Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.a02
ISSN: 2318-4620

 

 

A melancolia da esquerda resignada:
reflexões sobre reformismo e neoliberalismo

 

Luan Cardoso Ferreira OrcID
Universidade Federal Fluminense, Brasil
luan-cf@hotmail.com

 

Introdução

O estatuto contemporâneo da dimensão política, da disputa por projetos de sociedade, é entendido por muitos como sendo frágil. O imperativo thatcheriano da total ausência de alternativa (mobilizado por meio de coerção e consenso) parece ter consumido as mais diversas concepções de mundo — pela articulação de uma nova racionalidade que muitos chamam de “neoliberalismo” (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse sentido, certos autores vêm dando destaque a estudos sobre a força ideológica na sociedade, propondo uma articulação entre teorias psicanalítica e política1 — reconhecendo a inevitabilidade da dimensão subjetiva nos estudos sociais e, ao mesmo tempo, propondo um esforço a mais para tentar entender os diversos níveis das formas política e ideológica. Uma destas propostas de articulação psicanalítico-política resulta no diagnóstico de que existiria um processo de melancolia em segmentos da esquerda na contemporaneidade Ocidental.

Segundo a cientista política estadunidense Jodi Dean (2013), isto significa dizer que tal esquerda teria cedido em seu desejo de transformar a sociedade, submetendo-se às estruturas de dominação material-ideológica. Ao ceder em seu desejo de mudança, ela teria apenas transformado o próprio desejo numa repetição excessiva e acomodada do status quo. Ou seja, tal esquerda passaria por uma situação análoga ao quadro psicanalítico da melancolia: cede em seu desejo, abre mão do objeto estimado por si e passa por um processo de autoacusação, um autoataque, produzido para fugir do sentimento de culpa que vem da abdicação do desejo. O amor, antes investido no desejo, converte-se numa espécie de sadismo em que o próprio eu é assumido como objeto de menosprezo — em outras palavras, um masoquismo. A estima amorosa ao objeto é convertida, portanto, num repetido ódio contra si mesmo, como forma de fugir do sentimento de culpa pelo abandono do próprio desejo.2

Aquilo que entra em cena na melancolia, de acordo com esta reflexão, é um tipo de jogo com o qual o sujeito repete um processo masoquista para tentar lidar com a falta que o abateu após ter cedido naquilo que deseja. Em síntese, podemos dizer que o desejo é sublimado — passa por um processo subjetivo de reformatação — e limitou-se a ser pulsão, um impulso compulsivo com o qual o sujeito se satisfaz repetidamente.

Na psicanálise, a dimensão pulsional é aquela na qual o sujeito se satisfaz (goza) pela repetição excessiva da falta que o arrebata. Um famoso exemplo — notavelmente discutido por Sigmund Freud em Além do princípio de prazer (1987 [1920]) e por Jacques Lacan em seu Seminário 11 (1996) — é o da criança que, tendo que ficar sozinha em casa após a mãe ir trabalhar, cria um jogo no qual arremessa repetidamente um carretel de madeira e, em seguida, o puxa de volta com um barbante amarrado. Enquanto reproduz esta cena, a criança permanece tentando pronunciar as palavras “fort” e “da” (vai/ausente e volta/presente) — fazendo com que o caso ficasse conhecido na literatura psicanalítica como caso do jogo ou da criança “fort-da”, fiel às palavras em alemão —, satisfazendo-se numa simbolização da presença e da ausência da mãe, seu objeto de desejo. Aqui, portanto, a própria falta é assumida como objeto com o qual o sujeito goza.

Desde esta racionalidade, Dean (2013) entende que a dimensão pulsional da esquerda melancólica na contemporaneidade pode ser perceptível na repetição masoquista dos fundamentos da democracia burguesa e da ideologia dominante, que limitam sua ação política a iniciativas atomizadas e/ou individualmente acalentadoras. Podemos sintetizar a tese da autora ao citar a seguinte passagem:

Esta esquerda substituiu compromissos com as lutas igualitárias e emancipatórias dos trabalhadores contra o capitalismo — compromissos que nunca foram totalmente ortodoxos, mas sempre divididos, conflituosos e contestados — com uma atividade incessante (não diferente da mania que Freud também associa à melancolia), e agora se satisfaz com criticismo e interpretação, projetos pequenos e ações locais, questões particulares e vitórias legislativas, arte, tecnologia, procedimentos e processos. Ela sublima desejo revolucionário em pulsão democrática, nas práticas repetitivas oferecidas como democracia (seja representativa, deliberativa ou radical). Já tendo cedido à inevitabilidade do capitalismo, ela visivelmente abandona “qualquer poder de ataque contra a grande burguesia”, para retornar à linguagem de [Walter] Benjamin. Para esta esquerda, o gozo vem de sua abdicação de responsabilidade, sua sublimação de objetivos e responsabilidades nas práticas fragmentadas de micropolíticas, autocuidado e sensibilização. Perpetuamente desprezada, prejudicada e perdida, esta esquerda permanece presa na repetição, incapaz de se livrar dos circuitos da pulsão nos quais foi pega — incapaz porque ela goza com isso (DEAN, 2013, p. 87).

Em seu argumento, a autora retoma diretamente reflexões de Walter Benjamin acerca do tema. Por exemplo, em Melancolia de esquerda — resenha sobre um livro de poemas de Erich Kastner —, Benjamin (1987) descreve de maneira crítica a posição melancólica como sendo uma abstenção de se engajar efetivamente na luta pela transformação social, e isto em razão de um ganho secundário. Em suas palavras, tal melancolia passa pela “conversão de reflexos revolucionários (...) em objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo” (BENJAMIN, 1987, p. 75) — operação dupla por meio da qual se “vende” a “inteligência” e os “sentimentos” de indignação ao mesmo tempo em que se afasta do “movimento operário”. Desta maneira, abandonam-se perspectivas radicais de ação política em favor de um “fatalismo” e de uma “furtiva atitude de cortejar a conjuntura” (BENJAMIN, 1987, p. 77) — processo que, para Benjamin, deriva de uma sujeição à “rotina”, aos modos de dominação existentes.3

Então, no presente trabalho, tomamos tais marcos como referências de análise para ensaiar (em associação ao campo da economia política) uma proposta de interpretação histórica sobre três momentos da trajetória recente da luta de classes — a ascensão do Estado de bem-estar no pós-guerra, sua queda e o programa neoliberal de austeridade —, refletindo sobre os lugares que certa esquerda ocidental veio ocupando ao longo dos mesmos e sobre seu papel na reconfiguração da sociedade — principalmente a sociedade do norte global. Guiamo-nos pela hipótese segundo a qual as posições de “reformismo” socialdemocrata e de “neoliberalismo de esquerda” sejam exemplos de resignação (em graus variados) à estrutura capitalista e à ideologia dominante. Nosso objetivo é refletir sobre desafios para a assunção de uma concepção de mundo revolucionária na política, introduzindo o conceito psicanalítico de melancolia como uma referência teórica relevante para análises nesta temática — debate que também se situa no campo da subjetivação política (“conscientização”).

A sociedade no pós-guerra

Neste tópico, realizaremos um breve retorno à organização social do século XX, com ênfase na segunda metade do século. Buscaremos, assim, compreender um panorama da sociedade organizada pelo Estado de bem-estar e pelas políticas econômicas keynesianas, descrita saudosamente por alguns como os “Trinta Gloriosos” anos do capitalismo europeu-estadunidense4 (PIKETTY, 2014). Passaremos por alguns de seus pontos característicos para, em seguida, discutirmos sobre a queda deste modelo social.

Ascensão do Estado de bem-estar social

O início do século XX foi marcado por dois grandes acontecimentos que marcaram e ainda marcam a sociedade: as guerras mundiais e a Revolução Russa. A desigualdade de riquezas na Europa e nos Estados Unidos, ou seja, a concentração de riqueza nos estratos mais altos da sociedade em detrimento da esmagadora maioria da população, antes da Primeira Guerra, chegava a níveis equiparáveis aos do Antigo Regime — um quadro que começou a mudar na década de 1910 (PIKETTY, 2014).

Segundo Domenico Losurdo5 (2013), a compulsão à acumulação capitalista, fundamento da expansão colonialista, dialeticamente teve por efeito a formação de um obstáculo a esta mesma acumulação para a Europa: o autor entende que a Primeira Guerra surgiu como consequência de disputas das potências colonialistas sobre o domínio e repartição das colônias, com a Segunda Guerra sendo consequência do desenrolar das antigas disputas. Por isso, o autor indica que alguns historiadores pontuam no ano de 1914 o início de uma Segunda Guerra dos Trinta Anos, que se alastraria até 1945 e se aclimaria apenas após o fim da União Soviética e o triunfo da hegemonia norte-americana (LOSURDO, 2013).

Nesse período, os níveis de desigualdade de riquezas, extremamente altos, diminuíram em alguma medida — nas palavras de Piketty, esta desigualdade foi reduzida “a um nível até então inédito, a tal ponto que foi possível para cerca de metade da população passar a deter um mínimo de riqueza” (PIKETTY, 2014, p. 340-341). Além disso, a eclosão da Guerra representou mais um perigo à legitimidade do capitalismo, agora em seu próprio centro, tendo exposto em maior grau o caráter violento da reprodução ampliada do capital.

Este contexto de relativa dificuldade econômica e política na Europa — somada a uma eficiente organização popular crítica de tal dificuldade — foi propício para o surgimento de outro grande abalo ao capitalismo, vindo de um território de proporções gigantescas: a Revolução Russa. O levante popular bolchevique foi mobilizado em oposição à exploração econômica e à opressão política que, segundo Losurdo, “eclode na esteira da luta contra o primeiro conflito mundial” (LOSURDO, 2013, p. 68). Nesse sentido, além da crítica aos sistemas distributivo e produtivo, ele surgiu também como expressão de uma revolta contra a exclusão que o sistema político hegemônico impunha à população: em suas práticas, foi contra a exclusão das mulheres, dos não-brancos6 e contra a cidadania censitária — ou seja, uma luta em favor do reconhecimento da plena dignidade humana.7 Um dos supostos objetivos da democracia moderna, a superação destas três grandes discriminações (sexual, racial e censitária), parece ter sido realizado justamente neste momento com a União Soviética, ao mesmo tempo em que tais exclusões existiam nos sistemas políticos de países do norte global — como Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha (LOSURDO, 2013).

A Revolução de 1917 fortaleceu a faísca da revolta popular, que já era uma chama considerável em vários países, demonstrando ser possível ao povo lutar por outra estrutura social, respeitosa da dignidade humana. Na chave do anticolonialismo, a própria União Soviética expressava um “apelo à luta de libertação, dirigido aos escravos das colônias e aos ‘bárbaros’ presentes na própria metrópole capitalista” (LOSURDO, 2013, p. 35), tendo encarnado um lugar influente de referência para os movimentos anticolonialistas, antirracistas e terceiro-mundistas que ascenderam no século XX, também assumindo atitudes práticas de solidariedade em seu favor — programas internacionais de educação e formação, organização de congressos, encontros e grupos específicos, etc..8 Também por isso, tal apelo só poderia “soar como uma ameaça mortal, simultaneamente, à raça branca, ao Ocidente e à civilização enquanto tal” (LOSURDO, 2013, p. 35) — ao menos para os senhores da classe dominante.

Não é sem motivo, portanto, que diversos autores e personalidades da época sustentaram discursos políticos que eram, ao mesmo tempo, anticomunistas e racistas. Citamos como exemplos Oswald Spengler (historiador que interpreta a Revolução Russa como um levante racial contra os brancos e a civilização ocidental, publicamente elogiado pelos ex-presidentes Harding e Hoover, dos Estados Unidos), Henry Ford (que classificou a origem da Revolução Russa como sendo racial e não política) e mesmo Hitler (que entendia o comunismo como também um ataque dos “povos bárbaros” à supremacia branca) (LOSURDO, 2013).

É partindo de tal entendimento que Losurdo atribui a Lênin o êxito em jogar “luz sobre o fato de que, no próprio âmbito da metrópole imperial, continuam existindo cláusulas de exclusão da cidadania e da democracia” (LOSURDO, 2013, p. 38). Por isso mesmo, teria sido arriscado demais para a classe dominante europeia não ter tomado alguma atitude para se defender. Em um contexto de crise econômica — intensificada pela Grande Depressão de 1929 —, crise política e grandes mobilizações populares contra a exploração e a opressão (por parte de sujeitos não-melancólicos), optou-se por tomar uma posição de concessão. A classe dominante europeia entendeu que não estava em condições de atingir idealmente os seus interesses e, portanto, com medo de sua própria derrubada, se sentiu obrigada em ceder a determinados avanços populares. De acordo com algumas análises, este teria sido o momento de maior consideração, pelo capitalismo, por pautas populares, com a consolidação dos direitos civis, sociais e políticos da população: a ascensão do Estado de bem-estar (STREECK, 2013).

Nas palavras de Wolfgang Streeck: “O capitalismo após 1945 encontrava-se numa situação defensiva em todo o mundo. Tinha de se esforçar em todos os países do Ocidente, então em formação, para conseguir prolongar e renovar sua licença social” (STREECK, 2013, p. 27). O autor aponta para um aspecto importante do funcionamento do capitalismo, que é a dimensão da legitimidade; ou seja, é necessário haver algum domínio ideológico e consenso mínimo em torno da utilidade deste sistema para que ele se mantenha, o que aponta para o seu próprio caráter artificial e não natural. Em suas palavras sintéticas:

o capitalismo pressupõe um contrato social no qual as expectativas recíprocas do capital e do trabalho, de dependentes do lucro e dependentes do salário estão estabelecidas de forma mais ou menos explícita, na forma de uma constituição econômica formal ou informal. O capitalismo — ao contrário daquilo que as teorias económicas e as ideologias querem fazer acreditar — não é um estado natural, mas sim uma ordem social que, estando associada a determinado tempo, necessita de ser formada e legitimada: é concretizada em formas que variam conforme o lugar e ao longo da história, podendo, em princípio, ser sempre negociada de novo e estando permanentemente ameaçada de ruptura (STREECK, 2013, p. 27).

O momento do pós-guerra, portanto, talvez possa ser entendido como aquele no qual o capitalismo foi renegociado frente à “ameaça de ruptura”. O caráter desta renegociação incutiu termos mais benéficos que antes para o lado dos “dependentes do salário” — sem transformar sua própria qualidade de dependentes — como preço a ser pago para a manutenção do contrato, em razão dos riscos representados por “uma classe trabalhadora fortalecida na sequência da guerra e da concorrência de sistemas” (STREECK, 2013, p. 27). De maneira geral, esta variação do capitalismo foi feita, de um lado, por meio da aceitação parcial de algumas políticas socialdemocratas — saúde pública, educação pública, redistribuição, busca de pleno emprego, alguma progressividade nos impostos etc. — e, de outro lado, pelas políticas econômicas keynesianas — investimento estatal direto para o crescimento, fomento a novos empregos, proteção às imprevisibilidades do mercado, imposição de alguma disciplina ao sistema financeiro etc. (STREECK, 2013). Na dimensão da institucionalidade política, este é o momento em que se passa a buscar a superação das três grandes discriminações (racial, sexual e censitária) de maneira geral na Europa, tal como entende Losurdo (2013).

Para Piketty (2014), a diminuição na concentração de riqueza que ocorreu neste momento (que já começa lentamente na década de 1910) seria uma explicação pelo menos parcial para “o grande otimismo que dominou a Europa durante os Trinta Gloriosos” (PIKETTY, 2014, p. 341). Na concepção de determinados segmentos sociais, “havia a impressão de que o capitalismo, as desigualdades e as sociedades de classe do passado tinham sido ultrapassados” (PIKETTY, 2014, p. 341), ainda que não tivesse havido ruptura alguma com o sistema produtivo, mas sim mudanças distributivas.

Um diagnóstico similar a este é apresentado também por Streeck (2013), que discute o tema a partir de uma análise crítica das reflexões da Escola de Frankfurt — compartilhadas, em algum nível, pelos economistas keynesianos — sobre as teorias da crise. Para esta Escola, a questão da crise na sociedade não seria mais da dimensão da produção, mas sim da legitimação (STREECK, 2013) — ou seja, eles entendiam que a preocupação última do capitalismo diria respeito não mais às crises de acumulação, mas sim à busca de uma maneira de consolidar ideologicamente a legitimidade de seu sistema para a população.

Nesse sentido, ao assumir que a dimensão produtiva, da acumulação, não geraria mais crises (de superprodução/superacumulação/superpobreza), a teoria social de Frankfurt sugeriria uma reinterpretação do capitalismo como uma “máquina de prosperidade dominável do ponto de vista tecnocrático, que pode ser mantida em funcionamento regular e isenta de crises, com ajuda do conjunto de instrumentos keynesiano que permite uma interação ordenada dos Estados e das grandes empresas” (STREECK, 2013, p. 20), um “sistema de gestão tecnocrática da economia — uma nova espécie de ‘capitalismo de Estado’” (STREECK, 2013, p. 21). Nestes termos, a única crise possível seria a crise de legitimação.

O que Streeck aponta é que tais teorias não deixavam de ser críticas ao capitalismo, porém assumiam que “o ponto de ruptura do capitalismo já não se situava na sua economia, mas sim na sua política e na sua sociedade: não do lado da economia, mas da democracia, não do capital, mas do trabalho” (2013, p. 22) — sugerindo uma proposta de mudança nas táticas da luta, tendendo propriamente para uma posição de defesa da possibilidade de se superar o sistema econômico por meio exclusivo das reformas sociais. Esta questão é reconhecida por Streeck (2013) como causa para a ênfase dada pelos autores da Escola aos estudos de teorias da democracia e da comunicação, que substituíram estudos do campo da economia política (ao invés de complementá-los).

Por mais bem elaboradas que tenham sido suas teorias, a maneira pela qual a configuração capitalista mais uma vez se transformou na década de 1970, desestruturando o Estado de bem-estar, contradisse o diagnóstico de Frankfurt. Segundo Streeck:

O problema das teorias da crise de Frankfurt nos anos 70 residia no facto de não terem atribuído qualquer intencionalidade e capacidade estratégica ao capital, uma vez que o tratavam como aparelho e não como agência, como meio de produção e não como classe (STREECK, 2013, p. 24).

Desmonte da ilusão dos “gloriosos”

A renegação da capacidade de ação do lado do capital levou os teóricos de Frankfurt e os economistas keynesianos a serem surpreendidos com o estabelecimento de uma crise na organização capitalista que não foi consequência da crise de legitimidade por parte dos trabalhadores. O que ocorreu foi justamente o contrário. No período do fim da década de 60, marcado por intensas reivindicações populares e greves, a classe dominante passou a olhar tais mobilizações como consequências de:

uma fase demasiado longa de crescimento sem crises e de pleno emprego garantido e como a expressão da atitude crescentemente descomedida por parte dos trabalhadores que a prosperidade e o Estado-Providência tinham habituado mal. Os trabalhadores, por seu lado, acreditavam estar apenas a insistir naquilo que entendiam como o direito civil democrático a aumentos salariais periódicos e a uma melhoria constante da sua segurança social. A partir daí, as expectativas do trabalho e do capital afastaram-se (STREECK, 2013, p. 28).

Como o próprio estabelecimento do Estado de bem-estar foi entendido, nos termos deste artigo, enquanto uma atitude defensiva da classe dominante, uma tentativa de não ruptura com o capitalismo por meio de concessões à classe trabalhadora — como sintetiza Streeck, um “casamento forçado” (2013, p. 16) —, parece ser intuitivo reconhecermos também que, em condições mais propícias, tal classe não demoraria em assumir a ofensiva novamente, em busca do ideal do aumento de seu lucro e da acumulação. Por este motivo, Streeck afirma que “não foram as massas que se recusaram a seguir o capitalismo do pós-guerra, acabando com ele, mas sim o capital” (STREECK, 2013, p. 22). A classe capitalista considerou esgotada a sua margem para concessões, preparando seu abandono desta situação de sujeição à política democrática, buscando sua liberdade frente à passividade que se sujeitava até então.

A questão fundamental se colocava nos seguintes termos: “desistir de lucros, para manter o pleno emprego, ou conceber — com elevados custos — a produção e os produtos de forma a garantir emprego seguro” (STREECK, 2013, p. 29). Para os capitalistas, a escolha era óbvia. Nesse sentido, na onda das reivindicações do Maio de 68 contra a burocratização e o autoritarismo, em favor da liberdade, da autonomia e da escolha pessoal, houve uma cooptação das pautas populares para o implemento de reformas — ou melhor, contrarreformas — que “conduziram — sob o manto de uma ‘flexibilização’, alegadamente há muito necessária, das instituições e da ‘ativação’ do potencial da mão-de-obra — a uma profunda revisão do Estado-Providência das décadas do pós-guerra” 9 (STREECK, 2013, p. 30). O que ficou claro neste movimento foi que a classe capitalista tinha muito mais condições para retomar com força a agenda de seus interesses verdadeiros do que o restante da população tinha condições para defender os seus — mesmo porque, como nota Piketty (2014), muitas pessoas chegaram a acreditar que o capitalismo havia cedido às reivindicações do Maio de 68.

Portanto, a crise iniciada na década de 1960 e o subsequente desmantelamento do Estado de bem-estar parecem ter provado que a tese da Escola de Frankfurt — de que o capitalismo teria se tornado um sistema passível de ser gerido tecnocraticamente ao bel-prazer da democracia burguesa — não estava correta. Provava-se, ainda, que, ao renegar a capacidade de mobilização política do capital (o capital como classe e não como coisa), tal tese chegou a ser ingênua.

De fato, avaliar os erros de uma interpretação no momento em que ela é proposta certamente é mais complexo do que avaliar, hoje, as falhas de uma tese passada. Entretanto, não podemos deixar de reconhecer que, no momento em que se renegou o campo da economia política, Frankfurt já abandonou a dimensão da análise concreta para se proteger no idealismo, acreditando ser possível superar o antagonismo sem um esforço de ruptura — ou, em outros casos, pior: não lutar pela ruptura em razão do mito melancólico da conciliação de classes. Nesse sentido, também é importante reconhecermos que a tese frankfurtiana da crise não era a única existente na época.

Hegemonia neoliberal

De outro lado — em um texto menos ingênuo escrito em 1943 e dedicado a uma análise crítica das teorias do pleno emprego —, Michael Kalecki entendia que o grande problema de políticas com tal fim seria a oposição que os business leaders fariam, sendo o autor preciso sobre o desenrolar deste conflito. Abaixo, reproduzimos um trecho sintético de seu argumento:

é provável que se encontre a forte oposição dos líderes do empresariado. Como já argumentado, o pleno emprego duradouro não é de seu interesse. Os trabalhadores ficariam “fora de controle” 10 e os “capitães da indústria” ficariam ansiosos para “lhes ensinar uma lição” 11. Além disso, o aumento contínuo dos preços12 é desvantajoso para os pequenos e grandes rentistas13, os fazendo cansar desse boom econômico. Nesta situação, é provável que seja formada uma aliança poderosa entre o grande empresariado e os interesses rentistas, e eles provavelmente iriam achar mais do que um economista para declarar que a situação estaria manifestamente em péssimas condições. A pressão de todas estas forças, e em particular do grande empresariado — enquanto um ator influente nos departamentos do governo — iria provavelmente induzir o governo a retornar à política ortodoxa para reduzir o déficit orçamentário (KALECKI, 1943, p. 328, grifos nossos).

Apesar de sua rica reflexão, o autor chega a uma conclusão que merece maiores reflexões. Segundo Kalecki: “O ‘capitalismo de pleno emprego’” precisará “desenvolver novas instituições políticas e sociais que refletirão o aumento do poder da classe trabalhadora”; por isso, se o capitalismo “puder se ajustar ao pleno emprego, uma reforma fundamental terá sido incorporada nele”, caso contrário, “ele irá se mostrar um modelo fora de moda que deve ser jogado fora” (KALECKI, 1943, p. 329). Após um intenso debate crítico sobre a renegação — por parte dos teóricos do pleno emprego — da capacidade política da classe capitalista em mobilizar seus interesses, é no mínimo curioso como o autor chega a considerar que seja possível ao capitalismo conviver com reformas que limitem o mercado sem buscar acabar com elas num momento oportuno.

De qualquer modo, o que podemos assumir como grande contribuição do autor neste texto é seu diagnóstico de que seria provável o surgimento de uma aliança entre empresários e interesses rentistas, uma aliança que também é em favor do desemprego e da desmobilização da classe trabalhadora (KALECKI, 1943). Esta foi uma análise que a história provou ter sido certeira.

Submissão à lógica empresarial

No fim dos anos 1960, o crescimento econômico, norteado pelas políticas de pleno emprego, “deixou de ser elevado e permanente” (STREECK, 2013, p. 32). No entanto, como este modelo era entendido enquanto a “pedra angular do contrato social do capitalismo do pós-guerra” (STREECK, 2013, p. 32), ocorreram mobilizações sociais para defendê-lo. Os governos recorreram, então, a políticas monetárias de aumento dos salários acima do nível da produtividade. Podemos tomar o exemplo da França para entender melhor este período: com os problemas econômicos, emergiram os movimentos do Maio de 68, que levaram De Gaulle a aumentar o salário mínimo em 20%, iniciando uma onda de aumentos salariais que durou até a década de 80 (PIKETTY, 2014).

A consequência inflacionista desta alta salarial — que não foi uma política exclusiva da França —, entretanto, foi sentida logo nos anos 70 (STREECK, 2013) — e, tal como discutiu Kalecki (1943), a alta da inflação impactaria diretamente nos interesses dos rentistas. O próprio Estado procurou adotar medidas de pacificação dos conflitos sociais se endividando; no entanto, o impacto no orçamento causou grande preocupação tanto por parte dos governos quanto dos credores, que duvidavam da capacidade de pagamento (STREECK, 2013).

Nestas condições, o mercado abandonou a posição defensiva e reagiu politicamente. Praticou-se o que “na época se chamou de ‘volta à austeridade’” (PIKETTY, 2014, p. 282). José Gabriel Palma sintetiza este movimento ao dizer que:

Em resumo, quando “excessivas” macro-estabilidades keynesianas, regulações governamentais (como uma regulação financeira mais efetiva, leis duras sobre a concorrência, forte controle de capital e melhor transparência), seguranças trabalhistas e redes de segurança social permitiram o surgimento de um maior grau de “compulsão” por capital, e de consideráveis desafios à sua legitimidade por diversos segmentos sociais, o que o capital desesperadamente precisava era de reintroduzir o risco e uma espiral de incerteza diretamente na alma de instituições e populações que estariam muito seguras de si, tocadas pelo Estado de bem-estar. Então, era necessário retornar a um ambiente em que o Estado devesse viver permanentemente sob a lógica de um “estado de emergência” (...) e um retorno a empregos precários (PALMA, 2009, p. 19).

A partir deste período, iniciou-se o momento em que “a magia da substituição do crescimento real pelo crescimento nominal esgotou-se e foram tomadas medidas drásticas sob a liderança dos Estados Unidos e do seu banco central” (STREECK, 2013, p. 33), contando com auxílio de organizações internacionais como Banco Mundial, OCDE, OMC, FMI etc. Tomava forma uma série de ataques político-econômicos mais fortes aos direitos que haviam sido construídos pelo “casamento forçado” (STREECK, 2013) entre capital e trabalho, ataques que buscavam defender um programa internacional de austeridade em benefício dos interesses financeiros e empresariais privados. Para Palma (2009), um dos fatores que também impactaram na possibilidade de surgimento desta mobilização foi a falta de uma oposição bem definida, visto a deslegitimação e descrença sofrida por grande parte do campo político da esquerda após o colapso da União Soviética — ou seja, seu posicionamento melancólico (DEAN, 2013).

Este foi o início do momento que diversos autores passaram a chamar de “neoliberalismo” (STREECK, 2013; PALMA, 2009; DARDOT e LAVAL, 2016). Neste período, começaram a ascender governos como os de Pinochet, Reagan e Thatcher, com pulso firme — ou seja, dispostos a utilizar forte repressão (seja numa institucionalidade pretensamente democrática, seja numa assumidamente ditatorial) — para impor um programa econômico impopular, voltado para os interesses do mercado. Neste, propagava-se a defesa da austeridade, uma ênfase na financeirização da economia em geral, o aumento das propostas de privatizações, uma reforma fiscal regressiva, a promoção do desemprego em massa, a concentração de renda, a liberalização do mercado, a flexibilização e a precarização das relações de trabalho, dos direitos e das leis trabalhistas, uma desvalorização do caráter público da esfera pública etc.

Esta mudança de paradigma foi rapidamente sentida pela classe trabalhadora, deixando clara a direção tomada pela nova política: defendiam-se os interesses dos patrões e dos rentistas em prejuízo dos direitos dos trabalhadores, de seu bem-estar e de seu tempo livre. Por isso, apesar do discurso neoliberal de que as medidas solucionariam a crise trazendo estabilidade fiscal e crescimento econômico, alguns dos efeitos quase imediatos destas políticas foram os fortes aumentos da pobreza e da desigualdade, a precarização do trabalho (com aumento do subemprego e do emprego informal) e um crescente endividamento privado, visto que as famílias passaram a buscar alternativas para a queda (ou a ausência) da renda do trabalho (PIKETTY, 2014). Além disso, mesmo com a inflação tendo diminuído temporariamente, o crescimento econômico nem se aproximou do que havia sido prometido.14

Pierre Dardot e Christian Laval (2016) entendem que esta reconfiguração, no entanto, não teria representado qualquer tipo de retorno a um idealizado laissez-faire, um suposto abandono completo do Estado, mas se expressaria como transformação do próprio conceito de ação pública. A lógica empresarial foi difundida amplamente pelo tecido estatal — e todas as formas de relação social —, privilegiando a razão concorrencial, a gestão do desempenho, os critérios de eficácia empresarial, os contratos de direito privado, a aparência de flexibilização das estruturas de decisão e o gerencialismo — resumindo, os fundamentos do empreendedorismo —, sob o manto da “autonomia”, da “liberdade”, do tecnicismo e de uma suposta neutralidade de interesses. Palma, nesta mesma direção, sugere que um dos componentes chave do neoliberalismo é sua “habilidade em transformar o Estado em um importante facilitador das crescentes práticas rentistas do capital oligopolista” (PALMA, 2009, p. 14).

Em síntese, as mudanças tomaram corpo numa ideologia que reivindica o mercado como padrão universal de relação social, subsumindo desde a esfera estatal até a esfera subjetiva. Sobre esta última, Dardot e Laval entendem que “o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e gestão do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo”, assim eliminando “qualquer sentimento de alienação e até mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 327). De fato, segundo os autores, um grande alvo desta configuração de poder é o desejo, que é submetido à lógica empresarial para a criação do “novo sujeito” — uma subjetivação neoliberal. Este, por sua vez, trabalha como se a aspiração mercadológica surgisse espontaneamente a partir de si, “como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 327).15

Mais especificamente, a figura individualizada do “empreendedor de si” passa a ser promovida como ideal do eu pretensamente capaz de suprir as demandas sociais: empreender e compartilhar dos valores e do léxico empresarial são atitudes apresentadas como supostas soluções para os problemas da sociedade, como regra superior de conduta (DARDOT; LAVAL, 2016). De nossa parte, entendemos que este fenômeno pode estar atrelado ao que Piketty chamou de “ascensão dos superexecutivos” (PIKETTY, 2014, p. 325) — ou seja, de aumento em número e valorização de CEOs e líderes do mundo empresarial, que passam a ser expostos midiaticamente enquanto ícones idealizados e exemplos de “sucesso”. Tal “sucesso”, por sua vez, é enunciado como resultante do esforço individual, como expressando um “extremismo meritocrático” (PIKETTY, 2014) a ser admirado e assumido como modelo.

Podemos reconhecer como alguns efeitos desta submissão à lógica empresarial a “fetichização do número” e o “aumento da centralização burocrática” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 317). Desde esta lógica, tudo o que foge dos modelos quantitativos, racionalistas e individualistas de eficácia do padrão-empreendedor passa a ser deslegitimado e rejeitado. Então, qualquer perspectiva de divergência neste cenário centralizador passa a ser condenada.

A (falta de) política no neoliberalismo

Streeck (2013) propõe que as alterações de caráter neoliberal possam ser interpretadas como um tipo de transferência do núcleo de legitimidade social das instituições políticas para o mercado. Nesse sentido, uma das principais medidas adotadas por governos neoliberais é o esmagamento de qualquer fuga das suas ações, o que frequentemente é sintetizado na famosa frase, atribuída a Margaret Thatcher: “não há alternativa” (apud PALMA, 2009, p. 23).

Assim, seguindo esta razão, ou se resigna frente ao que está colocado ou se afundaria em crises ainda maiores. Afinal, a própria racionalidade neoliberal seria a mais eficaz, por supostamente ser neutra — ou até natural —, não havendo mesmo motivos para se pensar em outro ordenamento social. Para Palma, a ideologia neoliberal poderia ser resumida na seguinte frase: “a arte de se safar com uma distribuição de renda notavelmente assimétrica dentro da democracia” (PALMA, 2009, p. 23) — um argumento implícito e não enunciado na frase de Thatcher.

Portanto, longe de ser neutra, “a reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social; reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 381, grifo dos autores) — além de reforçar as desigualdades estruturais no campo da produção. Ao recusar o controle político, promovendo um tecnicismo pretensamente neutro e natural, o neoliberalismo assume uma posição fundamentalmente antidemocrática, “não deixando da democracia liberal nada além de um envelope vazio” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 384). Assim, a ascensão deste modelo de sociedade expressou também o “sucesso em fazer a perspectiva de ‘ação coletiva’ dos 90% mais pobres impraticável” (PALMA, 2009, p. 24).

Podemos questionar, no entanto, em que medida esta democracia liberal já não é, por fundamento, um “envelope vazio” no que diz respeito aos interesses da classe trabalhadora, visto que sua expressão nela está antagonicamente limitada pelo domínio do capital — seja no momento do pós-guerra ou no contemporâneo. Ainda assim, reconhecemos como valiosas as contribuições de Palma (2009), Dardot e Laval (2016) sobre as mudanças de teor neoliberal no campo diretamente político, que, em síntese, expõem a eliminação do controle público que estava sendo realizado, em algum nível, no sistema capitalista existente no pós-guerra.

Nesta perspectiva, que porta certo esvaziamento do político, podemos compreender melhor uma grande consequência do programa neoliberal: o ataque aos dois tipos principais de organizações dos trabalhadores; ou seja, o ataque ao sindicato e ao partido político (STREECK, 2013). Esta medida manifesta-se como forma de deslegitimação e desmonte das possibilidades de resistência organizada da classe trabalhadora, da obstrução à possibilidade de formação de defesas e alternativas programáticas por parte do povo. Tanto a dimensão subjetiva da luta política — conscientização, subjetivação, educação, transformação ideológica etc. — quanto a objetiva — organização, articulação de tática e estratégia, militância etc. — ficam fortemente debilitadas neste cenário, pois, além das relações de trabalho não serem mais tão fixas ou concentradas num local como antes (o que potencializava o trabalho de militância), a ideologia neoliberal e capitalista tornou-se hegemônica nos quadros políticos.

Em tal contexto, muitas lideranças da esquerda passam a assumir pautas limitadas e resignadas à ordem dominante, aceitando como axioma a impossibilidade de mudança da ordem neoliberal e capitalista — portanto, assumindo como horizonte político algo como um mínimo de contenção de danos sociais. Dardot e Laval (2016) associaram esta posição à de uma “terceira via” — uma suposta tentativa de fuga das mazelas do capitalismo sem defender um programa antagônico emancipatório (socialista/comunista) —, enquanto Palma (2009) a vinculou à “nova esquerda” (new left) — que limita suas demandas a questões culturais e a políticas de reconhecimento, facilmente absorvidas pelo capitalismo. Por sua vez, a filósofa Nancy Fraser (2018) concebeu uma reformulação nos termos da disputa política hoje, com a emergência, na esquerda, de um neoliberalismo reembalado em pautas não-econômicas que se pretendem progressistas para se opor ao reacionarismo neoliberal.16 A pauta política desta esquerda, portanto, deixa de ser o desejo de abolição das hierarquias socioeconômicas para ser uma defesa da diversificação das mesmas (FRASER, 2018) — em síntese, não-brancos, não-homens e não-heterossexuais ocupando espaços de dominação ao invés da dissolução destes mesmos espaços.

De nossa parte, reconhecemos que estas interpretações possam ser entendidas como manifestações daquilo que Dean (2013) — com base em Benjamin (1987) — chamou de “melancolia de esquerda”: a “acomodação” à estrutura capitalista e à sua ideologia dominante e o abandono de um desejo revolucionário em razão do medo das contradições práticas da luta política. Este é um argumento que também se aproxima da interpretação de Dardot e Laval, a respeito do domínio de um “neoliberalismo de esquerda” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 390) sobre grupos antes críticos à ideologia dominante — ou seja, uma posição caracterizada pela adesão, por parte de esquerda, a um discurso em defesa da “renovação” de si, discurso que na prática significa um abandono da criticidade à estrutura capitalista e uma aceitação dos princípios da nova gestão pública como norteadores para a sociedade. Com esta reflexão, então, os autores apontam para um fenômeno de reprodução e repetição, por parte de grupos da própria esquerda, das técnicas de gestão empresarial, de controles de resultados e de pretensa flexibilização, numa posição que demonstra desmotivação, resignação e sujeição à “rotina” — para usar o termo de Benjamin (1987). Ou seja, tanto a teoria quanto a prática política ficam seriamente abaladas nesta esquerda, já que sua responsabilidade de disputar outra forma de vida social não é sequer desejada — num processo que, para nós, pode ser descrito como melancólico.

Esta posição — interpretada como adesão à ideologia e à estrutura dominantes (capitalista e neoliberal) — “passou por cima das divisões partidárias”, integrando o que os autores chamaram de “globalização das formas da arte de governar” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 312) — ou seja, a universalização de um modo único de governo.17 Podemos reconhecer, portanto, que a máxima de que realmente não haveria alternativa ao neoliberalismo, e mesmo ao capitalismo, está suficientemente enraizada ao ponto de ser compartilhada pela própria esquerda — em seus grupos hegemônicos.

Dardot e Laval (2016) ainda sugerem que, nas concepções de mundo hegemônicas dessa esquerda neoliberal, contrapõem-se dois tipos de racionalidade: uma “boa” (ligada à regulação estatal) e uma “má” (associada à concorrência). Realizar-se-ia, portanto, um erro de diagnóstico — visto que neoliberalismo não é sinônimo de abandono do Estado, de retorno a um suposto “capitalismo puro” — que leva esta esquerda a espreitar “os sinais precursores de um retorno do pêndulo a uma regulação direta da parte dos governos”, renegando “o fato de que esse ‘retorno’ se opera em benefício de um Estado empresarial” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 396). Por outro lado, a esperança de algum tipo de retorno ao compromisso socialdemocrata e keynesiano — posição que também emerge em outros grupos da esquerda — ignoraria o fato de que “a dimensão dos problemas mudou, as forças presentes não são mais as mesmas e a globalização do capital destruiu até as bases de tal compromisso” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 395-396).

Considerações finais: para além da melancolia

Viemos debatendo alguns pontos referentes a determinadas dimensões das mudanças que a sociedade passa desde o pós-guerra. Ao longo deste caminho, tecemos alguns comentários em torno de como certa esquerda ocidental veio se posicionando e ajudando a moldar tal trajetória histórica. Após estas discussões, podemos elaborar algumas considerações finais com objetivos de síntese e de crítica sobre o lugar que a esquerda melancólica ocupou e vem ocupando.

Sendo assim, inicialmente, concebemos a existência de duas vertentes neste campo político durante o cenário do capitalismo do pós-guerra. A primeira seria uma defesa de que o capitalismo limitado pelo keynesianismo e a socialdemocracia seria a melhor estrutura social possível. Já a segunda, seria uma visão de que o capitalismo supostamente poderia ser superado por meio exclusivo de reformas, com as políticas keynesianas e socialdemocratas possibilitando uma transição pacífica para o socialismo. De nossa parte, propomos a interpretação de que ambas as vertentes (em maior ou menor grau) se aproximam da posição descrita por Dean (2013) — com base em Benjamin (1987) — como melancólica: as duas abrem mão do desejo disruptivo por outra estrutura social.

Neste trabalho, entretanto, sugerimos que certa esquerda do pós-guerra tenha conseguido sucesso em garantir pautas de interesse social por conta de um contexto particular — guerras, crises e a perspectiva socialista representada pela União Soviética —, que fez a classe dominante ficar na defensiva e permitiu uma aparência de conciliação temporária entre capital e trabalho. Assim, o período excepcional do capitalismo com Estado de bem-estar parece só ter sido possível devido à existência de um ambiente hostil para a classe dominante, marcado por mobilizações sociais críticas ao status quo, um forte movimento socialista e anticolonial e a ameaça da insurgência popular. Partindo das discussões propostas até aqui, a força ideológica que o keynesianismo e a socialdemocracia assumiram (ao menos no norte global) parece ter dependido diretamente deste ambiente hostil contra a estrutura capitalista.

A qualificação dada por Streeck (2013), de que teria existido um “casamento forçado” entre as classes, ilustra bem o caráter da conjuntura que permitiu a ascensão do Estado de bem-estar: a ameaça à legitimidade do capitalismo fez os capitalistas garantirem concessões para os trabalhadores em troca da não ruptura com este modelo de sociedade. Por sua vez, a esquerda que reivindicava apenas reformas para o capitalismo se limitava a defender uma espécie de eterno casamento (forçado). Como discutimos anteriormente, no entanto, é fácil reconhecer que um divórcio seria procurado logo que os capitalistas reconhecessem melhores condições para a expressão de seus interesses, condições que os permitissem expressá-los de maneira mais direta, fugindo das mediações colocadas pelas políticas keynesianas e socialdemocratas — o “retorno à austeridade” do qual falou Piketty (2014). Entender a iminência da busca deste divórcio por parte do capital, entretanto, torna ingênua (e melancólica) a perspectiva de reformação harmoniosa do capitalismo.

Nesse sentido, talvez também possamos recorrer aos termos mobilizados no debate de Rosa Luxemburgo (2015) contra Eduard Bernstein (e outros que compartilhavam sua visão sobre a relação entre a reforma e a revolução social) para chamar ambas as posições da esquerda do pós-guerra citadas acima de “revisionistas” ou “reformistas”. São posições que abrem mão da perspectiva da transformação social disruptiva e fazem da reforma (ou seja, das políticas distributivas de melhoria limitada das condições de vida dos trabalhadores) o fim da luta de classes (LUXEMBURGO, 2015).

Segundo Luxemburgo, a teoria reformista se aproxima de “um vão trabalho de remendão para salvar o regime capitalista” (LUXEMBURGO, 2015, p. 18). Podemos apresentar uma passagem sintética do argumento da autora sobre este debate, onde ela conclui que, segundo o revisionismo, a esquerda não deveria “dirigir a sua atividade no sentido da conquista do poder político, mas da melhoria da situação da classe operária”, enquanto a “instituição do socialismo” não ocorreria “como consequência de uma crise social e política, mas por meio da extensão progressiva do controle social e aplicação gradual do princípio da cooperação” (LUXEMBURGO, 2015, p. 22). Assim, reconhece-se que o revisionismo não entende a reforma como meio para um fim disruptivo e transformador, mas como um fim em si — num sentido que, para nós, manifesta-se como uma resignação melancólica.

Portanto, sugerimos que ambas as posições que chamamos de reformistas da esquerda parecem ter apostado no abandono (em maior ou menor grau) do reconhecimento do antagonismo estrutural sobre o qual se baseia a sociedade capitalista — portanto, abandonando a perspectiva disruptiva da conquista do poder. Dito de outra maneira, talvez se possa compreender que estas posições caíram numa espécie de tecnicismo econômico, uma visão tecnicista que — como interpretou Streeck (2013) — olha o capital na qualidade de uma coisa passível de ser gerida, e não de uma classe ativa que se mobiliza politicamente em busca dos próprios interesses. Este tecnicismo, por sua vez, parece renegar o campo da economia política e, com isso, a análise se abstrai da dimensão material-concreta.

Por sua vez, no período neoliberal, certa esquerda estaria assumindo uma posição de ainda maior resignação — chamada, por Dardot e Laval (2016) de “neoliberalismo de esquerda”. As posições de “terceira via”, “nova esquerda” e “neoliberalismo progressista”, por exemplo, se limitaram a defender pautas de defesa da “nova gestão pública” (o modelo empresarial de ação pública) e políticas identitárias, abrindo mão de disputar campos fundamentais como o da economia — com visões que inclusive renegam o fato de que as questões culturais e as políticas de reconhecimento não podem ser descoladas da dimensão econômica (FRASER, 2018).

Neste momento, tal esquerda assumiria um discurso em defesa de algo novo, uma “renovação”, ao mesmo tempo em que se exime de aprofundar debates e propostas sobre pontos estruturais da sociedade existente — ou seja, sem apresentar nada substancialmente novo. Pelo contrário, tais setores neoliberais da esquerda ignoram que, em suas práticas, assumem para si os fundamentos da ordem hegemônica, praticando um apego (não tão) escondido ao status quo. Propõem novidade, mas repetem o neoliberalismo, apresentam-se como outra via (“progressista”), mas repetem o capitalismo.

Esta é a esquerda que assumiu a posição em que sabe muito bem que a estrutura existente não é nem ideal, nem natural, nem desejável, mas mesmo assim repete melancolicamente os fundamentos desta mesma estrutura em suas práticas, sem perspectiva alguma de transformação. Desta forma, agem tal como o “renegado fetichista” do qual fala o filósofo esloveno Slavoj Zizek (1996) — cuja descrição ele mesmo sintetiza na frase “eu sei, mas mesmo assim”. Este conceito zizekiano foi também mobilizado por Dean (2013), que o usou para caracterizar a esquerda melancólica na contemporaneidade ocidental — de maneira que, nos marcos do presente estudo, poderíamos reformular a frase do renegado fetichista para “eu sei que o capitalismo não é o melhor sistema possível, mas mesmo assim, repito seus fundamentos”. É, portanto, neste contexto que a máxima thatcheriana (“não há alternativa”) aparece entranhada ideologicamente nos mais diversos grupos sociopolíticos, numa demonstração de abandono da criticidade e do desejo pela construção de uma sociedade sem opressão e exploração. Teríamos, então, chegado ao fim da história18?

Entendemos que, quando muito, esta esquerda propõe retomar teses reformistas ou revisionistas — o saudosismo do Estado de bem-estar —, passando por cima das particularidades históricas que possibilitaram sua força ideológica no pós-guerra e das suas limitações e contradições intrínsecas.19 O mais “radical” que se pode imaginar parece ser a ilusão de um capitalismo reformado e gerido tecnocraticamente. Abandona-se, assim, a perspectiva de que os trabalhadores possam conquistar a hegemonia da estrutura social que constroem no dia a dia na direção de um novo modelo de civilização.

Em todo este debate, propomos a importância de se destacar o processo de abdicação de um desejo transformador por parte relevante da esquerda — que levou à analogia de Dean (2013) com o quadro psicanalítico da melancolia. Agora, estamos em condições de compreender melhor qual o caráter da repetição praticada pela esquerda melancólica: ela é a manifestação de um excesso da ideologia dominante, que interpela a esquerda a agir de maneira neoliberal ou, quando muito, revisionista/reformista. Um ponto que podemos reconhecer como fundamental neste excesso é a atitude de insistência pulsional e masoquista na democracia burguesa (DEAN, 2013): pulsional, pois a acomodação é assumida na forma de uma repetição compulsiva em torno da falta; e masoquista, pois tal repetição menospreza sua própria capacidade política em favor de um ganho secundário em algum nível.20

Tal esquerda sabe que esta democracia não pode ser o instrumento, por excelência, de transformação social, mas mesmo assim a assume e a repete de maneira excessiva e limitadora. Neste processo, ela tenta fugir do sentimento de culpa por ter cedido em seu desejo disruptivo, buscando maneiras ilusórias de não reconhecer a verdade da sua falta: a ausência de um programa estruturalmente alternativo de sociedade — nem neoliberal e nem capitalista, mas em favor dos povos explorados e oprimidos.

Talvez um dos obstáculos mais enraizados na esquerda melancólica seja a dificuldade em reconhecer e superar a limitação à dimensão pulsional — tendo em vista seu ganho secundário embutido. E, no entanto, esta é uma das etapas fundamentais para a hegemonia de uma esquerda que assuma compromissos verdadeiros com a classe trabalhadora. Como aponta Dean (2013), a psicanálise ensina o quão doloroso é este processo, ao mesmo tempo em que é inescapável para a realização de uma subversão das estruturas de dominação. De nossa parte, destacamos que outro ensinamento do campo psicanalítico é a importância da mediação — ou seja, do cultivo de relações à alteridade, da construção coletivizada — para se elaborar novos caminhos, mais livres, de vida em comum — portanto, a importância de organizações coletivas e de processos de autocrítica.

Propomos, então, uma reflexão sobre a necessidade de a esquerda melancólica passar por um processo análogo de reconhecimento e elaboração, caso se busque um horizonte de não-escravização (nem ideológica e nem material) em relação às estruturas de dominação neoliberal e capitalista, caso não pretenda repetir os mesmos erros do passado. Talvez assim se possa ter alguma perspectiva de reencontro com o desejo de transformação da sociedade.

Referências

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  1. Alain Badiou, Slavoj Zizek, Louis Althusser, Judith Butler, Vladimir Safatle, Frantz Fanon e teóricos da Escola de Frankfurt (como Theodor Adorno e Herbert Marcuse) são alguns dos pensadores inseridos (de maneiras diversas) nesta ponte interdisciplinar.↩︎

  2. Para um maior aprofundamento sobre as bases do conceito de melancolia na teoria psicanalítica, ver Luto e Melancolia de Sigmund Freud (1987 [1917]).↩︎

  3. Dean não é a única a retomar a discussão sobre a melancolia com base em Benjamin: a cientista política Wendy Brown — em seu artigo Resisting left melancholy (1999), por exemplo — também propôs um resgate desta reflexão à sua maneira. No entanto, como sugere Dean (2013), Brown entendeu a melancolia de esquerda enquanto resistência em se adaptar à realidade neoliberal, num processo que tomaria a forma de repetição da “ortodoxia” marxista — ao passo em que, na concepção de Dean (2013), o abandono melancólico do desejo de transformação passa por um nível de afastamento do materialismo histórico-dialético. Como bem aponta Dean (2013), não se pode ignorar que a posição de Brown se choca com a do próprio Benjamin (1987), já que, para este, a melancolia consiste não na adaptação resignada à realidade, mas na insistência em realizar o impossível da transformação revolucionária. É desde estes termos que se pode entender, por exemplo, a defesa benjaminiana do poeta militante comunista Bertolt Brecht como exemplo de artista engajado (BENJAMIN, 1987).↩︎

  4. Interpretação que certamente desconsidera o papel “glorioso” do imperialismo para o crescimento econômico da Europa e dos Estados Unidos — papel que levou o historiador Domenico Losurdo, em seu A esquerda ausente (2016), por exemplo, a chamar a esquerda socialdemocrata (principalmente europeia) do pós-guerra de “esquerda imperial”, já que seus grupos ou renegavam este aspecto ou o defendiam abertamente como forma de ganho material para a classe trabalhadora europeia.↩︎

  5. Uma famosa tese do autor é a de que os grandes acontecimentos do século XX podem ser lidos pela chave do colonialismo, criticando a esquerda hegemônica por deixar de reconhecer a centralidade do tema e não enfatizar o papel das lutas anticolonial e anti-imperialista nas formações sociais. Losurdo (2013) possui uma extensa bibliografia sobre o tema.↩︎

  6. Para Losurdo (2013), este é um dos paradoxos da história ocidental: “a democracia, no âmbito da comunidade branca, desenvolveu-se simultaneamente à existência de relações de escravidão dos negros e de deportação dos índios” (LOSURDO, 2013, p. 30). Isto seria verificável também teoricamente no pensamento liberal de Locke, Jefferson e Mill, por exemplo. Toda esta discussão é aprofundada em Contra-história do liberalismo, do próprio Losurdo (2006).↩︎

  7. Mesmo o tema dos direitos LGBT não foi ignorado na formação da URSS: após 1917 a homossexualidade deixou de ser considerada, pela lei, crime ou transtorno mental — tal como era no czarismo e no restante da Europa, em geral, até o fim do século, onde o não-heterossexual poderia ser preso, castrado, lobotomizado ou internado. Isso não significou a inexistência de discriminação, mas mostra um avanço assumido pela legislação soviética — pelo menos até a década de 30, quando a homossexualidade volta a ser marginalizada legalmente (REICH, 1976). É um tema que merece maior aprofundamento.↩︎

  8. Sobre este tema, ver, por exemplo, Estrela vermelha sobre o terceiro mundo, do historiador e jornalista indiano Vijay Prashad (2019).↩︎

  9. Para maiores discussões sobre a cooptação das demandas do Maio de 68, ver O novo espírito do capitalismo de Luc Boltanski e Eve Chiapello (2009) — livro que o próprio Streeck (2013) toma por referência direta para esta análise.↩︎

  10. “A posição social do chefe ficaria enfraquecida, e a autoconfiança e consciência de classe da classe trabalhadora cresceriam. Greves pelo aumento de salários e melhorias nas condições de trabalho aumentariam a tensão política” (KALECKI, 1943, p. 326).↩︎

  11. “Seu instinto de classe os diz que o pleno emprego duradouro é inadequado para seu ponto de vista, e que o desemprego é uma parte integral do sistema capitalista ‘normal’” (KALECKI, 1943, p. 326).↩︎

  12. “Se o momento do pleno emprego de recursos for alcançado e a demanda efetiva continuar a crescer, preços subirão para equilibrar a demanda e o fornecimento de bens e serviços” (KALECKI, 1943, p. 323).↩︎

  13. “O aumento das taxas de salário resultante do forte poder de barganha dos trabalhadores tem menos chance de reduzir lucros do que aumentar preços, e então adversamente afeta apenas os interesses dos rentistas” (KALECKI, 1943, p. 326).↩︎

  14. Para um aprofundamento deste tema, ver Palma (2009), Streeck (2013), Piketty (2014), Dardot e Laval (2016).↩︎

  15. Para maiores discussões, ver o capítulo sobre “O sujeito neoliberal” do livro de Dardot e Laval (2016).↩︎

  16. A autora toma como grande exemplo deste embate entre “neoliberalismo progressista” e “neoliberalismo reacionário” o conflito entre partidos Democrata e Republicano nos Estados Unidos (FRASER, 2018).↩︎

  17. Concepção que dialoga com a categoria de “monopartidarismo competitivo”, elaborada por Losurdo em Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal (2004).↩︎

  18. O filósofo liberal Francis Fukuyama ficou conhecido por formular esta pergunta e a responder com um melancólico “sim” — por exemplo, em seu livro O fim da história e o último homem (1992).↩︎

  19. Figuras políticas contemporâneas tidas como “radicais” — como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez nos Estados Unidos, Jeremy Corbin na Inglaterra e Guilherme Boulos e Manuela d’Ávila no Brasil —, frequentemente assumem uma atitude similar a esta, quando muito. Para uma reflexão recente sobre o tema, ver, por exemplo, Socialismo democrático ou social-democracia envergonhada? de Pedro Marin (2019).↩︎

  20. Por exemplo, no nível econômico — com a profissionalização da política, a cooptação das lideranças etc. — e no nível imaginário — com a satisfação em repetir um script catártico de insatisfação e crítica discursiva ou performática sem, de fato, cultivar coletivamente e em longo prazo o desejo pela ruptura com a ordem dominante. Para maiores reflexões sobre este último nível, ver Ação performática: sintoma de uma crise na esquerda, da cientista política Clarisse Gurgel (2017).↩︎

Resumo:
Apresentamos um diagnóstico, sugerido pela cientista política Jodi Dean, segundo o qual a categoria psicanalítica de “melancolia” pode ser usada para interpretar a resignação de determinados segmentos da esquerda assujeitados ao capitalismo ocidental. Então, o assumimos como referência de análise para ensaiar, em associação ao campo da economia política, uma interpretação histórica de três momentos da recente trajetória da luta de classes — a ascensão do Estado de bem-estar no pós-guerra, sua queda e o programa neoliberal de austeridade —, refletindo sobre os lugares que certa esquerda veio ocupando ao longo dos mesmos. Guiamo-nos pela hipótese segundo a qual as posições de “reformismo” socialdemocrata e de “neoliberalismo de esquerda” sejam exemplos de resignação, em graus variados, à estrutura capitalista e à ideologia dominante. Nosso objetivo é refletir sobre desafios para a assunção de uma concepção de mundo revolucionária na política, introduzindo o conceito psicanalítico de melancolia como uma referência teórica relevante para análises nesta temática — debate que também se situa no campo da subjetivação política.

Palavras-chave:
Esquerda; Melancolia; Neoliberalismo; Pós-guerra; Reformismo.

 

Abstract:
We present a diagnosis, suggested by political scientist Jodi Dean, according to which the psychoanalytic category of “melancholy” can be used to interpret the resignation of certain segments of the left subjected to Western capitalism. So, we took it as an analytical reference to rehearse, in association with the field of political economy, a historical interpretation of three moments of the recent trajectory of the class struggle — the rise of the post-war welfare state, its fall and the neoliberal austerity program —, reflecting on the places that a certain left has been occupying throughout them. We are guided by the hypothesis that the positions of social-democratic “reformism” and “left-wing neoliberalism” are examples of resignation, to varying degrees, to the capitalist structure and the dominant ideology. Our objective is to reflect on challenges to the assumption of a revolutionary world conception in politics, introducing the psychoanalytic concept of melancholy as a relevant theoretical reference for analysis on this theme — a debate that is also situated in the field of political subjectivation.

Keywords:
Left; Melancholy; Neoliberalism; Post-War; Reformism.

 

Recebido para publicação em 05/05/2020
Aceito em 10/03/2021