Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.a03
ISSN: 2318-4620

 

 

Condições sociais de produção e circulação de um “clássico da esquerda”:
uma análise de A Democracia como Valor Universal, de Carlos Nelson Coutinho

 

Marcelo Fontenelle e Silva OrcID
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
marcelofontenelle@hotmail.com

 

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma análise do texto de Carlos Nelson Coutinho intitulado A Democracia como Valor Universal, publicado pela primeira vez em março de 1979. Este texto pode ser interpretado, nas palavras de Pécaut (1990, p. 193) como um dos “‘manifestos’ democráticos que orientaram o processo de ‘abertura’”.

A centralidade do mesmo nos debates políticos e intelectuais de fins da década de 1970 e década de 1980 tem sido destacada tanto por integrantes do meio acadêmico quanto do espaço político. Como podemos ver, por exemplo, na tese de Ramos (2013, p. 156), que o aponta como um “texto-síntese” das “influências teórico-políticas de Lukács, Gramsci e dos eurocomunistas” no Brasil; na dissertação de Lucca-Silveira (2012), que destaca a sua publicação como um “momento decisivo” em que a discussão sobre a democracia ganha centralidade entre os comunistas brasileiros; já Napolitano (2014), por sua vez, registra o alto impacto desse texto, tanto na esquerda quanto em outros setores; enquanto Braz (2012, p. 251, grifos no original) qualifica-o como “responsável por abrir um novo ciclo no debate da esquerda brasileira”.

Os registros dos próprios protagonistas desses embates também apontam o texto como um eixo a partir do qual diversos intelectuais e políticos se posicionaram e como um marco na identificação de um conjunto de políticos-intelectuais vinculados ao partido comunista que ganharam destaque por pautar e defender a “democracia”. Em meio às disputas internas ao PCB, esses agentes ficaram conhecidos como integrantes da “corrente renovadora”, grupo afastado das fileiras do partido no início da década de 1980 (SANTOS, 1994).1

Esta defesa da democracia era vista como herdeira da “perspectiva política” do “comunismo democrático” (CARVALHO, 2007) ou, nas palavras de Santos (1994), da “primeira renovação pecebista”.2 O mais importante para o presente estudo, porém, é a centralidade que o texto ganhou no debate sobre a “questão democrática” (LUCCA-SILVEIRA, 2012), que animava a vida política e intelectual de então, tornando-o profícuo para uma análise dos acordos e desacordos que possibilitaram as disputas nesses dois espaços e do estado da relação entre os mesmos.

Ressaltamos, assim, que ao invés de focarmos nas questões teóricas e conceituais relativas ao citado ensaio de Coutinho,3 pretendemos investigar as condições sociais de produção e de circulação do mesmo, formulando hipóteses para explicar seu relativo êxito em pautar o debate sobre a democracia na década de 1980. Desse modo, o presente trabalho busca filiar-se entre aqueles que não analisam “texto” e “contexto” separadamente (BASTOS; BOTELHO, 2010), recusando tanto as análises que entendem os textos como meros reflexos das trajetórias de seus produtores quanto as que apreendem os textos como documentos completamente autônomos (BOURDIEU, 1996).

Os embates propostos no ensaio, os autores e o léxico mobilizado decorrem da relação que Coutinho manteve com autores da tradição marxistas desde o início de sua militância no PCB e das disputas políticas nas quais ele estava envolvido. Tais disputas aconteciam em pelo menos três níveis interligados: no nível partidário, Coutinho situava-se com a chamada “corrente renovadora”, conforme já destacado; em nível da política nacional, Coutinho situava-se nos embates quanto ao modo como os setores à esquerda deveriam orientar suas ações frente ao processo de redemocratização; e, por fim, em nível internacional, todo o movimento comunista passava por uma crise, em que Coutinho situava-se ao lado daqueles que propunham uma “renovação” do movimento comunista.

O texto de Coutinho circulou bastante, o que foi acompanhado pela produção de interpretações diversas, mas a proximidade do autor ao seu texto favoreceu que se mantivesse em uma posição privilegiada para pautar como a obra deveria ser lida, ofuscando assim as interpretações concorrentes. Desse modo, a capacidade de Coutinho de pautar seu próprio texto — e, indiretamente, o modo como a esquerda deveria entender a “democracia” — deveu-se não só à sua trajetória pregressa, com sua militância no PCB e vivência em países europeus na década de 1970, mas à sua posterior afirmação no espaço universitário.4

O período analisado tem o foco entre o momento da publicação do ensaio, em 1979, e a assunção de Coutinho no posto de professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1988.5 Isso não implica em pressupor que os debates em torno do texto tenham aí finalizado, mas que esse recorte temporal faz-se heuristicamente útil para compreendermos um fenômeno que teve consequências posteriores, incidindo, inclusive, na atualidade. Almeja-se, portanto, que a presente análise traga contribuições para que nós, cientistas sociais, possamos efetuar uma análise reflexiva, que se volte para o nosso próprio trabalho, possibilitando conhecer os constrangimentos que agem sobre nossa atuação — como sugerido por Bourdieu (2017).

O artigo está dividido em três partes. A primeira tem como objetivo trazer considerações para pensarmos em que condições o texto de Coutinho foi produzido e divulgado, buscando elementos externos ao texto para pensarmos o que suscitou o autor a discutir a “questão democrática” e o fez sentir-se autorizado a pautá-la a partir da assunção de uma determinada posição. A segunda parte centra-se mais propriamente no conteúdo do texto, buscando apreender como ele reivindica para si o acerto de determinadas posições e segmentos da esquerda e do marxismo e se posiciona contra outras. A terceira parte tem como objetivo analisar as disputas relativas às interpretações possíveis, destacando o papel do próprio Coutinho em pautar o texto.6

Apresentação e trajetória do “autor”7

Logo no início do texto, o autor da obra é apresentado como: “Ensaísta e tradutor. Autor de Literatura e Humanismo (1967), O Estruturalismo e a Miséria da Razão (1972) e, em colaboração, Realismo e Anti-realismo na Literatura Brasileira (1974)”. Reivindica-se, assim, a autoridade de já ter publicado obras anteriores e a condição de “tradutor” — Coutinho havia traduzido um livro de Antônio Gramsci e outro de György Lukács, ambos publicados pela editora Civilização Brasileira em 1968.

Mas não só o perfil do autor, conforme apresentado no início do texto, deve ser levado em conta. O conjunto de sua trajetória intelectual e política interfere nas condições que possibilitaram que o mesmo pudesse ser apresentado e reconhecido como tal. Destaca-se, assim, o contato precoce de Coutinho com a política e o exercício intelectual, decorrente da sua configuração familiar. O próprio declara como um “ato inaugural” da sua formação intelectual o encontro, quando ele tinha por volta de 13 ou 14 anos de idade, com o Manifesto Comunista na biblioteca de seu pai, que havia sido deputado pela União Democrática Nacional (COUTINHO, 2000, p. 373).

Coutinho nasceu em Salvador, na Bahia, em 1943. Iniciou o curso de direito (tal qual a maior parte dos filhos das famílias abastadas de então), mas abandonou-o, formando-se em filosofia pela Universidade Federal da Bahia, em 1965. É na qualidade de estudante do curso de direito que ele se filia ao PCB, em 1961. Por volta desse período, Coutinho já mantinha um trânsito significativo com a cidade do Rio de Janeiro. É lá que ele conhece Leandro Konder, com quem estabelece um forte vínculo de amizade e uma série de parcerias intelectuais.

Em decorrência da repressão exercida pelo regime instaurado com o golpe civil-militar de 1964, Coutinho passa a morar no Rio de Janeiro, estreitando os laços com Leandro Konder e com outros intelectuais residentes no Rio de Janeiro, como Ferreira Gullar.

Esse vínculo com o Rio de Janeiro é importante para compreendermos certas implicações de sua atuação intelectual, visto que, neste estado, a separação entre os discursos científico e político era bem menos acentuada do que em São Paulo, por exemplo. Enquanto o primeiro era fortemente marcado pela experiência do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e suas tentativas de construção de um projeto nacional, em São Paulo despontava a reivindicação do rigor científico e da autoridade da academia, a partir da presença da Universidade de São Paulo (USP).8 As palavras de Coutinho expressam esta maior politização:

Acho que o pensamento social e a cultura estética do Rio eram na época completamente diferentes dos de São Paulo. Não tínhamos uma inserção acadêmica nessa época (...). O nosso modo era mais voltado para a ação política (...). Tentávamos evidentemente não reduzir o trabalho intelectual apenas ao uso político imediato, mas havia uma clara intenção de influenciar, demarcar posição, de abrir debates. O marxismo paulista é bem diferente: tem um viés acadêmico muito forte, no bom e no mau sentido (COUTINHO, 2006, p. 170-171).

Foi na qualidade de comunista e intelectual carioca que Coutinho, mesmo antes de ir para o exílio, em 1975, já despontava como um dos responsáveis pela interpretação e difusão do pensamento de certos autores marxistas (com especial destaque para G. Lukács e A. Gramsci) — o que aconteceu tanto por meio de seus escritos quanto pela tradução e organização de livros. Quanto a isso, ganha destaque a editora Civilização Brasileira, vinculada ao também comunista Ênio Silveira. Por esta editora foram publicados,9 em 1968, um volume de Gramsci intitulado Literatura e vida nacional e outro intitulado Os intelectuais e a organização da cultura; e, no mesmo ano, um volume de G. Lukács intitulado Marxismo e teoria da literatura e outro intitulado Introdução a uma estética marxista. Em tais publicações Coutinho traduziu os textos e/ou foi responsável pela seleção dos mesmos e por tecer comentários (orelhas e apresentação)10 — favorecendo assim uma troca simbólica na qual Coutinho adquire notoriedade a partir da afirmação de seu domínio sobre um autor estrangeiro, firmando-se como um importante mediador entre o leitor brasileiro e certos marxistas estrangeiros.

A repressão exercida pelo regime militar não foi responsável apenas por contribuir com a sua mudança definitiva para o Rio de Janeiro. Em 1974 e 1975, a repressão política intensifica seus esforços de perseguição ao PCB, assassinando vários dirigentes e levando outros ao exílio — o que ocasionou, na prática, a transferência do Comitê Central do partido para o exterior (PRESTES, 2012). É nesse contexto que Coutinho parte para o exílio na Europa, estando principalmente na Itália e na França. A escolha preferencial pela Itália, porém, é justificada, por Coutinho, por conta do seu melhor domínio do idioma local, pela afinidade com o marxista italiano Antônio Gramsci e com o Partido Comunista Italiano (COUTINHO, 2006, p. 172).

O volume de capital político e cultural com o qual Coutinho chegou ao exílio — que contava com um meio familiar fortemente politizado e intelectualizado, certa “facilidade” com línguas estrangeiras, experiências com traduções de autores importantes no universo da esquerda e a publicação de artigos e livros — fez com que Coutinho ganhasse certa proeminência no exílio. Isso contribuiu para possibilitar que ele se dedicasse integralmente à atividade intelectual e política, chegando a atuar profissionalmente no PCB por um determinado período (COUTINHO, 2006, p. 173).

Assim como ele, muitos intelectuais e militantes estavam exilados, sendo Paris um polo aglutinador que possibilitava, apesar da distância geográfica em relação ao Brasil, a manutenção de outras frentes de atuação política. A situação do exílio pôs em contato distintos grupos adeptos da luta armada, militantes do PCB e outros setores progressistas que faziam oposição à ditadura no Brasil (como ex-parlamentares cassados e alguns dominicanos) (HILDEBRANDO, 2012) — além, é claro, de intelectuais e militantes europeus.

Com isso, o contato de Coutinho com o chamado “eurocomunismo” foi quase que uma imposição decorrente da sua condição de militante comunista exilado entre a França e a Itália na segunda metade da década de 1970. Desde 1973, o PCI já despontava naquilo que passou a ser chamado de “eurocomunismo”, com a promulgação da estratégia do “compromisso histórico”. Logo depois, o PCF segue linha semelhante, como demonstrado em seu XXII Congresso, em 1976 (BOTTOMORE, 2001).11

Ao que tudo indica, os militantes do PCB possuíam uma condição relativamente melhor que os demais para se inserir política e profissionalmente, pois dispunham de recursos materiais e simbólicos possibilitados pela inserção no movimento comunista internacional. Reuniam-se com certa frequência para a promoção de seminários, editavam revistas e jornais, além de iniciativas institucionais, como o Comitê Brésil Amnistie, de 1970 (HILDEBRANDO, 2012). Formou-se, assim, um grupo de intelectuais comunistas fortemente identificados com o “eurocomunismo”, que tinham em Armênio Guedes a principal liderança e formavam um grupo de “assessoria” do Comitê Central do PCB. Em um dos seminários desse grupo, conforme depoimento de Leandro Konder, “Carlos Nelson amadureceu as ideias que depois causaram impacto através da publicação do ensaio A democracia como valor universal” (KONDER, 2008, p. 95). De especial importância, para este grupo, foi a revista Études Bresiliennes, que circulou entre 1974 e 1978.

Esse grupo ao qual Coutinho estava vinculado era por vezes designado como “grupo de Paris”/“Assessoria parisiense” (MALIN, 2018, p. 316), “grupo nucleado por Armênio” (VAIA, 2013, p. 123), “grupo da democracia como caminho universal, para o socialismo” (VIANNA, 2013, p. 31), entre outros. A partir de tais denominações já podemos destacar: o vínculo ao trabalho realizado em Paris; a já citada liderança de Armênio Guedes; e a identificação com o chamado “eurocomunismo”, visto que a referência à “democracia como valor universal” é tanto uma referência ao ensaio de Coutinho quanto ao discurso feito pelo dirigente comunista italiano Enrico Berlinguer, em Moscou, na comemoração ao aniversário de 60 anos da Revolução Russa.12 Mas elas também indicam a existência de uma disputa interna ao partido, envolvendo o grupo ligado a Luiz Carlos Prestes, situado em Moscou; o grupo ligado a Armênio Guedes, em Paris; e o grupo vinculado a Giocondo Dias, composto pela maioria do Comitê Central do Partido (PRESTES, 2012, p. 213).

O grupo encabeçado por Prestes — conhecido como “corrente prestista” — rompeu com a direção partidária em 1980, quando Prestes publica a “Carta aos Comunistas”, conclamando os militantes a tomar a direção do partido, que era acusada de “reformista”. Os “prestistas” defendiam alianças políticas mais restritas e criticavam a proposta de construção de uma ampla “frente democrática” para pôr fim ao regime militar (PANDOLFI, 1995, p. 219).13 Além do “Cavaleiro da Esperança”, que ocupara o cargo máximo da direção partidária entre 1943 e 1980, o grupo era composto por Anita Prestes, José Salles e Marly Vianna (PRESTES, 2019). Estes, por sua vez, eram acusados de sustentar uma postura “reacionária” e “ultra-esquerdista” (KONDER, 1980, p. 138). Já o grupo predominante no Comitê Central era composto por Giocondo Dias, Salomão Malina, Severino Teodoro de Mello, Luiz Tenório de Lima, Givaldo Siqueira, entre outros. De modo geral, eram militantes com uma longa trajetória no PCB, que divergiam dos “renovadores” por sua maior “ortodoxia” em relação aos princípios do marxismo-leninismo e supervalorização da “questão nacional” (SANTOS, 1994, p. 37).14

Cabe destacar, também, o momento e o meio pelo qual o texto foi publicado: a revista Encontros com a Civilização Brasileira, em seu nono volume, publicado em 1979. A revista Encontros teve 29 números, sendo o primeiro número lançado em junho de 1978 e o último em janeiro de 1982. Tal revista caracterizava-se pela guarida a intelectuais que faziam oposição ao regime ditatorial vigente no Brasil e foi arquitetada por Ênio Silveira, editor ligado aos setores da esquerda e que já havia protagonizado uma exitosa experiência editorial: a Revista Civilização Brasileira, lançada em 1965 como um instrumento de oposição ao regime instaurado com o golpe de 1964.

Seguindo a linha da antecessora, a Encontros dava guarida para numerosos e divergentes intelectuais que se situavam na oposição ao regime militar e em um amplo leque de posições progressistas, mas teve um impacto/sucesso menor que a sua antecessora (COUTO, 2012, p. 362). Ênio Silveira mantinha um amplo leque de relações pessoais com diversos setores da intelectualidade e da esquerda, além de uma atuação de “editor atípico” (VIEIRA, 1996, p. 4), chegando a ser caracterizado por Nelson Werneck Sodré como “escritor transviado em editor” (SODRÉ, 1965, p. 157, Apud VIEIRA, 1996, p. 4). Foi vinculado ao PCB desde a década de 1940, mas sua atuação política e intelectual — como o próprio por vezes fez questão de frisar — foi caracterizada por uma espécie de “heterodoxia” que o levou a publicar, enquanto editor, tanto autores “clássicos” do marxismo-comunismo quanto autores divergentes, como aqueles identificados com Trotsky (COUTO, 2012, em esp. p. 357).

O ensaio foi publicado em 1979, ou seja, no ano seguinte ao retorno de Coutinho ao Brasil, que aconteceu em fins de 1978. O processo de redemocratização do Brasil entra em uma nova fase, com a revogação do Ato Institucional Nº 5 e a possibilidade de criação de novos partidos. Mas, desde o início da “distensão”, em 1974, os intelectuais já despontavam como um importante ator político na oposição à ditadura militar, constituindo-se no que Pécaut (1990) chamou de “partido intelectual”, dada a sua relativa coesão e unidade. O aumento da circulação de bens culturais foi fundamental para a constituição e manutenção dos intelectuais como um ator político importante nesse processo. Colaborou com isso, entre outros aspectos, o crescimento das universidades, a visibilidade de instituições como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o aumento da produção de livros (PÉCAUT, 1990).

O ensaio A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho

O decorrer do processo de redemocratização, com a criação de novos partidos e instâncias de atuação intelectual, foi acompanhado pelo fim dessa coesão e unidade do “partido intelectual”, com suas divergências manifestando-se, por exemplo, pela adesão a distintos partidos políticos (PÉCAUT, 1990). O ensaio de Coutinho, bem como as polêmicas em torno dele, são produtos e produtoras de tais divergências.

A disputa encampada não se restringia à oposição ao regime ditatorial, mas estava explicitamente direcionada ao combate a certas concepções da esquerda, em especial da esquerda marxista e comunista a qual ele era vinculado. Não à toa, portanto, o ensaio inicia situando a questão trabalhada dentro da “formação do pensamento marxista” (COUTINHO, 1979, p. 33). Reivindica a autoridade de diversas personalidades de dentro do escopo do marxismo/comunismo, além de conceitos próprios a esta tradição de pensamento. E, também, registra a percepção da generalização da “rejeição do ‘modelo soviético’” (COUTINHO, 1979, p. 34), que seria decorrente da nova forma de conceber a relação socialismo/democracia trazida pelo chamado “eurocomunismo”.

É significativo, portanto, que ele justifique a defesa de sua posição como decorrente de uma leitura de autores marxistas — em especial das obras de Marx, Engels e Lênin -, enquanto seus oponentes incorreriam em uma “errada concepção da teoria marxista do Estado” (COUTINHO, 1979, p. 34). Chama atenção as diversas reivindicações do “acerto” de Lênin. Diz Coutinho:

Se quisermos ser fiéis ao método de Lênin, temos de chegar à seguinte conclusão: é verdade que o conjunto das liberdades democráticas em sua forma moderna (…) tem sua gênese histórica nas revoluções burguesas (…), mas é igualmente verdade que, para o materialismo histórico, não existe identidade mecânica entre gênese e validade (COUTINHO, 1979, p. 35, grifos no original).

A defesa do “valor universal da democracia”, portanto, tinha um duplo foco: a esquerda que defendia acriticamente o “modelo soviético” e possuía uma visão meramente instrumental da democracia (que, naquele momento, personificava-se em Prestes); e a ditadura militar brasileira, que havia suprimido as “conquistas democráticas” mais básicas, existentes no período anterior a 1964. Coutinho estava ciente que a defesa dessas posições abria a possibilidade de seu texto ser interpretado como uma defesa da democracia liberal, o que o levou a explicitar enfaticamente o que entendia como sendo a diferença desta em relação à sua proposta.

Um elemento que Coutinho aponta como distinguindo “a concepção burguesa e a concepção marxista da democracia” é a questão da hegemonia (COUTINHO, 1979, p. 39), que seria um ponto central para não recair na errada pressuposição da teoria liberal de que existiria na sociedade capitalista uma igualdade não só formal, mas também real.15 E, na prática, levaria à defesa da hegemonia das classes populares — indo, portanto, além dos limites da democracia liberal. Com isso, Coutinho conclui que “a relação da democracia socialista com a democracia liberal é uma relação de superação dialética (Aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda” (COUTINHO, 1979, p. 40, grifos no original).

A conjuntura da redemocratização brasileira punha a “questão da democracia” na ordem do dia, devendo ser defendida “inclusive em seus limites puramente formal-liberais” (COUTINHO, 1979, p. 41). Esta “renovação democrática” seria a alternativa para não recair na “via prussiana” que, segundo Coutinho, regeu as transformações no Brasil e atingiu sua forma mais acabada com o regime militar.

Mas, no caso em pauta, mais importante do que aquilo que deveria ser defendido (na medida em que a defesa do socialismo e do fim da ditadura eram pautas relativamente consensuais entre aqueles que Coutinho se dirigia prioritariamente), era o modo como deveria ser defendido. O “golpismo” vem, assim, como um método que deveria ser veementemente combatido, inclusive dentro da esquerda.16 Paralelamente, dever-se-ia “conceber a unidade como valor estratégico”, o que leva a uma “busca permanente da máxima unidade possível” (COUTINHO, 1979, p. 45). Com isso, o leque de alianças das “forças populares” amplia-se, no primeiro momento, para todos os interessados no fim da ditadura e manutenção das instituições democráticas.

Coutinho conclama a união de todos os “oposicionistas”, mas menciona o programa do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) como um exemplo — entre outros possíveis, como ele próprio enfatiza — de definição da “necessidade imperiosa de acentuar (…) aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta pela conquista de um regime de liberdades político-formais” (COUTINHO, 1979, p. 34). E, ao mesmo tempo, opõe-se àqueles que “revelam ter da democracia uma visão estreita, instrumental, puramente tática” (COUTINHO, 1979, p. 34). Afastava-se, assim, do grupo ligado a Luiz Carlos Prestes, mas também do nascente Partido dos Trabalhadores (PT), formalmente fundado em fevereiro de 1980 e ao qual ele viria a se filiar em 1989, juntamente com Leandro Konder e Milton Temer. Segundo a justificativa apresentada posteriormente por Coutinho, foi justamente por conta desse seu “aliancismo” que ele havia resistido a entrar no PT, um partido “sectário”.17

Na leitura de agentes que compunham o grupo ao qual Coutinho estava vinculado na época, a defesa do “aliancismo” inseria-se em uma linha que já vinha, pelo menos, desde a “primeira renovação pecebista” e que fora reafirmada durante a ditadura militar, com o combate à perspectiva adepta da luta armada e a defesa da atuação da oposição por meio do MDB (MALIN, 2018; SANTOS, 1994, 2012). Nesta leitura, a defesa da democracia feita pelos eurocomunistas brasileiros responderia a uma “tradição” que remete à chamada “Declaração de Março”, lançada em 1958 pelo Comitê Central do PCB. Tal documento é visto como um marco na luta contra o “stalinismo” e pela valorização da democracia, apesar da existência de “contrabandos” (termo utilizado por Armênio Guedes) que deixavam a Declaração um documento ainda ambíguo (MALIN, 2018, p. 126-130).

Percebe-se, portanto, que a defesa dessas posições era também uma tomada de posição dentro das disputas internas ao PCB e em meio ao movimento comunista internacional. Apesar de por vezes implícito, na medida em que Prestes não é diretamente citado, um dos principais embates que pode ser visto nas páginas do ensaio era em relação ao “Cavaleiro da Esperança” e à defesa das posições que, para os “renovadores”, ele representava. Não à toa, do lado oposto, Prestes condena o que seria a defesa da “democracia burguesa” e afirma que negar a possibilidade do uso de armas no processo revolucionário era um erro (MORAES; VIANA, 1982, p. 217).

Ao condenar toda forma de autoritarismo e reivindicar a necessidade de união de todas as “forças progressistas” na luta contra a ditadura, o texto amplia seu leque de alianças, atraindo a atenção de setores liberais, que viam no texto, além de tudo, um instrumento para a crítica à União Soviética e defesa das instituições democráticas. Desse modo, o ensaio de Coutinho acaba por fazer coro com uma tendência mais geral de defesa da democracia, gestada em meio aos embates da Guerra Fria, que pode ser caracterizada por aquilo que Guilhot (2005, p. 10) chamou de “ambíguas cruzadas democráticas”.

As interpretações possíveis e a interpretação legítima: O texto como um espaço de disputas

Coutinho mostrou-se surpreso com a reverberação da obra e com o “equívoco” de muitas interpretações, de modo que significativa parte das suas intervenções posteriores sobre o referido ensaio são respostas a interpretações que ele julgava mais ou menos corretas. Ele se mostra, assim, empenhado em uma disputa por definir qual a interpretação legítima e qual o valor social da referida obra. Nessa disputa está implicada não apenas o sentido da obra, mas quem pode julgá-la e como se pode fazê-lo (BOURDIEU, 1968).

As reedições do ensaio de Coutinho e os comentários dirigidos a ele ilustram de modo exemplar essa disputa pela definição do “sentido público” (BOURDIEU, 1968) de uma obra. A existência dessas divergências, porém, só é possível por conta de os diferentes atores concordarem, pelo menos, quanto à importância de se debater a “questão democrática” e quanto aos meios adequados para fazê-lo (textos em periódicos acadêmicos ou não, livros e seminários).18

O próprio Coutinho manifesta essa percepção quanto à repercussão da obra. Conforme sua leitura realizada a posteriori sobre a difusão do ensaio feita no Prefácio ao livro de 1984, Coutinho afirma que o texto:

Gerou polêmicas, motivou consensos e dissensos. Valeu-me acerbas críticas, tanto de doutrinários ‘marxistas-leninistas’ como de liberais. Mas também foram muitos os que (...) expressaram o seu acordo com as teses centrais do livro. E, sem falsa modéstia, creio que os ensaios tiveram um certo peso na consolidação, entre muitos comunistas, da consciência de que não é mais possível manter a fidelidade ao método de Marx e às exigências do mundo moderno sem superar inúmeros preconceitos ‘marxistas-leninistas’ (COUTINHO, 1984, p. 12, grifo no original).

Uma década e meia depois, Coutinho volta a expressar juízo semelhante:

Sem falsa modéstia, teve uma importância muito grande no debate cultural e político daquele momento. Não tanto pelas suas qualidades intrínsecas — acho que é um ensaio que desenvolve pouco alguns conceitos, é sobretudo um texto de combate, simultaneamente contra a ditadura e contra o chamado ‘marxismo-leninismo’ — mas penso que, com ele, pus o dedo num tema que realmente era um tema ‘quente’, a exigir uma discussão (COUTINHO, 2006 [1999], p. 180).

Há pelo menos três elementos a destacar desses dois trechos. Primeiramente, a já citada percepção da importância que teve o texto no debate ocorrido no período. Em segundo lugar, a definição dos dois alvos prioritários — a ditadura e o marxismo-leninismo. E, por fim, a definição do ensaio como um texto inacabado, com conceitos ainda a serem melhor desenvolvidos.

Este último elemento, longe de diminuir a importância do texto, expressa o deslocamento da responsabilidade de melhor desenvolver os aspectos inacabados do texto para a posteridade, o que foi feito por muitas das intervenções posteriores do próprio Coutinho. Não é à toa, portanto, que autores como Marcelo Braz entendam esse ensaio como um “projeto teórico-político que norteou a trajetória de CNC” (BRAZ, 2012, p. 255).

Cabe frisar, assim, que o texto foi novamente publicado em 1980, pela editora Ciências Humanas, em livro com o título A Democracia como Valor Universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil. E, em 1984, pela editora Salamandra, com o título A Democracia como Valor Universal e outros ensaios. Além de ter sido um dos pontos debatidos no seminário As Esquerdas e a Democracia, transformado em livro (GARCIA, 1986). De tais reedições e debates pode-se apreender o modo como Coutinho pautou as leituras possíveis sobre o texto, com suas mudanças de ênfases e autocríticas.

2º momento: a republicação em 1980

Contribuíram para a delimitação do leque de leituras possíveis as mudanças que foram realizadas no texto publicado em 1980, pela editora Ciências Humanas.19 Destaco, a título de exemplo e sem a intenção de realizar uma comparação exaustiva, algumas alterações. A versão publicada em 1980 traz uma introdução ampliada — que Coutinho passa a chamar de “Premissa”. Nela, há uma referência ao erro da “tentativa stalinista de generalizar acriticamente para o Ocidente o modelo de transição seguido pelos bolcheviques”, enquanto “Antonio Gramsci (…) lança as bases para uma refundação da teoria marxista da transição ao socialismo, colocando a questão democrática no centro dessa transição” (COUTINHO, 1984, p. 18).

Novas notas de rodapé foram adicionadas. Uma delas (nota 8, da página 26) vem justamente para complementar um parágrafo que foi reformulado e ampliado, em que Coutinho comenta a diferença entre a “democracia socialista” e a “democracia liberal”. Haveria, entre um e outro, a “criação de novos institutos políticos” e a “mudança de função” de outros (COUTINHO, 1984, p. 26).20 A nota de rodapé adicionada vem justamente afirmar que Karl Marx havia observado, em sua análise da Comuna de Paris, a “mudança de função” do sufrágio universal na “democracia proletária” (COUTINHO, 1984, p. 26). Mais a frente (nota 22, da página 46), Coutinho afirma que também o XX Congresso do PCUS havia notado esta possibilidade.

Uma outra nota reforça o combate ao “golpismo” (nota 20, da página 43), complementando um parágrafo que fora ampliado para trazer dois exemplos “desastrosos” do “golpismo”: “os eventos ligados ao movimento ‘nacional libertador’ de 1935 e os que culminaram na tragédia de 1964” (COUTINHO, 1984, p. 43). O “golpismo” é, portanto, um modus operandi que esteve/estava presente em diversos âmbitos da atuação da esquerda — com destaque para esses dois eventos em que o PCB foi tão presente. A nota seguinte trata ainda do mesmo tema: “é interessante observar que, já em 1967, uma importante força da esquerda brasileira — o PCB — empreendia uma dura autocrítica quanto à concepção golpista das transformações sociais” (COUTINHO, 1984, p. 44).

Também é sintomático o esclarecimento sobre a concepção de “valor” utilizada no texto.21 Diz Coutinho: “Cabe dissipar, desde já, um possível mal-entendido. Quando falamos em ‘valor’, não temos em vista — à maneira de Kant — uma norma abstrata e intemporal que ‘valeria’ como um dever-ser independente da história e de suas leis (…)” (COUTINHO, 1984, p. 22). E segue explicitando a adoção do “ângulo rigorosamente histórico-materialista” (COUTINHO, 1984, p. 23), apoiando-se em Georg Lukács e Agnes Heller. Ciente da existência de “mal-entendidos” possíveis, Coutinho adianta-se reiterando o seu vínculo com a perspectiva teórico-metodológica reivindicada pelos marxistas, explicitando a sua posição nas polêmicas internas.

Dessas alterações, podemos destacar dois pontos interligados: 1) a reivindicação da manutenção da filiação à tradição intelectual vinculada a Marx, mas com uma maior explicitação da tomada de posição interna a esta tradição, vinculando-se a um determinado segmento da mesma (em especial, Gramsci) e enfatizando a crítica à “generalização” do “modelo bolchevique”; 2) a ênfase e maior explicitação de certos pontos polêmicos do texto, em especial o imbróglio relativo à concepção da democracia liberal e a crítica ao comunismo — com destaque para o “golpismo” presente no PCB).

3º Momento: a edição de 1984

A edição de 1984 traz uma reprodução do texto publicado em 1980, com a adição de novos ensaios e sem alterar os que foram publicados na edição anterior. O livro é dividido em três partes, além do Prefácio. A primeira parte consta apenas o ensaio A Democracia como Valor Universal, mantendo-se o texto igual ao que fora publicado em 1980. A segunda parte intitula-se Temas de história do marxismo. Já a terceira e última parte, intitula-se O caso brasileiro (ver COUTINHO, 1984). Também é significativo que o livro comece, em epígrafe, citando três marxistas (V. I. Lênin, Rosa Luxemburgo e Enrico Berlinguer) — o que estabelece, de antemão, o “terreno” ao qual ele filia sua discussão.

No prefácio, o livro é apresentado como objetivando refletir sobre a democracia tanto no que tange à sua relação com o socialismo quanto à sua importância para as lutas travadas no Brasil. E, tal qual na entrevista citada anteriormente (COUTINHO, 2006 [1999]), aqui também é explicitado o seu caráter de “esboço”.

Este prefácio, porém, demarca uma certa leitura sobre a relação entre o ensaio, o Partido Comunista Brasileiro e o chamado “socialismo real”. O “marxismo-leninismo”, com seus “inúmeros preconceitos”, passa a ser explicitamente um dos alvos centrais. E a crítica ao PCB e demais PCs, já presente desde 1979, muda radicalmente de tom. A disputa não é mais pelos rumos que o PCB deveria tomar, mas por afirmar que este não deve “deter o monopólio da representação política dos comunistas brasileiros”, posto que “esse agrupamento político não estava preparado para aceitar, em todas as suas implicações teóricas e políticas, o valor universal da democracia” (COUTINHO, 1984, p. 12). A crítica passa a ser ao “socialismo real”, com a “tradição oriunda da Terceira Internacional”, à qual o PCB ainda estava vinculado em sua forma organizacional (COUTINHO, 1984, p. 12-13).

A referência à experiência italiana permanece, mas agora com ênfase na caracterização do PCI como modelo que foi capaz de operar a “profunda renovação interna” (COUTINHO, 1984, p. 13) que o PCB não realizou. Dessa forma, o livro é ainda apresentado como um esforço para contribuir com “a criação de um partido socialista, laico, democrático e de massas, capaz de recolher o que há de válido na herança do comunismo brasileiro, mas, ao mesmo tempo, de incorporar as novas correntes socialistas” (COUTINHO, 1984, p. 13).

Tal exposição aconteceu logo após a “marginalização” do grupo ao qual Coutinho estava vinculado — a corrente renovadora — dos cargos de direção do PCB, o que ocorreu nas imediações da preparação do VII Congresso do Partido, realizado entre 1982 e 1983.22 A preconização da necessidade de criação de um novo partido, portanto, não só exclui o PCB como uma alternativa possível, mas os demais partidos da esquerda, como o Partido dos Trabalhadores, que reunia diversos setores da esquerda no período e ao qual Coutinho veio a se filiar posteriormente (em 1989).

Foi também significativa a crise vivida pelo PCI com a URSS. Esta crise culminou em um “racha”, ocorrido em 1981, que, conforme caracterização de Lucio Magri (2014, p. 327), “era apenas o ponto de partida de um trabalho de reelaboração cultural refundadora”. Punha-se em questão, assim, o próprio legado da experiência soviética e as bases teóricas nas quais ela estava pretensamente assentada.

Por mais que alguns possam indicar que essa crítica já estava apontada no ensaio original, sendo apenas melhor desenvolvida posteriormente (BRAZ, 2012), cabe frisar que, quando da primeira publicação do ensaio (1979), havia outras possibilidades em aberto. O texto era também parte de uma disputa interna ao PCB e, de modo mais amplo, quanto aos rumos do comunismo mundial. E o desfecho destas disputas — a não ser em leituras teleológicas — não havia como ser previsto pelos seus próprios protagonistas.

4º momento: O seminário As Esquerdas e a Democracia, de 1986.

Um outro evento que pode ser explicitado para análise das leituras sobre as possíveis interpretações relativas ao ensaio de Coutinho refere-se ao seminário realizado em 1986 conjuntamente pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e pelo Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) intitulado “Partidos e Movimentos de Esquerda”. Este seminário foi transcrito e publicado em livro (GARCIA, 1986).

Para a discussão foram escolhidos Francisco Weffort,23 Daniel Aarão Reis24 e o próprio Carlos Nelson Coutinho, que cursava o doutorado em Ciência Política no IUPERJ desde o início da década de 1980. Logo após a realização do seminário, Coutinho tornou-se professor titular da Escola de Serviço Social da UFRJ e obteve o título de livre-docente pela UFRJ. Os três são, nas palavras do organizador do livro, “intelectuais universitários competentes e reconhecidos (...), têm em comum o fato de manterem com a política uma relação que extravasa o terreno puramente acadêmico” (GARCIA, 1986, p. 12).

Além do reconhecimento pelos pares desta condição de destacados políticos-intelectuais, cabe também frisar que o CEDEC despontava, desde sua criação em 1976, como um dos principais institutos de pesquisa de São Paulo, dado o recebimento de recursos da Fundação Ford.25 Este evento ganha interesse suplementar para a presente análise, portanto, dada a posição institucional dos participantes e por fazer-se investido tanto da autoridade acadêmica de estar ligado a um GT da ANPOCS quanto pelo fato de estar vinculado a uma instituição como o CEDEC, que agregava importantes personalidades do campo político e intelectual paulista e nacional.

Ao comentar seu ensaio, Coutinho destaca que este tinha como objetivo discutir a democracia e sua relação com o socialismo. Mas, dessa vez, dá especial ênfase para um outro ponto: o objetivo de “abandonar essa visão da realidade brasileira como a de um país atrasado, semicolonial, ainda carente de uma revolução de libertação nacional” (COUTINHO, 1986, p. 61). Corroborando a leitura feita por Coutinho sobre o seu próprio ensaio, Marcelo Braz aponta que o grupo ao qual Coutinho estava vinculado “visava girar o eixo estratégico da revolução reforçando a centralidade da ‘questão democrática’ no sentido de associá-lo ao par socialismo/democracia como uma alternativa à clássica etapa democrático burguesa” (BRAZ, 2012, p. 248). Com isso, Coutinho demonstra o seu afastamento em relação à leitura que preponderara no partido em relação à revolução brasileira,26 demarcando uma posição contrária àqueles setores da esquerda que permaneciam sustentando tal perspectiva.

A crítica a esta visão da realidade está ligada à crítica à Terceira Internacional e ao “marxismo-leninismo” — e, portanto, aos partidos comunistas. Cabe destacar, assim, que se o uso instrumental da democracia já era o principal combate do artigo de 1979, agora esse “desvio” aparece claramente como decorrente dos limites dessa vertente do pensamento marxista. Coutinho é explícito ao afirmar que “a forma marxista-leninista de pensar a questão democrática é uma forma que tende a reduzir a democracia a mero instrumento” (COUTINHO, 1986, p. 61) e, também, que “aquelas velhas concepções da esquerda brasileira, em particular do PCB, de que o capitalismo era bloqueado no Brasil pelo latifúndio e pelo imperialismo não se revelaram verdadeiras” (COUTINHO, 1986, p. 64). Isso vem paralelamente à sua autocrítica em relação ao uso feito por ele do “legado” de Lênin. Autocrítica que só foi possível, segundo o próprio, por conta das leituras da obra de Antônio Gramsci.

Vale frisar, porém, que questionar-se quanto ao fato de essa leitura estar ou não presente no texto original é uma preocupação secundária para os propósitos deste artigo. O que importa destacar, aqui, é a necessidade de Coutinho de (re)apresentar seu vínculo como marxista, com o marxista italiano e o rompimento com esta visão que por muito tempo marcou a leitura da realidade brasileira operada pelo PCB — utilizando-se, para isto, de comentários direcionados ao ensaio.

Intermédios

Esta divisão em três “momentos” visa apenas demonstrar que o texto sofreu com certas vicissitudes que diziam respeito não só à trajetória do seu autor, mas a processos e disputas que ocorreram nos espaços político e intelectual. Com isso, portanto, não se exclui a existência de outros “momentos” que poderiam também ser aqui analisados e que perduraram nas décadas de 1990 e 2000. Entre cada um destes “momentos”, existiram inúmeras críticas e comentários. O próprio Coutinho, no prefácio à edição de 1984, destaca três delas.27 Como se pode ver no quadro a seguir:

Quadro 1: Intervenções destacadas por Coutinho (1984)

Referência do texto Caracterizado como
COUTINHO, C. N. A democracia como valor universal. In. Encontros com a Civilização Brasileira, V. 9, 1979.
RODRIGUES, Otávio. Contra o revisionismo. 1979. Exemplar das críticas “do lado ‘marxista-leninista’”; panfleto doutrinário e pouco equilibrado (COUTINHO, 1984, p. 12)
FILHO, Adelmo Genro. A democracia como valor operário e popular (resposta a Carlos Nelson Coutinho). In. Encontros com a Civilização Brasileira, V. 17, 1979. Outro exemplar das críticas “do lado ‘marxista-leninista’”; “mais equilibrado (mas nem por isso menos doutrinário)” que o texto de Otávio Rodrigues (COUTINHO, 1984, p. 12).
COUTINHO, C. N. A democracia como valor universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo. Livraria Editora de Ciências Humanas, 1980.
MERQUIOR, José Guilherme. Marxismo e democracia. In: MERQUIOR, J. G. As ideias e as formas. 1981. Exemplar das críticas “do lado liberal” (COUTINHO, 1984, p. 12).
COUTINHO, C. N. A democracia como regime que avança. In. Isto É, 21/01/1981 Resposta ao texto de Merquior (1981) (COUTINHO, 1984, p. 12).
Produzido pelo autor a partir de Coutinho (1984)

É certo que muitos outros comentários existiram. Dos três listados, o texto de Otávio Rodrigues foi o que teve circulação mais restrita, sendo uma “brochura” escrita para o VII Congresso do PCB e publicado sem a mediação de uma editora. Enquanto o texto de Adelmo Genro, publicado na mesma revista e no mesmo ano que fora publicado o ensaio de Coutinho, recebeu menções posteriores, como indicado por Lucca-Silveira (2012).

O texto de Adelmo Genro é posto como representante do mesmo “lado” do texto de Otávio Rodrigues — ou seja, o lado “marxista-leninista”. Genro assina o texto como “Bacharel em Direito, vereador em Santa Maria, no Rio Grande do Sul”. Foi eleito vereador pelo MDB, em 1976, logo após a conclusão do curso de jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria.28 Genro argumenta que a análise de Coutinho não seria nem marxista e nem leninista, posto que teria abandonado seus aspectos centrais: operava uma análise não-dialética, abandonava a categoria revolução como significando uma ruptura real e abandonava, também, a apreensão do Estado como uma instituição defensora dos interesses da burguesia. Isso tudo teria levado Coutinho a um erro político crasso: a defesa do “liberalismo emedebista” (GENRO FILHO, 1979, p. 200).

Dessas, apenas a crítica de Merquior recebeu uma resposta direta. Há alguns elementos que podem contribuir para explicar o destaque dado a Merquior. Primeiramente, o fato de Merquior ter tido sua “iniciação intelectual” no marxismo, em conjunto com Leandro Konder e Carlos Nelson, amigos próximos com quem mantinha constante diálogo. Posteriormente, Merquior tornou-se um crítico do marxismo e desenvolveu grande afinidade com o liberalismo. Destaca-se, também, a posição ocupada por ele nos espaços político e intelectual: além da carreira de diplomata, iniciada na França em 1966, Merquior publicou vários livros, muitos deles direcionados a criticar o marxismo, e foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1982 — um ano após a publicação em livro de suas críticas ao ensaio de Coutinho. Ademais, responder a críticas é não só (re)atestar a importância do referido ensaio e mantê-lo circulando, mas usufruir da oportunidade de, mais uma vez, resolver qualquer possível “mal-entendido” e adicionar novos elementos para as leituras subsequentes.

Os dois textos de Merquior, intitulado Marxismo e democracia e o outro intitulado Cultura e democracia, foram publicados em três etapas no Jornal do Brasil (27/12/1980, 03/01/1981 e 10/01/1981) e depois republicado em livro. Depois de constatar a existência de “um surto de revalorização da democracia no marxismo brasileiro” (MERQUIOR, 1981, p. 232), Merquior aponta que o ensaio de Coutinho havia ficado encarregado de analisar teoricamente a relação entre a “compatibilidade conceitual entre leninismo e democracia” (MERQUIOR, 1981, p. 232), chegando à conclusão de que seriam plenamente compatíveis. Argumenta que Lênin (e Lukács) teriam, sobre a democracia, justamente a posição contrária a que Coutinho alegava defender. O objetivo de Coutinho, portanto, seria mais facilmente atingido abandonando Lênin e ficando só com Gramsci. Mas, ainda assim, na medida em que o uso do conceito de hegemonia havia levado Coutinho a uma “ode ao ‘consenso’” (MERQUIOR, 1981, p. 238), sua defesa da democracia permanecia inviabilizada.

Coutinho não só responde a Merquior, mas aceita parte de sua crítica, afastando-se de Lênin. Do outro lado — o “marxista-leninista” — Coutinho também aceita parte da crítica: contra Genro Filho, reafirma seu vínculo ao pensamento de Karl Marx e nega que teria se resumido à defesa do “engodo liberal”, mas não contesta a acusação de “antileninismo”.

O imbróglio relativo a estes dois pontos (a relação entre o ensaio e o marxismo-leninismo e com o liberalismo) persiste no tempo. Em 2002, em entrevista a José Corrêa Leite e Emiliano José — publicada na revista Teoria & Debate e republicada no livro Intervenções (COUTINHO, 2006) Coutinho discorre sobre os elementos do liberalismo que devem ser “herdados” e afirma: “hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título A democratização como valor universal. O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa” (COUTINHO, 2006, p. 133).

Essa mudança de ênfase é assumida pelo próprio Coutinho, que a explica a partir da mudança do “combate ideológico” travado em cada ocasião. Diz Coutinho: “em 1979, tinha a clara intenção de dizer que sem democracia não há socialismo. Hoje, dado o tipo de combate ideológico que estamos travando, é necessário sublinhar que sem socialismo não há plena democracia” (COUTINHO, 2006, p. 136).

O maior distanciamento em relação ao “leninismo” e maior aproximação a Gramsci, conforme registrada nos três “momentos” aqui analisados, também é assumido por Coutinho, ao mesmo tempo em que reitera a sua identificação enquanto um “marxista convicto e confesso”. Diz Coutinho:

Hoje, não me considero mais um ‘leninista’. (…) agora percebo não só o que nelas se tornou anacrônico, mas também o que já era equivocado no momento em que escrevia ou atuava (…). Passei a aceitar e valorizar positivamente o pluralismo no interior do marxismo. Nesse sentido, não acho, por exemplo, que exista um ‘gramscismo’, embora a reflexão do pensador italiano seja aquela com a qual mais me identifico (COUTINHO, 2006, p. 190-191).

Este movimento foi acompanhado de uma série de trabalhos editoriais e de traduções efetuadas por Coutinho. Isso está de acordo com a leitura que ele faz de sua própria vida como a década de 1980 correspondendo à fase “gramsciana”. Nessa mesma entrevista, Coutinho divide a sua vida entre um “período fanaticamente lukacsiano”, que é sucedido pelo “reencontro com Gramsci, em meados dos anos 1970” (COUTINHO, 2006, p. 180). O referido ensaio é apontado por ele como exemplo desta segunda fase, em que as leituras de Gramsci e a “questão da democracia” passaram a nortear suas produções.29

No que tange à trajetória do autor e do texto, um outro evento importante foi a sua filiação ao Partido dos Trabalhadores (PT), em 1989. Isto fica claro ao analisarmos o livro Democracia e Socialismo, publicado por Coutinho em 1992. Afinal, duas das três partes do livro são compostas por textos anteriormente apresentados e debatidos em eventos organizados pelo partido (COUTINHO, 1992). Afirma o próprio Coutinho, sobre a sua entrada no partido: “queria ser o chato democrático dentro do PT, queria levar para o PT a discussão que eu havia proposto em meu ensaio A democracia como valor universal” (COUTINHO, 2006, p. 137).

Com isso, a posição ocupada e o reconhecimento adquirido pelo autor colocaram-no em condição de pautar, com certo êxito, o modo como o ensaio deveria ser interpretado. Para intervir nestas disputas serviram os prefácios, as alterações da edição seguinte, os textos posteriores comentando a “questão democrática”, as várias entrevistas que ele concedeu etc. Tudo isso se deu paralelamente ao aumento do seu reconhecimento no espaço intelectual e com a afirmação na universidade, o que pôde ser mensurado não só pelo título de livre-docência e assunção do cargo de professor da UFRJ, mas pelas intervenções editoriais que fizera, traduções, publicação de livros e republicações (dentro e fora do Brasil).

Considerações finais

O argumento aqui sustentado centra a explicação do reconhecimento e circulação deste texto a partir de três elementos interconectados. Primeiramente, pela trajetória de Coutinho. Quando publica o ensaio, em 1979, ele já dispunha de alguns trunfos e recursos decorrentes de sua atuação concomitantemente política e intelectual, que inclusive contava com o aval de um grupo mais amplo, consolidado na Europa, com certo reconhecimento intelectual e inserção em espaços acadêmicos, tanto dentro quanto fora do Brasil. Adquiriam, com isto, legitimidade para atuar como mediadores de certas “tendências” em voga na Europa e como mediadores entre o espaço intelectual e o político. O texto já entra em cena, assim, dotado de certa credibilidade e com a marca de um grupo específico (a chamada “corrente renovadora”).

Em segundo lugar, por conta das posições reivindicadas pelo texto: a condição de marxista, a crítica à União Soviética e ao chamado “socialismo real”, a condenação de todo e qualquer tipo de autoritarismo e “golpismo” e a defesa parcial do “legado” do liberalismo, com a valorização das instituições democráticas. O texto possuía, com isto, certa capacidade de englobar interpretações distintas dentro deste amplo espectro de defesa da democracia, clamando por um combate ao “autoritarismo” que direcionava-se não só para o regime ditatorial brasileiro, mas para um extenso leque de experiências, indo desde as ditaduras que ocorreram na América Latina a práticas de dirigentes partidários e países comunistas. Com isso, o texto de Coutinho torna-se um aliado parcial de setores que historicamente opunham-se aos comunistas — em que podemos destacar os liberais.

O uso do léxico marxista-comunista já é, por si, uma tomada de posição, na medida em que se reivindica no interior do “pensamento marxista”. É tanto consequência das condições de produção — das condições de sua formação político-intelectual no interior do PCB — quanto condicionante da circulação, visto que se dirige prioritariamente àqueles que conhecem tais códigos. Mas, por conta do conteúdo de sua crítica, a reivindicação da condição de marxista e (ex)comunista não tinha como consequência apenas uma relativa restrição da circulação do texto, mas o trunfo de poder reivindicar a autoridade de quem conhece “por dentro” aquilo que critica.

Em terceiro lugar, importa também a trajetória do seu autor no período subsequente à publicação do texto e a existência de outros políticos e intelectuais que se reivindicavam como adeptos das posições ali defendidas. A trajetória política e acadêmica de Coutinho é, portanto, um dos fatores condicionantes da circulação do texto e das possíveis interpretações, levando-o a se afirmar como um dos agentes mais autorizados a determinar qual a interpretação correta do mesmo.

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VIEIRA, L. R. Ênio Silveira e a Civilização Brasileira: notas para uma sociologia do mercado editorial no Brasil. Revista de Biblioteconomia de Brasília, v. 20, n. 2, p. 139-192, jul./dez. 1996.


  1. Amplamente reconhecidos como intelectuais, alguns deles adquiriram relativo relevo no espaço acadêmico (além do próprio Coutinho, pode-se citar, entre outros, Werneck Vianna, Leandro Konder, Ivan de Otero Ribeiro, Marco Aurélio Nogueira e Milton Lahuerta).↩︎

  2. Na leitura destes agentes, a “primeira renovação pecebista” foi um fenômeno acontecido nas fileiras do PCB em fins da década de 1950, que pode ser definido por uma perspectiva crítica à postura da União Soviética e por uma maior valorização da democracia política. É associada às reações críticas ao Relatório Kruschev, publicado em 1956 contendo diversas denúncias de crimes cometidos por Stálin. Esta posição teria se concretizado na resolução publicada pelo Comitê Central do PCB em 1958, que ficou conhecida como “Declaração de Março” (SANTOS, 1994; 2012).↩︎

  3. Esforços neste sentido foram feitos, por perspectivas distintas, por alguns pesquisadores (LUCCA-SILVEIRA, 2012; RAMOS, 2013; BRAZ, 2012; NEVES, 2016).↩︎

  4. A capacidade de um autor de pautar como o seu próprio texto deve ser lido está longe de ser uma obviedade. Baseando-se em Bourdieu (2002), Mário Grynszpan (2012) demonstra, com base no livro Sociologia dos Partidos Políticos, de Michels, que os textos que se tornam “clássicos” costumam ganhar certa autonomia frente aos objetivos e intenções do autor — o que decorre, em especial, da diversidade dos meios de recepção do texto. As distintas interpretações e o próprio reconhecimento do autor e do texto, assim, decorrem de um processo que envolve diversos agentes — além do próprio autor, os tradutores, editores, prefaciadores, resenhistas etc. — e que o autor, por mais que consiga interferir neste processo, não detém o controle completo.↩︎

  5. Apesar de haver fontes que indicam seu vínculo com a UFRJ sendo iniciado em 1986, optei por utilizar a informação que consta na “Nota preliminar” do livro que foi publicado contendo o trabalho apresentado para a banca examinadora do concurso para a referida universidade (ver COUTINHO, 1989).↩︎

  6. Tal qual sugerido por Lygia Sigaud (2007) em seu estudo relativo ao Ensaio sobre o Dom, de Marcel Mauss; e por Mario Grynszpan (2012) em seu estudo relativo ao livro Sociologia dos Partidos Políticos, de Robert Michels.↩︎

  7. As aspas visam chamar atenção para o esforço de “abandonar a premissa de um sujeito criador que elabore seu pensamento liberto de qualquer restrição imposta pela existência de mecanismos sociais e culturais” (FARIA, 2002, p. 7).↩︎

  8. Para perspectivas distintas desta oposição, ver em Sorj (2001) e Miceli (1995).↩︎

  9. Como o intuito deste tópico é subsidiar a compreensão das condições nas quais Coutinho produziu e publicou o referido ensaio, cito apenas as publicações que antecederam a primeira publicação do ensaio, em 1979.↩︎

  10. Baseio-me aqui na listagem disponibilizada no Anexo 1 da tese de Neves (2016).↩︎

  11. O “eurocomunismo” incluía ainda o Partido Comunista Espanhol, além de outros partidos comunistas europeus menores. Apesar das divergências entre eles, podemos destacar alguns eixos comuns, como a busca por autonomia em relação à União Soviética, uma perspectiva crítica em relação à experiência dos países soviéticos e a valorização da democracia — inclusive no que tange às suas instituições formais (MONDAINI, 2006).↩︎

  12. Coutinho (1979, p. 34) cita literalmente a seguinte frase de Enrico Berlinguer: “A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista”.↩︎

  13. Apesar de não terem constituído, de fato, um partido político ou mesmo um grupo formalizado, a “corrente prestista” resultou em uma rede com “fios” em diversos estados brasileiros (COSTA, 2013), contando com a adesão de diversos dirigentes com reconhecida atuação regional, como pode ser visto no caso da comunista maranhense Maria Aragão (SILVA, 2017).↩︎

  14. Anita Prestes (2012) intitula este grupo de “pântano”, pra destacar a sua falta de definição clara em relação aos embates envolvendo, por um lado, os renovadores e, por outro, os “prestistas”. Em entrevista, Marco Aurélio Nogueira destaca a imprecisão do termo “pântano”, usado de forma pejorativa. Para Nogueira, este grupo seria melhor descrito pela ausência de atualização, por um modo “duro” e ortodoxo de lidar com a organização partidária mas, ao mesmo tempo, pela defesa da construção de alianças amplas e da via democrática como forma de resolução dos problemas políticos brasileiros (SILVA, 2021).↩︎

  15. Em nota de rodapé, Coutinho cita Fernando Henrique Cardoso como um exemplo de defesa da democracia liberal. Segundo Coutinho, Cardoso entende que a busca do consenso/hegemonia seria algo próprio dos regimes autoritários, enquanto a democracia seria assimilada ao “pluralismo”. Ver Coutinho (1979, p. 47, nota 9).↩︎

  16. A crítica ao “golpismo de esquerda”, no interior do PCB, não é uma novidade dos anos 1970. Já em 1958 isto era debatido na chamada “primeira renovação pecebista” (SANTOS, 1994), por mais que seja possível afirmar que apenas em fins da década de 1970 foi conferida para a questão da democracia uma maior centralidade (LUCCA-SILVEIRA, 2012).↩︎

  17. Termos endógenos. Ver Coutinho (2006, p. 137).↩︎

  18. Em Neves (2016) pode-se ver uma exaustiva listagem com todas as matérias divulgadas sobre Carlos Nelson Coutinho na imprensa — pelo menos 10 delas sobre o referido ensaio.↩︎

  19. O texto publicado em 1980 foi republicado, sem alterações, em 1984. Por este motivo, sem que isto incorra em prejuízos, utilizamos esta edição para análise do que estamos chamando aqui de “2º Momento”.↩︎

  20. Ver Coutinho (1979, p. 37) para apreciação das demais mudanças relativas ao parágrafo equivalente no original.↩︎

  21. João Quartim de Moraes (2001) chama atenção para esta alteração feita por Coutinho em seu esforço para convencer o leitor do vínculo entre o “ângulo” adotado em seu ensaio e a perspectiva do materialismo-histórico. Este autor, porém, não tergiversa em defender sua posição: “de materialista, este ângulo só nos parece ter o nome” (MORAES, 2001, p. 28).↩︎

  22. Raimundo Santos (1994, p. 47) menciona “a marginalização desse significativo grupo em fins de 1983, no ápice do longo período das discussões preparatórias para o VII Congresso do PCB”. Pode-se ver, também, a fala de Armênio Guedes (MALIN, 2018, p. 477).↩︎

  23. Weffort era professor do curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) desde 1961, já havia sido presidente da ANPOCS (1977-1980) e recebido o título de livre-docente pela USP (1977). Foi também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e, no momento da realização do seminário, ocupava o cargo de secretário-geral do partido. Sobre Francisco Weffort, pode-se ver Tauil (2017).↩︎

  24. Daniel Aarão Reis é professor do curso de História da Universidade Federal Fluminense desde 1981 e, no momento do seminário, cursava doutorado em História na USP (1982-1987). Durante a ditadura militar, militou no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), adepto da luta armada, e foi exilado. Durante o exílio na França, conclui sua graduação e mestrado em História. Aarão Reis também participou da fundação do PT. Há um perfil biográfico do mesmo em: une.org.br↩︎

  25. Ver Miceli (1995).↩︎

  26. Conforme asseverado por diversos analistas, o PCB possuía uma análise “etapista” da revolução brasileira. Antônio Carlos Mazzeo, por exemplo, afirma que, em especial após o início da década de 1930, “a nova linha teórico-prática [do PCB] passa a entender a implementação da democracia como desdobramento de uma ‘etapa’ democrática que não estaria a cargo da classe operária, mas de uma suposta ‘burguesia nacional’, que estaria desenvolvendo-se em ‘contradição’ com o imperialismo. Essa política, imposta de cima pelo Komintern, será a responsável pelos inúmeros equívocos cometidos pelo PCB, determinando uma inversão, na qual a estratégia de ação estará permanentemente subordinada à tática da revolução realizada em ‘etapas’” (MAZZEO, 1999, p. III-IV).↩︎

  27. Lucca-Silveira (2012) analisa três críticas ao ensaio, que foram escolhidas por indicação do próprio Coutinho em livro publicado em 2008. São elas: a de Márcio Naves, publicada na revista Temas de Ciências Humanas, em 1981; a de Adelmo Genro Filho, publicada na revista Encontros com a Civilização Brasileira, em 1979 (ambas criticando, por vieses distintos, a incompatibilidade das teses de Coutinho com o marxismo); e a de José Guilherme Merquior, publicada em livro em 1981, pela editora Nova Fronteira, que louva a defesa da democracia feita por Coutinho, mas aponta a inadequação entre esta e o leninismo reivindicado no texto.↩︎

  28. Informações biográficas retiradas de: www.adelmo.com.br↩︎

  29. Uma listagem completa das intervenções editoriais de Coutinho pode ser vista em Neves (2016).↩︎

Resumo:
Neste artigo, apresenta-se uma análise das condições sociais de produção e de circulação do texto intitulado A democracia como Valor Universal (1979), de Carlos Nelson Coutinho. Partimos da apresentação de considerações sobre a trajetória do “autor”; em seguida, do modo como o texto se posiciona contra e a favor de certos agentes; por fim, expomos algumas (auto)críticas sobre as propostas defendidas no ensaio. Sustenta-se que a explicação da produção e circulação desse texto deve passar, pelo menos, por três fatores interconectados: o aval de um grupo mais amplo; o próprio conteúdo e caráter do texto, capaz de englobar interpretações relativamente distintas; e, por fim, a relativa capacidade do autor de pautar qual seria a leitura legítima do texto e da democracia brasileira.

Palavras-chave:
Intelectuais comunistas; marxismo; eurocomunismo; Carlos Nelson Coutinho.

 

Abstract:
The objective of this article is to present an analysis of the social conditions of production and circulation of the text titled Democracy as Universal Value (1979), by Carlos Nelson Coutinho. First, we present some considerations about the author’s path; then, we present the way in which the text positions itself against and in favor of certain agents; finally, we expose some reviews about the proposals defended in the essay. It is argued that the explanation of the production and circulation of this text must go through at least three interconnected factors: the endorsement of a broader group; the contente and character of the text, capable of encompassing different interpretations; and, finally, the relative author’s ability to determine which is the most legitimated way to read the text and the brazilian democracy.

Keywords:
Communist intellectuals; Marxism; eurocommunism; Carlos Nelson Coutinho.

 

Recebido para publicação em 14/08/2020
Aceito em 23/06/2021