um poder para ela exercer por vontade própria. É preciso interpretar a constituição em sintonia com o sentimento social”. Para Barroso o “Juiz tem que construir essas soluções criativas e argumentativamente. É contingência dessa pluralidade. Não pode fazer por seu sentimento pessoal, precisa interpretar o sistema constitucional, escutar o sentimento social e construir solução constitucional adequadamente”.22

Tal como o faz Mendes, Barroso não se furtou igualmente em criticar os colegas. Afirmou que a Suprema Corte brasileira entrou na “fogueira das paixões políticas”. Isso porque teria competências que outras cortes constitucionais de outros países não possuem.23

Assim, em declarações distintas, o Ministro Barroso tanto afirma ser o Judiciário capaz de fazer a separação entre o que é bom e o que é mal para a sociedade como também dispõe de uma capacidade inusitada em oferecer soluções para os “problemas da vida”. O Ministro também conclama a Corte em sua missão de ouvir a opinião pública em sua demanda por integridade e patriotismo.

O discurso poderia ser atribuído a qualquer político cioso por uma aproximação, ainda que de forma simbólica, entre representantes e representados. Não sendo porém os membros da Corte eleitos democraticamente para auscultar “os sentimentos sociais”, o Supremo torna-se um dos representantes mais expressivos do legado aristocrático da contemporaneidade: os membros da corte são escolhidos por encarnar a condição de serem “os melhores”– “os aristóis" – para o exercício do cargo.24 Não se trata evidentemente de uma”herança de sangue" nos moldes dos antigos, mas muito mais o que Bourdieu chamaria de “herança de mérito”.25 À forma aristocrática pela qual os ministros são escolhidos para compor a corte, acrescente-se um conjunto de privilégios e liturgias do cargo que os faz parecer distintos dos demais poderes do sistema político nacional.26

Por outro lado, sendo a própria Constituição expressão do “sentimento social” de uma coletividade não é possível interpretá-la de acordo com valores subjetivos e personalistas dos magistrados. A fronteira entre o “sentimento social” de que fala Barroso e a Constituição soam como meros artifícios que legitimam ao aplicador da lei a possibilidade de fazer valer a sua vontade individual em nome de uma suposta “vontade geral”. A Constituição deve assim servir de farol para proteger o cidadão tanto de moralismos personalistas como de “racionalidades” autoritárias que atuam em nome de uma suposta vontade popular e do bem comum.

As consequências de posturas personalistas no campo jurídico ainda não foram amplamente analisadas. Mas certamente podemos afirmar que tal atributo não representa uma vantagem a ser contabilizada pelo regime democrático. Uma de suas características mais visíveis é o pressuposto de um projeto de poder cuja liderança estaria garantida ao seu principal beneficiado: o personagem que se faz compreender como acima dos mortais comuns, e dotado de poderes que o colocam no centro do Olimpo.

Vale lembrar que nas democracias contemporâneas, a busca por um “Filósofo Rei” ficou restrita aos escritos de Platão e às experiências totalitárias do ocidente. O regime democrático em seus fundamentos é criado e sujeito à vontade dos cidadãos que são a fonte de todo o poder político expresso pela soberania popular. Não há condições práticas nem institucionais, para um eventual “filósofo de toga” prescrever as conveniências morais ou partidárias de uma sociedade.

Assim, a fluidez da fronteira entre o cidadão e a magistratura, cede lugar não somente ao ativismo judicial e a judicialização da política, mas também ao personalismo e a participação política de atores que se sobrepõem aos demais poderes ao mesmo tempo em que lideram o perigoso movimento de migração da soberania popular – expressa pelo voto majoritário – em favor de um poder contra majoritário.

Esse é um dos principais desafios que as democracias contemporâneas têm que enfrentar: como estabelecer controles sociais, em um poder com vasta ascensão – não somente no Brasil, mas em boa parte dos países democráticos – e que, sob o manto da Constituição, influencia, altera e de certa forma dá a última palavra ao sistema político-social brasileiro.

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  1. Esse novo modelo constitucional é inspirado em sua origem na Lei Fundamental de Bonn, de 1949. Posteriormente a Constituição portuguesa de 1976 e a espanhola de 1978 seguem mais ou menos o mesmo padrão.

  2. Tais autores não esgotam o debate, contribuições importantes também foram dadas por Fabiano Engelmann, Ernani Carvalho e Maria Tereza Sadek.

  3. Aristóteles já tinha idealizado o modelo de separação dos três poderes que irá se consolidar na idade moderna.

  4. Vale sublinhar que a célebre teoria dos três poderes de Montesquieu teve como modelo a Constituição Inglesa que, por sua vez, foi inspirada nos estudos de John Locke.

  5. HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: Entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 310.

  6. RIBEIRO, Renato Janine. Entrevista. In: CORDEIRO, L.; COUTO, J. G. (Orgs.). Quatro autores em busca do Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

  7. Mensalão é o nome dado ao escândalo de corrupção política mediante compra de votos de parlamentares no Congresso Nacional, ocorrido entre 2005 e 2006, sendo objeto da Ação Penal número 470, movida pelo Ministério Público no Supremos Tribunal Federal.

  8. O ex-Ministro Joaquim Barbosa foi relator da Ação Penal número 470.

  9. A sessão discutia a proibição de doações eleitorais ocultas. Toda a confusão começou após uma fala de Gilmar Mendes, que criticava a decisão do STF de proibir empresas de doarem para campanhas eleitorais.

  10. MACEDO, Fausto; AFFONSO, Julia. Assista ao barraco quente entre Barroso e Gilmar no Pretório. Estadão, 26/10/2017. Disponível: politica.estadao.com.br. Acesso em 26/10/2017

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  12. MIGALHAS. Barroso x Gilmar – Entenda sucessão de fatos que deu ensejo à discussão. Migalhas, 19 de junho de 2018. Disponível em www.migalhas.com.br. Acesso em: 28/06/2018

  13. Folhapress. Veto a doações privadas é golpe petista, vota o ministro Gilmar Mendes. Folhapress, S.Paulo, 16/09/2015. Disponível em: www.gazetadopovo.com.br Acesso em: 15/11/2017

  14. BULLA, Beatriz; FERNANDES, Talita. Mendes vota a favor de financiamento privado de campanha. EXAME, 16 set 2015. Disponível em: exame.abril.com.br . Acesso em: 19 de janeiro de 2018.

  15. A lei torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos

  16. MASCARENHAS, Gabriela. Lei da Ficha Limpa parece ter sido feita por bêbados, diz Gilmar Mendes. Folha de São Paulo, São Paulo, 17/08/2016. Disponível: www1.folha.uol.com.br Acesso em: 10/01/2018

  17. G1, vale do Paraíba e região. Gilmar Mendes chama Tribunal Superior do Trabalho de “laboratório do PT”. G1, vale do Paraíba e região, 03/04/2017. Disponível: g1.globo.com Acesso em 10/01/2018

  18. CURY, Teo; LINDNER, Júlia; PUPO, Amanda; MOURA, Rafael Moraes; PIRES, Breno. Gilmar Mendes critica imprensa e diz que “é preciso acabar com a mídia opressiva”. Estadão, São Paulo, 04/04/2018 politica.estadao.com.br

  19. GOLÇALVES, Letícia. Barroso sobre a Lava-Jato: “Já conseguimos separar o joio do trigo”.POLÍTICA – Gazeta Online, 26/02/2018. www.gazetaonline.com.br

  20. GOLÇALVES, Letícia. Barroso sobre a Lava-Jato: “Já conseguimos separar o joio do trigo”.POLÍTICA – Gazeta Online, 26/02/2018. www.gazetaonline.com.br Acesso em: 28/02/2018

  21. GONÇALVES, Letícia. Barroso sobre a Lava Jato: “Já conseguimos separar o joio do trigo”. Gazeta Online, 26/02/2018 www.gazetaonline.com.br

  22. BEZERRA, Mirthani. Barroso diz que juiz deve ouvir “sentimento social” e que STF está na “fogueira das paixões políticas”. UOL Notícia, São Paulo, 02/04/2018. Disponível: UOL NOTÍCIA noticias.uol.com.br. Acesso em 10/04/2018

  23. BEZERRA, Mirthani. Barroso diz que juiz deve ouvir “sentimento social” e que STF está na “fogueira das paixões políticas”. Uol, São Paulo, 02/04/2018. Disponível em: <//noticias.uol.com.br/politica/ultimasnoticias/2018/04/02/barroso-diz-que-juiz-deve-ouvir-sentimento-social-e-que-stf-esta-na-fogueira-das-paixoes-politicas.htm>. Acesso em 10/04/2018

  24. Os aristóis eram aqueles de berço aristocrático e que detinha a palavra na Ágora (praça pública).

  25. O significado de “herança” aqui é colocado nos termos pensado por Pierre Bourdieu no livro “A distinção” no qual a herança cultural é decisiva para a reprodução da continuidade dos privilégios de classe e o mérito é visto como forma de encobrir as desigualdades sociais.

  26. Os maiores privilégios estão bem ancorados na magistratura e no Ministério Público Brasileiro. Além da invejável remuneração, eles ainda têm direito a um auxílio-moradia, independentemente de ter casa própria, abono de 10% do salário para gastos com saúde, auxílio livro, auxílio alimentação, além de férias de 60 dias anuais com abono de um terço do salário por cada período.

Resumo:
A expansão dos estudos sobre o poder judiciário no âmbito das ciências sociais e, em particular, da ciência política, aponta para os efeitos da supremacia de um poder contra majoritário sobre os demais poderes símbolos da soberania popular. Tendo como objetivo ampliar a discussão sobre o papel do judiciário nas democracias contemporâneas, o artigo procura mostrar que além das questões relativas à politização do judiciário expressamente analisadas pelos estudos sobre a judicialização da política e do ativismo judicial, cresce no Brasil um outro fenômeno ainda pouco estudado: o personalismo e a participação do poder judiciário na vida política do País.

Palavras-chave:
Judiciário; Democracia; Política.

 

Abstract:
The expansion of studies on the judiciary in the social sciences, and in particular in political science, underlines the effects of the supremacy of a contra-majoritarian power over the other powers which are symbols of popular sovereignity. The article intends to broaden the discussion on the role of the judiciary in contemporary democracies. It aims to show that – in addition to the issues related to the politicization of the judiciary, which are expressly analyzed by studies on the judicialization of politics and judicial activism – a new phenomenon is growing in Brazil expressed by personalism and the participation of the judiciary in the political life of the country.

Keywords:
Justice; Personalism; Democracy.

 

Recebido para publicação em 04/12/2018
Aceito em 13/02/2019.