Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.a04
ISSN: 2318-4620

 

 

Uma história de controvérsias:
a implantação do Aeromóvel em Porto Alegre/RS

 

Valesca Daiana Both Ames OrcID
Universidade Federal do Paraná, Brasil
valesca.ames@gmail.com

Marilis Lemos de Almeida OrcID
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
marilis_almeida@yahoo.com.br

 

Introdução1

Em agosto de 2013, foi inaugurada na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, uma linha do Aeromóvel, ligando a Estação Aeroporto da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb) ao Aeroporto Internacional Salgado Filho. A inauguração desta linha representou um ponto alto de uma longa história de debates, negociações e controvérsias em torno da tecnologia, que se estendeu por mais de quarenta anos e sobre a qual buscaremos lançar luz neste artigo.

Para iniciarmos nossa discussão e situarmos melhor o leitor, falaremos um pouco sobre o Aeromóvel. Ele pode ser definido como um meio de transporte automatizado em via elevada, sobre trilhos, que se movimenta com energia eólica gerada por ventiladores elétricos — o ar impulsiona uma aleta localizada abaixo do veículo, no interior da via elevada (AEROMÓVEL BRASIL, 2011). Este projeto de transporte urbano, inspirado nos conceitos da aviação, foi concebido no final da década de 1960 pelo técnico em aeronáutica, empreendedor e inventor Oskar Coester. Desde sua criação foram realizados diversos estudos, experimentos e tentativas de implantá-lo em Porto Alegre, os quais envolveram não apenas o âmbito técnico e científico, mas também a mídia, o governo e empresários. Trata-se de um caso exemplar para o exame das controvérsias tecnológicas desde a perspectiva dos Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia (ESCT), campo de estudos interdisciplinar surgido na década de 1970 que tem como principal objeto de análise “as formas com que os atores sociais e coletivos interferem na produção, circulação e no conteúdo do conhecimento” científico e tecnológico (COSTA; SILVA, 2019, p. 22).

Essa abordagem permite contemplar, ao analisar tecnologias, o processo de construção, implantação e aceitação das mesmas em relação ao contexto sociocultural, político e econômico em que elas se desenvolvem. A construção de um artefato tecnológico é considerada resultado das negociações, disputas e controvérsias entre distintos atores e grupos sociais. Desta forma, elabora-se uma crítica à visão determinista e linear do desenvolvimento tecnológico, segundo a qual a tecnologia seguiria uma trajetória única, ordenada e autônoma em relação à esfera social em que está inserida (BIJKER, 1987; 2010).

Este artigo pretende, então, contar uma história sobre o Aeromóvel, lançando um olhar sobre os atores individuais e coletivos que se envolveram na construção e implantação da tecnologia em Porto Alegre, desde o final dos anos 1970 até o ano de 2013. Ainda, busca mapear as posições que estes atores assumiram e os argumentos que sustentaram a favor ou contra a utilização do Aeromóvel como meio de transporte na referida cidade.

Dentre as distintas abordagens que fazem parte dos ESCT, adotamos a Construção Social da Tecnologia — Social Construction of Technology, SCOT —, que possui como principais representantes Wiebe Bijker e Trevor Pinch. O foco da SCOT é a análise das controvérsias tecnológicas, resultado das diferentes interpretações formuladas sobre aspectos específicos da tecnologia pelos atores individuais e coletivos que se envolvem em sua criação e implantação — processo denominado flexibilidade interpretativa. Segundo essa abordagem, a seleção de um determinado artefato tecnológico dependeria das disputas e negociações entre os atores e grupos sociais, detentores de distintos interesses, necessidades e visões a respeito do mesmo. A flexibilidade interpretativa e as controvérsias dela resultantes diminuiriam ou mesmo desapareceriam por meio de dois mecanismos: o convencimento de alguns atores (por meio de campanhas publicitárias, por exemplo) e a redefinição dos problemas percebidos em relação à tecnologia. A SCOT sublinha, ainda, a influência do contexto social e político mais amplo sobre os processos de interpretação e estabilização dos artefatos tecnológicos (PINCH; BIJKER, 1987). Desta maneira, “todo objeto passa a ser encarado como tendo uma história, que é formada por políticas de ajustes e negociações entre produtores, engenheiros, gerentes, experts, cientistas, vendedores, usuários, etc.” (SCIRÉ, 2014, p. 83).

Com o intuito de analisar o processo de implantação do Aeromóvel, utilizamos especialmente três conceitos elaborados pela SCOT: grupos ou atores sociais relevantes, flexibilidade interpretativa e mecanismos de fechamento das controvérsias.

Desta forma, a primeira etapa da pesquisa buscou identificar os atores individuais e coletivos que se envolveram na controvérsia em torno do Aeromóvel, bem como os eventos que caracterizaram a sua história. Para tanto, buscamos matérias jornalísticas no Zero Hora, jornal de maior circulação diária do Rio Grande do Sul, durante o período que se estendeu do final da década de 1970 até o ano de 2012. As matérias jornalísticas (94, ao todo) foram fornecidas pelo próprio Zero Hora por meio de um dossiê.

A segunda etapa consistiu na realização de entrevistas narrativas com os atores que se envolveram mais diretamente na construção e implantação do Aeromóvel — efetuadas de abril a julho de 2013. Particularmente, procuramos apreender as diferentes interpretações formuladas sobre o significado, os problemas e as vantagens da tecnologia para os distintos atores, bem como os conflitos de interesses e acordos firmados entre eles. Neste sentido, buscamos entrevistar tanto pessoas envolvidas com o projeto nas décadas de 1970 e 1980, quanto nas décadas de 2000 e 2010.

Para contemplar principalmente o primeiro período, entrevistamos quatro pessoas: o criador do Aeromóvel, Oskar Coester; o ex-Ministro dos Transportes, Cloraldino Soares Severo (1982-1985); o ex-diretor da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), Jorge Guilherme de Magalhães Francisconi (1978-1982); e um engenheiro aeronáutico que trabalhou na EBTU durante os anos de 1977 a 1987.2

Com relação, sobretudo, ao segundo período, entrevistamos sete pessoas: o então presidente da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb), Humberto Kasper (2011-2016) e um engenheiro da mesma; um engenheiro da empresa Aeromóvel Brasil; um professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) e coordenador nesta Universidade de um projeto de avaliação da tecnologia — realizado em parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); bem como três professores da UFRGS que participaram de estudos sobre o Aeromóvel — dois deles que participaram nas décadas de 1980 e, principalmente, 2000 e 2010, e um deles que participou apenas nesse último período. Ao todo, foram realizadas onze entrevistas.

Além das entrevistas, buscamos apreender as diferentes interpretações formuladas sobre o Aeromóvel em documentos como relatórios técnicos, ata de audiência pública, catálogos de divulgação e termos de contratação do Aeromóvel. Esses materiais foram disponibilizados por alguns dos nossos entrevistados.

Após a coleta do material e a transcrição das entrevistas, passamos para a análise dos dados. Para tanto, conciliamos técnicas variadas, mesclando a análise de narrativas proposta por Schutze a respeito da divisão do material de pesquisa em elementos indexados e não indexados (JOVCHELOVICH; BAUER, 2008), a análise de conteúdo temática (BARDIN, 2011) e a análise argumentativa (LIAKOPOULOS, 2008). O exercício de análise dos dados foi realizado com o auxílio do programa de análise qualitativa Nvivo.3 A seguir, apresentamos os principais resultados alcançados com a pesquisa.

Concepção do Aeromóvel, testes e primeiras controvérsias (1960-1981)

Segundo Oskar Coester, a ideia de construir um meio de transporte em via elevada, capaz de contornar os problemas de mobilidade urbana que já se apresentavam nos anos 1960, surgiu após a sua observação de que o tempo despendido para percorrer pequenas distâncias nas grandes cidades era muito maior do que o necessário para viajar longos trajetos utilizando o transporte aéreo. Em suas palavras:

Em 1959, começamos a fazer o percurso aéreo de Porto Alegre até o Rio de Janeiro em uma hora e meia. Do [aeroporto] Galeão até o lugar em que eu morava, no Leme, eu levava mais tempo. E na época o meu chefe [...], o [Rubem] Berta, dizia assim: “não adianta mudar a velocidade do avião para chegar ao aeroporto”. Aquilo me intrigou. Por que tu consegues fazer mil quilômetros com o avião em menos tempo do que cinco quilômetros no centro urbano? Por quê? Isso foi em 1960. Então, eu comecei a me interessar sobre esse assunto (entrevista com Oskar Coester).

Em maio de 1977, Coester construiu o primeiro protótipo do que mais tarde viria a ser denominado Aeromóvel. O protótipo tinha como objetivo avaliar o consumo energético por passageiro transportado. Conhecido como “cadeirinha”, funcionou em uma pista pequena de aproximadamente 30 metros de comprimento, com capacidade para um passageiro, conforme Figura 1 (AEROMÓVEL BRASIL, 2012). Iniciava-se assim uma longa trajetória pontuada por negociações, avanços e retrocessos, que colocou em relação diversos atores sociais, tais como a mídia, experts, governos, políticos e o próprio inventor que concebeu o projeto.

Figura 1 — Primeiro protótipo do Aeromóvel
Fonte: AEROMÓVEL BRASIL, 2013.

Em dezembro de 1978, Jorge Guilherme de Magalhães Francisconi, diretor da Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU) — instituição ligada ao Ministério dos Transportes e responsável pelo planejamento, condução e avaliação de projetos no setor de transportes do país na época — foi levado por amigos de trabalho até a oficina de uma das empresas de Coester para conhecer este primeiro protótipo do Aeromóvel. De acordo com ele, colocaram-no:

Em uma pequena cadeira de rodas sobre trilhos, ligada a uma placa que corria dentro de duto metálico que terminava em uma pequena ventoinha de ferreiro. Ao ser acionada, a ventoinha aspirou o ar no tubo, puxou a placa no duto e deslocou a cadeira com surpreendente aceleração. Isso foi o que vi e testei, como tantos outros haviam feito (FRANCISCONI, 2006, p. 89).

Enquanto presidente da EBTU, Francisconi considerava que “não poderia ser apenas uma testemunha a mais”, pois “representava a União e devia atender as diretrizes do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que indicava a questão urbana como tema prioritário” (FRANCISCONI, 2006, p. 89). Desta maneira, após essa visita, foi estabelecido um programa de testes para avaliar se aquela tecnologia poderia ser uma alternativa para o transporte urbano.

Assim, em 1979, foi construído um protótipo com maior extensão (500 metros) e capacidade (15 pessoas) na Estrada da Serraria, em Porto Alegre, conforme Figura 2 (COESTER, 1984b, p. 1). Além da EBTU, o projeto recebeu apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). A realização dos testes ficou a cargo da EBTU e da empresa fabricante da tecnologia, a Coester Pesquisas e Participações (FRANCISCONI, 2006). Nesta época, o Aeromóvel era visto pela EBTU, pela empresa Coester e pela mídia como um potencial meio de transporte de alta capacidade, uma alternativa ao metrô — sendo, por isso, denominado “trem movido a ar”. Vemos, assim, que à medida que os testes avançavam, o projeto ganhava maior visibilidade e novos aliados se somavam a ele, como a EBTU e a FINEP. O Aeromóvel então tornava-se “menos ficção”, nos termos de Latour (2000), e fortalecia-se como possibilidade real.

Figura 2 — Primeiros testes com o novo protótipo do Aeromóvel
Fonte: AEROMÓVEL BRASIL, 2011.

Enquanto os testes eram realizados, surgiram críticas à tecnologia por parte de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Essas críticas concentravam-se principalmente sobre o alto consumo energético do veículo. Nesse sentido, afirmou o então professor Ennio Cruz da Costa: “como é sobejamente conhecido, o transporte pneumático tem um consumo de energia bastante superior àquele convencional, só sendo adotado em casos especiais devido à sua praticidade” (COSTA, 1980, p. 2). As incertezas lançadas sobre aspectos técnicos do Aeromóvel relativos aos níveis de consumo energético demonstram que a tecnologia ainda não se encontrava estabilizada e as controvérsias, que neste momento começaram a insinuar-se, passaram a desempenhar um papel crescente dali para frente.

A mídia gaúcha, por sua vez, representada aqui pelo Zero Hora, veiculava diversas matérias indicando as vantagens daquele invento e o interesse e a curiosidade que despertava entre os seus visitantes. Deste modo, destacava a “grande rapidez, baixo custo de implantação, pouco ruído e quase total ausência de poluição” (TREM, 1979a, p. 25).

Os testes, desenvolvidos ao longo de 1979, segundo os atores então apoiadores do Aeromóvel, teriam apontado: “resultados superiores às expectativas” (TREM, 1979b, p. 22), “muito positivos e encorajadores” (FRANCISCONI, 2006, p. 91), “indicando a viabilidade técnica e econômica da utilização da tecnologia em sistemas de transporte urbano” (AEROMÓVEL BRASIL, 2012).

Na mesma época, anunciava-se a implantação de uma Linha Piloto no centro de Porto Alegre, com o objetivo de analisar a eficiência da tecnologia em escala real. O trajeto contou novamente com o financiamento da EBTU e começou a ser construído em 1982, conforme Figura 3 (COMISSÃO, 1979; IMPLANTAÇÃO, 1979). Localizado no Centro Administrativo do estado do Rio Grande do Sul, possuía cerca de 600 metros de extensão e uma estação.

Figura 3 — Linha Piloto começa a ser construída
Fonte: AEROMÓVEL BRASIL, 2011.

Ora, uma das principais vantagens associadas ao Aeromóvel nesse período era a utilização de eletricidade como fonte energética, diferentemente de outros meios de transporte da época, que usavam derivados de petróleo — como os automóveis e os ônibus. Por exemplo, uma matéria jornalística do dia 27 de janeiro de 1982 do Zero Hora caracterizava o Aeromóvel como um “revolucionário sistema de transporte urbano inteiramente independente dos derivados de petróleo” (AEROMÓVEL, 1982, p. 21). Essas interpretações sobre as vantagens do Aeromóvel estavam relacionadas à busca por novas fontes de energia em um contexto de crise do petróleo, caracterizada pelo rápido aumento do preço do combustível no mercado mundial. Nesse sentido, assim afirmou Francisconi, então presidente da EBTU: “a proposta que vinha do Coester era uma proposta inserida no contexto da crise energética” (Entrevista com Jorge Francisconi).

Além dessa vantagem da tecnologia, o intenso apoio que o projeto recebeu no período aqui analisado nos indica que Oskar Coester operou como um construtor de fatos, nos termos de Latour (2000). Efetivamente, se mostrou hábil para convencer outros atores a participar da construção de seu artefato, mantendo uma rede de relações bastante extensa e dispondo, por conseguinte, de um conjunto de recursos financeiros e materiais. Essa rede se manteve relativamente estável até 1982, ano em que ocorreram modificações nos quadros do Ministério dos Transportes, como veremos a seguir.

Acirram-se as controvérsias em torno do Aeromóvel (1982-1985)

No mesmo ano em que começou a construção da Linha Piloto do Aeromóvel, Cloraldino Soares Severo assumiu como novo Ministro dos Transportes. A partir deste momento, os debates se intensificaram. Por um lado, tínhamos a mídia gaúcha e a própria empresa Coester que destacavam o sucesso dos testes até então realizados; por outro, especialistas questionavam a eficiência da tecnologia. As incertezas a respeito da viabilidade técnica e econômica do Aeromóvel eram compartilhadas pelo Ministro. Para ele, novos estudos deveriam ser realizados antes da finalização do trecho experimental — o qual, segundo o plano original, teria um quilômetro de extensão e duas estações; em contrapartida, para a mídia e os engenheiros e técnicos que trabalhavam na Coester, o trecho deveria ser finalizado para que os testes fossem realizados de maneira satisfatória (Entrevista com Cloraldino Severo; COESTER, 1984b).

Este impasse relembra as máximas de Jano bifronte, apresentadas por Latour (2000), a propósito da eficiência de uma tecnologia. Em um diálogo imaginário entre uma ciência pronta e outra, em construção, o autor chama a atenção de que no processo de construção de teorias e artefatos, a verdade ou a eficiência não são coisas dadas, definidas previamente. Há que se decidir o que é verdade e o que é eficiência. E é isso que parece estar em jogo nesta disputa: de um lado, os defensores do Aeromóvel sustentam que ele não pode ser provado eficiente antes de funcionar e que para tanto é preciso que novos trechos sejam implantados imediatamente; de outro, os seus críticos buscam os conselhos da “ciência pronta”, que propõe escolher o artefato mais eficiente, mas, para tanto, cada grupo tem que testá-lo para ver até que ponto ele corresponde a seus interesses.

A posição do Ministério dos Transportes, favorável à realização de novos estudos técnicos, prevaleceu e, em 1983, foi assinado um novo contrato para avaliação da tecnologia entre a EBTU, a Fundação Universidade-Empresa de Tecnologia e Ciências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FUNDATEC/UFRGS) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) (AEROMÓVEL, 1983; EMPRESA BRASILEIRA DE TRENS URBANOS, 1985). Ao final do período de estudos, o Ministério se comprometeu a definir se o Aeromóvel seria homologado como sistema de transporte de massa (AEROMÓVEL, 1983).

Essa decisão, no entanto, causou polêmica na cidade, levando à realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, com o objetivo de “expor sobre tão importante tema ligado ao transporte urbano” (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL, 1984, p. 1). Na sessão, que contou com a presença de políticos, empresários e engenheiros, Cloraldino Severo foi arguido a respeito da conclusão dos estudos de avaliação técnica e econômica do Aeromóvel e da implantação de novos trechos em Porto Alegre. O Ministro, por sua vez, apontou inúmeros aspectos do Aeromóvel — como a utilização de via elevada, a segurança do veículo e os custos econômicos — que deveriam ser mais bem estudados e argumentou que só tomaria uma decisão após inteirar-se da excelência dos resultados obtidos nos testes (Entrevista com Cloraldino Severo).

As colocações de Cloraldino Severo na Assembleia Legislativa foram criticadas pela empresa Coester, pois teriam sido baseadas em um parecer do IPT sobre um anteprojeto elaborado em 1980/1981 pela Empresa Brasileira de Planejamento de Transporte (GEIPOT), o qual não teve continuidade devido às novas orientações do Ministério nos anos subsequentes — como o aumento de 100 para 300 passageiros na capacidade de transporte do veículo. Por este motivo, a Coester afirmou que “as análises do relatório são decalcadas, em cima de informações técnicas a nível de anteprojeto, e tornam-se inteiramente obsoletas face ao desenvolvimento do sistema nos anos seguintes” (COESTER, 1984a).

O que a Coester parecia especialmente criticar era o caráter teórico das avaliações realizadas até então e que sustentavam o discurso do Ministro dos Transportes. Esses estudos diriam pouco sobre o funcionamento real da tecnologia, pois seriam prejudicados por uma análise conservadora, por preconceitos e “ranços acadêmicos”, uma vez que teorizariam e calculariam “em cima de coisas prontas”, ou seja, utilizando conceitos tradicionais da área da engenharia (COESTER, 1984a; Entrevista com engenheiro da empresa Aeromóvel Brasil). Por outro lado, a empresa mencionava positivamente os resultados práticos, alcançados com “muito empirismo, testes, ensaios e medições”. Por exemplo, um dos pontos considerados inviáveis pelo Ministro era o sistema de sensoriamento do Aeromóvel, o qual, segundo a Coester, estaria em “teste de operação há um ano com excelentes resultados. Mais de 25.000 ciclos de operação foram atingidos. A observação de que o sistema não oferece segurança não se verifica na prática” (COESTER, 1984a).

Estas distintas interpretações a respeito da importância dos testes empíricos ou das avaliações teóricas do Aeromóvel nos remete à definição de algo como semelhante ou diferente, conforme Collins e Pinch, citando Wittgenstein: “definir se duas coisas são semelhantes ou diferentes, segundo Wittgenstein, sempre envolve um julgamento humano. [...] As coisas parecem semelhantes ou diferentes, dependendo do contexto em que são usadas” (COLLINS; PINCH, 2010, p. 54). Nesse sentido, podemos afirmar que, segundo a interpretação da Coester, somente os resultados práticos de avaliação do Aeromóvel seriam semelhantes ao seu uso real e, por isso, bons indicadores de seu funcionamento. Por outro lado, o Ministro se apoiava fundamentalmente nos estudos de viabilidade técnica e econômica para criticar o Aeromóvel, afirmando que estes seriam mais fidedignos para avaliá-lo.

A discordância entre a empresa Coester e o Ministério dos Transportes não se resolveu após a apresentação dos resultados da avaliação realizada pela EBTU, pela FUNDATEC e pelo IPT, em março de 1985. O parecer do conselho técnico caracterizou o Aeromóvel como um sistema de transporte em estágio de desenvolvimento. Deste modo, salientou a necessidade de aprimoramento de diversos de seus componentes (como o sistema de freios, o sistema elétrico, a estrutura da via e a dinâmica do veículo) e a resolução de questões relativas à sua viabilidade social e econômica (como o impacto ambiental, a capacidade de transporte e o rendimento energético). Recomendou, assim, mais uma vez, a complementação dos estudos até então efetuados (EMPRESA BRASILEIRA DE TRENS URBANOS, 1985).

A Coester, por seu turno, respondeu o parecer final destacando novamente a condição inacabada da Linha Piloto, que possuía cerca de 500 metros de extensão e não contava com a instalação de equipamentos considerados essenciais para o desenvolvimento dos testes. Nesse sentido, a empresa recomendou a conclusão do trecho para verificar adequadamente a tecnologia (COESTER, 1985).

Essas controvérsias em torno do Aeromóvel se fundamentavam sobre uma interpretação divergente do seu significado pelos diversos atores sociais — como vimos, esse fenômeno é denominado por Pinch e Bijker (1987) como flexibilidade interpretativa. Se, para a Coester e a mídia, ele representaria um potencial meio de transporte de alta capacidade, para o Ministério dos Transportes — apoiado sobre os estudos então efetuados — o Aeromóvel se constituiria essencialmente como um meio de baixa capacidade e com inúmeras incertezas que ainda precisavam ser respondidas. A ampliação de sua capacidade dependeria do aumento do tamanho do tubo por onde circula o fluxo de ar que o impulsiona, característica técnica que dificultaria ou até mesmo impediria o transporte de grande número de passageiros, como explicou o então engenheiro da EBTU:

Com um tubo deste tamanho, você transporta 20 passageiros. Agora se você quer transportar como em um metrô, 1.200 passageiros, que tamanho terá este tubo? No Aeromóvel o tubo é único. O anteparo é único. Você não pode assoprar entre veículos. Você só pode assoprar no túnel. E o anteparo tem que aguentar, tem que ser capaz de carregar aquilo que está levando em cima (entrevista com engenheiro da EBTU).

A indefinição sobre a capacidade de transporte do Aeromóvel era uma questão especialmente problemática no período aqui analisado. Com efeito, no início da década de 1980, segundo os nossos entrevistados, os recursos financeiros do Ministério dos Transportes para o investimento em tecnologias de transporte eram escassos, ao mesmo tempo em que havia a necessidade de ofertar sistemas coletivos, portanto, de alta capacidade. Nas palavras do referido engenheiro:

A gente tinha um enorme déficit de oferta de transporte urbano e não tinha dinheiro suficiente para atender aquilo. Então, qualquer investimento em outra coisa que não fosse propiciar transporte coletivo era difícil de conseguir. Era muito fácil alguém dizer assim: “eu não posso, porque não temos dinheiro para isso”. Uma pessoa que dissesse isso era uma pessoa sensata (entrevista com engenheiro da EBTU).

Além das controvérsias a respeito da capacidade de transporte do Aeromóvel, outros de seus componentes eram interpretados de maneira diferente pelos atores sociais. Por exemplo, a leveza do veículo, considerada um ponto vantajoso pelos apoiadores, pois faria com que se utilizasse menos energia para propulsioná-lo, era vista como problemática pelos críticos, uma vez que sua estrutura não conseguiria minimizar o impacto sobre os passageiros no caso de um acidente.

Assim sendo, vemos que, apesar da extensa rede de apoiadores que Coester conseguiu até então arregimentar para o seu projeto, um ator importante não foi convencido: o Ministério dos Transportes — representado aqui na figura de seu então Ministro, Cloraldino Soares Severo. A ele posteriormente se somariam outros atores que igualmente se contrapunham à implantação da tecnologia em Porto Alegre.

Mais controvérsias e um fechamento parcial (1986-1993)

Ao longo de 1985 — ano em que, como vimos, foram concluídos os estudos técnicos e econômicos do Aeromóvel solicitados pelo Ministério dos Transportes — novos planos para a implantação da tecnologia em Porto Alegre foram anunciados. A este respeito, uma matéria do Zero Hora divulgava a extensão do trecho localizado no Centro Administrativo do estado até o centro histórico da Capital, com recursos a serem adquiridos pelo governo estadual com o Banco Mundial (ATÉ, 1985).

A informação sobre a ampliação do trecho do Aeromóvel pelo centro da cidade não foi bem recebida pela Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), tendo em vista o impacto que “uma estrutura do porte da que sustenta o deslocamento do veículo ocasionará sobre as caixas de muros organizadas por ruas do centro e a competição de formas que tal estrutura haveria de impor aos bens culturais urbanos já consagrados”. A expansão do trecho, portanto, prejudicaria a arquitetura histórica “de alguns dos espaços urbanos mais nobres e tradicionais da cidade” (AEROMÓVEL, 1985, p. 39).

Ainda em 1985, ocorreram novas substituições no Ministério dos Transportes e na EBTU. Esta última se comprometeu a complementar os estudos de viabilidade realizados durante a gestão anterior, com o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia (EBTU, 1985). No mesmo ano, foi divulgada pela segunda vez a extensão da via experimental do Aeromóvel com investimentos da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP).

A possibilidade de extensão da via gerou, novamente, debates acalorados. Desta vez, além da SPHAN, posicionaram-se contrários o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/RS) e o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPHAC). Segundo matéria do Zero Hora, o COMPHAC desaconselhava “a construção de pesadas estruturas de concreto para dar suporte ao Aeromóvel em áreas onde se encontram antigos prédios históricos da capital gaúcha” (SAI, 1988, p. 34).

O trecho de um quilômetro do Aeromóvel, que serviria para a realização de testes, foi finalizado em 1987 (Figura 4). No entanto, a construção da segunda estação, tal como planejado inicialmente, foi negada pela Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV), pois “induzia à continuidade do prolongamento da linha”, indesejada pelo órgão (AEROMÓVEL, 1989, p. 37).