Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.a07
ISSN: 2318-4620
Ganhando novos espaços:
a dinâmica do comércio informal de vestuário e calçados usados no
município de Lichinga
Agostinho
Lima
Universidade Pedagógica, Moçambique
viana.agostinho6@gmail.com
Joaquim Miranda
Maloa
Universidade Rovuma — Extensão de Niassa, Moçambique
joaquimmaloa@gmail.com
A actual situação socioeconómica de Moçambique caracterizada pelo aumento do nível de desemprego, a depreciação do metical face às principais moedas internacionais e os significativos “cortes a nível de vários sectores sociais fundamentais” (BRITO; CHIVULELE, 2017, p. 02), em consequência da redução da ajuda externa ao Orçamento do Estado (OE) e do Investimento Directo Estrangeiro (IDE), faz com que inúmeros moçambicanos, que na impossibilidade de obter um trabalho formal, recorram a certas alternativas de sobrevivência e de obtenção da renda como, por exemplo, o comércio informal. Outrossim, a crise económica que se fez sentir nos últimos anos, afectando directamente o sector formal e não só, contribuiu de forma significativa no crescimento da actividade informal, sobretudo, nas zonas urbanas e periurbanas.
Mosca (2010) e Amaral (2005) são unânimes em afirmar que o comércio informal resulta da incapacidade do estado e do sector formal de darem resposta às necessidades da população, principalmente na geração de emprego. No entanto, a realidade urbana moçambicana revela que o comércio informal é ainda uma actividade excluída dos processos de desenvolvimento, pois embora ela contribua “em mais de 80% para a taxa de emprego no país” (FRY, 2017) como também no “aumento nas condições de vida deste segmento da população” e na “oferta diversificada de produtos no mercado local. Produtos esses que, muitas vezes, não são ofertados no mercado formal local.” (MENDES; CAVEDON, 2014, p. 342).
É por essas razões que Mendes e Cavedon (2014) sustentam que o desenvolvimento local só é possível graças ao envolvimento de diversos atores e práticas múltiplas, que deem sustentação ao processo de melhoria econômica, de diminuição na desigualdade social, de aumento na qualidade de vida e de acesso a bens e serviços.
A semelhança dos demais centros urbanos do país, a cidade de Lichinga tem registado, nos últimos anos, uma notável expansão do comércio informal, sobretudo o de calçado e vestuário, nos passeios das principais avenidas e ruas da urbe. Essa actividade, que nos tempos transatos ocorria nos principais mercados periféricos da cidade, hoje ela vem ganhando uma considerável visibilidade ao longo dessa avenida condicionando, de certa forma, a mobilidade de pessoas e bens como também o saneamento do meio.
É desta forma que o artigo, procurou reflectir sobre o comércio informal de vestuário e calçado na cidade de Lichinga, identificando as principais mudanças que marcaram essa actividade bem como o seu contributo no bem-estar dos munícipes.
Para a realização do estudo, recorreu-se ao método etnográfico que, na visão de Mattos (2011), estuda preponderantemente os padrões mais previsíveis das percepções e comportamento manifestos em sua rotina diária dos sujeitos estudados. Outrossim, o método etnográfico “possibilita ao pesquisador adentrar no contexto sociocultural de seus informantes e conhecer seus valores, comportamentos, crenças e visões de mundo” (SOUSA; BAROSO, 2008, p. 151).
Desta feita, a adoptação desse método permitiu aos pesquisadores captarem, na sua interação com os informantes, as diferentes percepções sobre o comércio informal na cidade de Lichinga e, consecutivamente, compreender os factores que determinam a ocorrência dessa prática. Assim sendo, definiu-se como técnicas de recolha de dados o diário de campo, a observação participante e a entrevista semi-estruturada. O uso do diário de campo urge da necessidade dos pesquisadores registrarem todos os eventos, com destaque para conversas, discussões e negociações de preços, por eles vivenciados. É nesse contexto que a observação participante constituiu uma técnica necessária para que o pesquisador pudesse “entender e validar o significado das ações dos participantes, de forma que este seja o mais representativo possível do significado que as próprias pessoas pesquisadas dariam a mesma ação, evento ou situação interpretada” (MATTOS, 2011, p. 51).
Quanto às entrevistas, estas foram dirigidas aos comerciantes e clientes. Este exercício consistiu na discussão dos principais pontos de interesse dos pesquisadores dando aos informantes a liberdade de expressarem as suas visões e opiniões sobre o comércio informal da cidade de Lichinga bem como as razões que os levaram a optar por essa actividade. Dessa forma, deu-se seguimento a visão de Gil (2008), segundo a qual, as entrevistas semiestruturadas guiam-se por uma relação de pontos de interesses que o entrevistador vai explorando ao longo do seu curso. Para este autor, o entrevistador deixa o entrevistado falar livremente à medida que se refere aos pontos assinalados.
Para além das técnicas, acima referenciadas, recorreu-se a consulta bibliográfica com vista na familiarização dos pesquisadores com o tema bem como o levantamento de elementos de discussão. Esta perspetiva é alicerçada por Fonseca (2002 apud GERHARDT; SILVEIRA, 2009) segundo o qual a pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e publicadas, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto.
Na discussão sobre a “informalidade”, Abreu (2007) associa o termo a toda actividade desenvolvida à margem da formalidade, por cidadãos de baixo rendimento, fraca formação académica e profissional, e pertencentes a agregados familiares relativamente numerosos.
Igualmente, Mosca (2010) define a informalidade como sendo todas as relações de natureza económica, jurídica, social ou burocrática que, não estando reguladas parcial ou totalmente, existem e fazem parte das regras de funcionamento da sociedade e contribuem para que os padrões de reprodução da sociedade e economia persistam.
Nessa perspectiva, assiste-se na economia moçambicana a coexistência dos sectores formal e informal, também designados por mercado de trabalho formal e informal, pese embora este último seja ainda dado uma reduzida atenção. Esta situação resulta, de certa forma, do facto do sector informal agregar “todas as formas de trabalho remunerado que se encontram à margem da legislação social e trabalhista” (BARBOSA, 2009, p. 30).
Nos diversos estudos sobre a temática, é comum a definição do sector informal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1991, apud NHACA, 2016, p. 23), como sendo o conjunto de unidades de pequena escala que produzem e distribuem bens e serviços e é composto essencialmente por produtores independentes e que operam por conta própria e empregando mão-de-obra familiar e/ou poucos trabalhadores, funcionando com reduzida e baixa produtividade, tendo receitas bastantes irregulares.
Ainda assim, Correia e Lopes (2009) reconhecem a dificuldade de se encontrar um conceito exato sobre o mercado de trabalho informal, dada a variedade de definições utilizadas nos trabalhos existentes. Essa perspectiva é também comungada por Amaral (2005), segundo o qual, há ainda hoje quem conteste a expressão sector informal, sobretudo porque ela abarca um leque muito vasto de actividades.
Nas cidades dos países em desenvolvimento, com manifesta dificuldade do Estado e do sector dito formal darem respostas às necessidades básicas da população, o sector informal supre essas faltas, quer nas áreas da produção (agricultura peri-urbana, artesanato e formas industriais simples), da distribuição (comércio e serviços), da construção (habitação), dos serviços sociais (educação e saúde) e, sobretudo, do emprego gerador de oportunidades salariais de uma grande parte da população, muitas vezes a maioria dos habitantes de uma aglomeração urbana (AMARAL, 2005, p. 58)
Contudo, Francisco e Paulo (2006) concluem que a actividade informal: i) assegura emprego; ii) é uma fonte de iniciativa criadora com elevado potencial de criação de riqueza; iii) emerge como reacção inevitável à carga fiscal não distribuída equitativamente pela população economicamente activa; iv) proporciona preços baixos e alternativas comerciais competitivas; v) insere os pobres no consumo e melhora seu poder de compra.
Na visão de Soares (2008 apud LIMA; COSTA, 2016, p. 311), a crise do capitalismo1 registada na década de 1970 e a, consequente, dificuldade para a retomada do aumento da taxa de lucro, condicionou a emergência de um novo modo de acumulação, conhecido por trabalho informal, “ampliado drasticamente entre meados dos anos 1980 e toda a década de 1990, foi a alternativa de sobrevivência diante da incapacidade do sistema capitalista de absorver a mão-de-obra ativa existente e da falta de políticas públicas capazes de inserir os trabalhadores no mercado formal” (OLIVEIRA, 2005, apud LIMA; COSTA, 2016, p. 311).
No que concerne a Moçambique, a literatura revela que nas décadas de 1970 e 90, o país registrou a ocorrência de calamidades naturais e a guerra civil, desencadeada pela RENAMO, que de certa forma impulsionaram a migração massiva de pessoas e bens do campo para os principais centros urbanos agravando, cada vez mais, as condições de vida dos cidadãos e da economia, sobretudo, no aumento da taxa de desemprego. Com vista a reverter este cenário, o governo moçambicano passou a desenvolver significativas acções, com destaque para a criação do Programa de Reabilitação Económica (PRE) em 1987. De acordo com Jairoce (2016), o PRE visava não só essencialmente a liberalização dos preços como também a adoção de políticas macroeconómicas restritivas no que diz respeito às finanças públicas, emprego, salário e preços, moeda e crédito.
Para Chichava (1998, apud MAPOSSE, 2011), a implementação desse programa, em 1987, impulsou, de certa forma, o desenvolvimento de actividades informais no país, pois “permitiu que a economia informal saísse da clandestinidade e do subterrâneo a que estava remetida, isto é, converteu parte da economia nacional reprimida em economia informal consentida, pois, antes dessa evolução, não se distinguia mercado negro (ilícito, criminoso e delituoso) de economia informal consentida” (FRANCISCO; PAULO, 2006, apud MAPOSSE, 2011, p. 21).
Esse pensamento é também comungado por Sulemane (2001, apud ABREU, 2007) segundo o qual o período de recuperação, que começou em 1987, relacionou‑se também com o início das reformas económicas e o florescimento das actividades informais nas zonas urbanas, ao mesmo tempo que o emprego formal, na agricultura e na indústria, decrescia.
Actualmente, a continuidade e expansão do sector informal em Moçambique justifica-se pela “incapacidade, do que se chama de economia formal, em absorver o factor trabalho e de gerar rendimentos” (MOSCA, 2010, p. 85), como também da “carga tributária elevada, excesso de burocracia, ineficiência na administração pública, proibição legal de algumas atividades, etc” (ABREU, 2007, p. 46).
Assim sendo, percebe-se nas ideias dos autores, acima aludidos, que o sector informal está associado a um conjunto de actividades, das quais o comércio, desenvolvidas com vista a garantir a sobrevivência de um determinado grupo de indivíduos, com fraca formação académica e profissional.
A cidade de Lichinga, capital da Província de Niassa, que situa-se ao norte de Moçambique, possui uma superfície de 290 km² e uma população global de 213,361 habitantes, distribuídos em 4 Postos Administrativos e estruturados em 15 bairros. A população da cidade de Lichinga, passou de 142,331 para 213,361 habitantes, entre 1997-2017, o que corresponde a um acréscimo de 50% (um aumento absoluto de 71,030 habitantes), e uma taxa média de crescimento anual de 4,13% (MALOA, 2019). Note-se que a grande parte da população, falante da língua Yao, tem a actividade agrícola e o comércio informal, sobretudo de bens agrícolas, como a sua fonte de subsistência.
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Mapa 1: Cidade de Lichinga |
Fonte: Masquete (2017). |
Em termos de limites, a cidade de Lichinga é contornada totalmente pelo distrito de Lichinga, designadamente: a Norte pela localidade de Lussanhando; a Este pelos Postos Administrativos de Lione e Meponda; a Sul e a Este pelo Posto Administrativo de Chimbonila (MUNICÍPIO DE LICHINGA, 2011: 01).
Antes de 2010, a cidade de Lichinga esteve marcada pela fraca existência de lojas ou estabelecimentos comerciais, especialmente de vestuários e calçados. Nessa época, os mercados periféricos de Chiuaula, Namacula e, em poucas vezes, o de Sanjala e Central eram os principais centros de venda e de atraccão de vestuários e calçados usados, importados dos países europeus e da China, comumente designados por “calamidade”2 ou simplesmente caundjica.
Com o passar do tempo, começou a assistir-se uma forte expansão dessa prática comercial nas principais avenidas da urbe, com destaque para a avenida Julius Nyerere, popularmente designada por rua do mercado central. Isto, deveu-se ao facto desta avenida concentrar um maior número de infraestruturas, administrativa e comerciais e, por conseguinte, registar um maior fluxo de indivíduos, tornando-se um espaço preferencial dos vendedores, inicialmente oriundos das províncias de Nampula e Zambézia.
Em Nampula, está de população que faz o mesmo negócio e o negócio é diferente de cá, porque quando chegamos aqui em Lichinga, não havia comerciantes de sapato. Fomos nos que iniciamos com a bolada de sapato e roupa, os nativos não tinham iniciativa da tal coisa, por isso o rendimento de cá e lá é diferente, a qui rende mais. (Vendedor B, de calçado, de 23 anos, proveniente de Nampula).
Outrossim, a medida em que o comércio de vestuário e calçado ia se expandindo — dos mercados periféricos para as ruas e avenidas da urbe, devido a entrada de novos intervenientes (comerciantes) nessa atividade comercial — ocorria simultaneamente a estruturação do seu mercado, em uma cadeia de intervenientes (comerciantes) que parte do formal para o informal, a saber:
Importadores: a Associação Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP) — Moçambique, que importa e comercializa embalagens de artigos, comumente designado por “fardo”, provenientes dos países europeus, e as lojas e empresas do país vizinho Malawi que importam e comercializam artigos provenientes da China. De acordo com os nossos entrevistados, as embalagens dos artigos (vestuários e calçados) provenientes da europa caracterizam-se por apresentar altos custos de aquisição — que variam de 130 mil a 150 mil meticais em função do peso (que parte de 300kgs a 500kgs) — e uma variedade de peças segundo a idade, o sexo, altura e massa corporal e a utilidade do artigo. Ao passo que, os “fardos” de vestuários e calçados de proveniência Chinesa apresentam baixos custos de aquisição, com preços que variam de 8 mil a 15 mil meticais devido aos pesos que estes apresentam (que partem de 45kgs a 75kgs) e ao facto das embalagens estarem discriminadas segundo o sexo (masculino e feminino) e a faixa etária (adulto e infantil).
Fornecedores: particulares ou indivíduos que adquirem as embalagens/fardos a grosso no país vizinho Malawi e revendem localmente para aqueles que têm os mercados e a feira como postos fixos de venda.
Comerciantes informais fixos: indivíduos responsáveis pela abertura das embalagens/fardos e, posteriormente, venda das peças a retalho em estendais/varais e nos passeios (expostos no chão). Note-se que após a abertura da embalagem, segue o processo de seleção e, simultaneamente, a atribuição de preços aos artigos, de acordo com a faixa etária, o sexo, a qualidade, a condição do artigo (novo ou gasto) e a beleza (estilo/moda). Nessa fase, são notificados os comerciantes ambulantes que para além de auxiliarem na seleção, lhes é reservado o direito de adquirirem as peças de melhor qualidade e beleza, enquanto o público, no geral, procede com a apreciação e compra dos artigos por estes selecionados. Por tratar-se de espaços públicos (ruas), a apreciação ou avaliação das peças, por parte dos clientes, ocorre de duas maneiras: para artigos (como calçados, camisete, camisolas, casacos) que não exigem a remoção da roupa trajada, os clientes tendem a experimentar no local, ao passo que para peças interiores ou que exigem a exposição do corpo, a sua apreciação é feita por meio de observação.
Ambulante: indivíduos altamente informados das tendências da moda e dos preços, que adquirem peças de roupa e calçados dos comerciantes informais fixos para revenderem aos potenciais clientes. Geralmente, os comerciantes ambulantes adquirem as peças em função do perfil e pedido dos seus clientes (fixos) que na sua maioria são indivíduos com algum poder aquisitivo.
Note-se que, o ato de compra e venda dos artigos entre os comerciantes fixos e os ambulantes e destes com os clientes é marcado por um processo de negociação dos preços onde, por regra geral, o cliente tende a influenciar o vendedor no intuito de obter o artigo a menor preço possível. Por essa razão, os preços dos artigos são estipulados tendo em conta os custos de aquisição, o lucro e a margem de desconto (valor acrescido).
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