Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 1, mar./jun., 2022
DOI: 10.36517/rcs.2022.1.d02
ISSN: 2318-4620

 

 

Discurso popular-democrático e o sujeito de negação bolsonarista:
extrema-direita no Brasil contemporâneo entre a Sociologia e a Psicanálise

 

Victor José Alves Fernandes OrcID
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
victorfernandes@ufmg.br

Daniel Spotorno Moreira Machado OrcID
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
daniel_spotorno@hotmail.com

 

Introdução

A recente ascensão ao poder de figuras como Recep Erdogan, na Turquia, Rodrigo Duterte, nas Filipinas, Donald Trump, nos Estados Unidos, Viktor Órban, na Hungria, Narendra Modi, na Índia, Iván Duque, na Colômbia e Jair Bolsonaro, no Brasil, entre outros, bem como o fortalecimento de movimentos em torno de partidos como o Britain National Party e Britain First, no Reino Unido, e o antigo Front National, na França, concorrem para corroborar interpretações de que estaríamos experimentando, nos últimos anos, um recrudescimento do conservadorismo — de matizes reacionários — no Brasil e no exterior. Com efeito, segundo algumas análises, a ampla e progressiva guinada à direita no espectro político pode ser caracterizada como uma emergência do “neofascismo”, inclusive no Brasil (cf., por exemplo, BOITO, 2020; NETO, 2020).

Para Alexander Reid Ross (2016), movimentos neofascistas, não obstante suas particularidades, podem ser caracterizados por atributos comuns a todos eles. Em uma palavra, o tipo ideal consiste no seguinte: movimentos neofascistas (1) são declaradamente anti-socialistas; (2) impulsionam-se pela propagação de um sentimento de crise e degradação nacional, localizando em minorias políticas as causas das misérias e de uma suposta degradação moral e material da nação — a pretexto da defesa de valores e relações sociais tradicionais, arrogam-se o direito do exercício da violência física e simbólica contra essas minorias, sob a égide de uma liderança carismática e metonímica desse “encadeamento de equivalências”, composto por uma pluralidade de sujeitos sociais, nos termos de Laclau e Mouffe (2001); em consequência, (3) promovem uma visão idílica do passado nacional, que deve ser resgatado; (4) promovem o revisionismo histórico; (5) guardam aversão aos processos e procedimentos democráticos; enfim, (6) em consonância com uma razão de governo neoliberal, defendem o Estado mínimo na regulação de mercados, e máximo na preservação de “liberdades individuais” e direitos de propriedade individual.

Ora, o movimento populista que se forma em torno da figura de Jair Bolsonaro ao longo dos últimos anos — designá-lo-emos, aqui, como bolsonarismo — mantém estreita aproximação com o tipo ideal proposto por Ross (2016). Sem incorrermos numa lista exaustiva de atos e enunciados provenientes do governo de Jair Bolsonaro, recorramos a alguns exemplos.

Sob a insígnia bolsonarista, encontramos o combate quixotesco ao socialismo nos mais diversos campos, de modo que até mesmo o pacote trilionário da gestão Trump para sustentar a economia dos EUA durante a crise sanitária de Covid-19 foi considerada por alguns como “uma guinada ao comunismo” (PUTTI, 2020). Já a construção e compartilhamento de um suposto quadro de uma nação brasileira deteriorada moralmente são incessantes em determinados circuitos midiáticos desde muito antes da eleição presidencial de 2018, combinando-se denúncias de corrupção institucional e cultural que deve ser extirpada (ALEGRETTI, 2019). Nessa esteira, o passado brasileiro é idealizado e colocado como objetivo a se alcançar no futuro — conforme o presidente Bolsonaro, “o objetivo é fazer o Brasil semelhante ao que era há 40, 50 anos” (GIELOW; FERNANDES, 2018). O revisionismo histórico manifesta-se sistematicamente pela denegação do período ditatorial brasileiro (OLIVEIRA, 2019). Processos e procedimentos democráticos são, na mesma toada, atacados sistematicamente, em ofensivas que atravessam a Universidade, a Imprensa, canais institucionais de participação social em políticas públicas, movimentos sociais e até mesmo a relação entre os três poderes, sobretudo o Supremo Tribunal Federal (CHADE, 2020). A administração neoliberal do Estado, bem como o avanço do neoliberalismo como discurso, episteme ou “governamentalidade” (FOUCAULT, 2008), aparece como carro-chefe do governo, sintetizados na figura do “superministro” da Economia, Paulo Guedes (FERNANDES; DE PAULA, 2020). Por fim, cabe destacar que, em articulação com os chamados “esquerdistas” ou “comunistas”, o grande mal a ser arrancado pela raiz a fim de fazer a Nação prosperar é construído, no bolsonarismo, através de um amálgama de indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, grupos LGBTQIA+, ambientalistas, imigrantes, feministas, praticantes de religiões afro-brasileiras e assim por diante — em uma palavra, as minorias políticas.1

Pois bem, não obstante tenhamos mobilizado, aqui, poucos exemplos, estes devem bastar para evidenciar as aproximações do governo Bolsonaro com o tipo ideal do neofascismo postulado por Ross (2016) — aproximações essas que, como já sinalizado, são cotejadas e corroboradas por outras avaliações (MARTINS; MAGNELLI, 2020; IBARRA; VELADOR, 2020; SALGADO; SANDRIN, 2021).

Esboçado, portanto, ainda que brevemente, tal cenário político e social, chama-nos a atenção o fato de, após quatro eleições presidenciais consecutivas vencidas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), de orientação relativamente progressista, uma parcela significativa de brasileiros ter apoiado não só o controverso impedimento da então presidenta Dilma Rousseff, como também, em sequência, a eleição de um político de extrema-direita como chefe de Estado.

Nesse sentido, este ensaio tem o objetivo de discutir os processos e condições através dos quais operam-se interpelações discursivas, deslocamentos e conformações identitárias que, em encadeamento, comumente, são alocadas sob o termo “bolsonarismo”. Para isso, recorremos, num primeiro momento, a Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, abordando a configuração do poder político como articulação da “hegemonia política”. Em seguida, na medida em que a construção da hegemonia política está além do que pode arvorar um “projeto de um mundo político liberal” (PRADO, 2001, p. 161) — isto é, além do individualismo e racionalismo moderno-ocidental — revisitamos a problemática do conflito como categoria fundacional da psicanálise. Com isso, avançamos a hipótese de que moções inconscientes são capazes de orientar a ação social racionalmente justificada. Nessa linha, argumentamos que o sujeito incapaz de, a um só tempo, relacionar-se com o mundo e com a si mesmo com espontaneidade, e aproveitar da experiência de si mesmo como devir, como incerteza, criatividade e constante produção de alteridades, pode ser um sujeito especialmente suscetível às interpelações discursivas que conformam o autoritarismo característico dos matizes políticos de extrema-direita, em geral, e que chamamos “bolsonarismo”, em particular. Encerramos o texto com a discussão da hipótese de que indivíduos mais suscetíveis às interpelações neofascistas são os que negam a transitoriedade e apegam-se a uma fantasia de fixidez identitária, subjetiva, bem como de posições no espaço social.

O (neo)fascismo como incorporação de interpelações populares-democráticas ao discurso político de extrema-direita

É bem sabido que Laclau e Mouffe inserem-se no campo marxista a partir da crítica do materialismo histórico que concede ao proletariado a posição de sujeito histórico universal. Sinteticamente, desde tal perspectiva teleológica do marxismo ortodoxo, os conflitos emergentes no espaço social são decorrentes das contradições das relações de produção e, portanto, subsumidos à luta de classes. Assim, disputas e antagonismos no âmbito da cultura, da filosofia política, em torno do sentido de “justiça”, “liberdade” e “igualdade” etc. são reduzidas a epifenômenos das relações econômicas e, portanto, à condição de “conteúdos ideológicos”, de modo que “todo conteúdo ideológico tem uma clara conotação de classe e qualquer controvérsia pode ser reduzida — através de um sistema mais ou menos complicado de mediações — a uma contradição entre classes” (LACLAU, 1977, p. 105).2 O que Laclau e Mouffe apontam, no entanto, é certa autonomia do político em relação à luta de classes, na medida em que se fazem observáveis antagonismos que relutam em ser categorizados como antagonismos entre classes, ou entre ideologias de classe:

Marx procura [...] pensar o fato primário da divisão social sobre as bases de um novo princípio: o confronto entre classes. Esse novo princípio, entretanto, é minado desde o início por uma insuficiência radical, emergente do fato de que a oposição de classes é incapaz de dividir a totalidade do corpo social em dois campos antagônicos, de reproduzir a si mesma automaticamente como linha de demarcação da esfera política. É por essa razão que a afirmação da luta de classes como princípio fundamental da divisão política sempre deve vir acompanhada por hipóteses suplementares que relegavam sua total aplicabilidade ao futuro: hipóteses histórico-sociológicas — a simplificação da estrutura social, que conduziria à coincidência entre lutas políticas reais e lutas entre classes como agentes constituídos no nível das relações de produção (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 152).

De modo geral, argumentam os autores, “através desse tipo de antagonismo” — isto é, do antagonismo irredutível ao antagonismo entre classes — “os setores dominados não se identificariam como classe, mas como ‘o outro’, aquele que se encontra contraposto ao bloco de poder dominante” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 107), ainda que, em última instância, tal antagonismo possa ser sobredeterminado pelo conflito de classes. É assim que “a noção do social é concebida como um espaço discursivo” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. X) e, nessa linha, a política é considerada não como algo da ordem da “superestrutura”, mas, antes, como “ontologia do social” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. XIV).3 Nessa perspectiva, “não se pode separar o processo de constituição de identidades sociais do processo de configuração do poder social” (GADEA, 2008, p. 13).

É nessa esteira que Laclau e Mouffe localizam a Revolução Francesa no epicentro do que denominaram “A Revolução Democrática”. A tese defendida pelos autores é a de que a luta contra a subordinação não é produto da condição ontológica do sujeito subordinado em si mesma, mas “de um tipo de ação cujo objetivo é a transformação de uma relação social que constrói o sujeito numa relação de subordinação” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 152-153).4 Assim, é através da disponibilidade do “discurso democrático” e da Declaração dos Direitos do Homem que torna-se possível a articulação entre diferentes lutas contra a subordinação e distintos tipos de desigualdades:

É para designar essa mutação que falamos [...] de “revolução democrática”. Com isso, nós designamos o fim de uma sociedade de tipo hierárquico e desigual, regida por uma lógica teológica-política na qual a ordem social tem sua fundação na vontade divina. O corpo social foi concebido como um todo no qual os indivíduos aparecem fixos em posições diferenciais. [...] Essa quebra com o Antigo Regime [...] proporcionaria as condições discursivas que tornaram possível a proposta de diferentes formas de desigualdade como ilegítimas e anti-naturais, e nesse sentido torná-las equivalentes a formas de opressão. Aqui jaz o profundo poder subversivo do discurso democrático, que permitiria o espraiamento da igualdade e liberdade para domínios cada vez mais amplos e, portanto, atuar como um agente fermentador em diferentes formas de luta contra a subordinação (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 155).

É nesse sentido em que relações de poder são atravessadas pela criação de identidades sociais, que, através do encadeamento entre diferenças tornadas equivalentes, podem vir a constituir a “hegemonia política”. Walter Gadea (2008), a partir de Laclau, discrimina o processo de constituição de identidades sociais em três etapas.

A primeira delas é determinada por um sistema relativamente fechado de diferenças, no qual as posições dos diferentes sujeitos sociais estão fixadas e os diferentes grupos se reconhecem como parte de uma ordem estável e aceita por todos. A segunda etapa é a do “deslocamento”, isto é, da incapacidade de sustentar de forma bem-sucedida as identidades e a ordem sociais, “na medida em que sempre existe um exterior constitutivo, um Outro que põe em perigo a conformação de tal identidade fixa ou estável” (GADEA, 2008, p. 14. Ênfase nossa). A terceira etapa, enfim, corresponde à “composição da cadeia de equivalências ante a um inimigo comum” (GADEA, 2008, p. 14.), ou seja, da definição de um campo de lutas entre um “nós” e um “eles”: 5

A linha divisória entre essas duas instâncias traça uma separação e forja uma identidade nova que é de natureza política. Esse terceiro momento é central para compreender a constituição do poder social, pois configura a etapa na qual a política se transforma no princípio de organização social. [...] O “inimigo” é o princípio que organiza elos distintos através dos significantes vazios [tal como uma bandeira, Deus, a “pátria”, a família], formando um “nós” igualitário frente a um inimigo externo. [...] Esse processo de configuração da identidade é idêntico ao processo de configuração do poder político e não é nem mais nem menos do que a articulação “hegemônica do poder” (GADEA, 2008, p. 14).

O Outro, causa do deslocamento e, consequentemente, da desafixação e instabilidade identitária, opera através de “interpelações discursivas”:

[...] a função básica de toda ideologia é interpelar/constituir indivíduos como sujeitos. [...] Indivíduos, que são simples portadores de estruturas, são transformados pela ideologia em sujeitos, quer dizer, eles vivem a relação com suas reais condições de existência como se eles mesmos fossem o princípio autônomo de determinação daquela relação. O mecanismo dessa inversão característica é a interpelação. [...] O que constitui o princípio unificador de um discurso ideológico é o “sujeito” interpelado e, portanto, constituído através desse discurso (LACLAU, 1977, p. 100-101. Ênfase no original).

Cabe notar que há diferentes tipos de interpelações possíveis, que podem coexistir e incorporar um corpus discursivo-ideológico em certa unidade. Interpelações políticas, religiosas, familiares, tecnocientíficas e assim por diante podem se articular num mesmo discurso ideológico sem guardar muita consistência lógica entre si, porque a unidade ideológica é dada pela “habilidade de cada elemento interpelativo de realizar o papel de condensação em relação aos outros” (LACLAU, 1977, p. 102). Como indica Ernesto Laclau, uma interpelação familiar pode remeter a uma interpelação religiosa, estética ou política, por exemplo, e cada uma dessas interpelações opera como metonímia, ou “representante” das outras, garantindo, dessa maneira, o discurso ideológico unificado.

Pois bem, é importante ressaltar que, com o advento da chamada “revolução democrática”, um discurso interpelador fundamental consiste no da “luta popular-democrática” (LACLAU, 1977, p. 107), endereçado ao sujeito como “o povo”, que deve entrar em uma relação antagônica em relação ao bloco dominante.6 Esse discurso não só não é integrante necessário a ideologias e discursos de classe específicos, como também se apresenta como apto à incorporação pelos mais diversos discursos políticos. Dessa forma, Laclau assevera que

[...] interpelações populares-democráticas não têm conotação de classe precisas e pode ser incorporado em discursos político bastante distintos, e isso é um fato para o qual o fascismo nos oferece provas eloquentes. Para a tese que desejamos apresentar, eis o seguinte: o fascismo, longe de ser a típica expressão ideológica dos setores mais conservadores e reacionários das classes dominantes, foi, ao contrário, uma das formas possíveis de articular as interpelações populares-democráticas em um discurso político (LACLAU, 1977, p. 111).

É nessa esteira que Laclau conclui que

O fascismo emerge a partir de uma crise dupla: (1) uma crise do bloco de poder que foi incapaz de absorver e neutralizar as contradições entre setores populares através dos canais tradicionais; (2) uma crise da classe trabalhadora, que foi incapaz de hegemonizar lutas populares e fundir a ideologia popular-democrática e seus objetivos revolucionários de classe numa prática política e ideológica coerente (LACLAU, 1977, p. 115).

Em outras palavras, interpelações populares-discursivas somente concretizam a expansão democrática — nos termos estipulados por Laclau (1977) — se articuladas a um discurso ético-político que sirva de esteio para práticas de igual liberdade entre sujeitos, sem excluir dessa relação o antagonismo, quer dizer, o conflito.

No entanto, o sentido assumido por interpelações não é dado a priori, variando em função das condições contingentes da enunciação — isto é, do sujeito interpelado. Desnecessário afirmar, nesse sentido, que o mecanismo da interpelação discursiva não opera de forma automática, convidando irresistivelmente o indivíduo a uma nova conformação como sujeito. Conforme pontua Alexandre Starnino,

Na visada proposta por Laclau, o significado depende em última instância do sujeito e de suas condições de enunciação. Ao endossar essa, digamos, determinação psicanalítica de impossibilidade de um “verdadeiro significado” e “remessas infindáveis de sentido” (ou ‘irredutibilidade do sentido’), afastando-se definitivamente de um positivismo lógico, Laclau engendra nas bases de sua Teoria do Discurso um dos fundamentos centrais da prática clínica; agora incorporados e aplicados na análise das diversas construções discursivas, sobretudo no que remete a um aprofundado estudo “da lógica e formação das identidades coletivas” (STARNINO, 2020, p. 436).

Cabe refletir, portanto, sobre as condições que favorecem a interpelação e integração “bem-sucedida”, por assim dizer, de discursos populares-democráticos e aqueles oriundos do espaço cultural a que podemos designar como extrema-direita, ou neofascista, a partir do sujeito interpelado. A fim de desenvolver essa reflexão, recorremos, na seção seguinte, ao papel da noção de conflito em Psicanálise, e argumentamos que a capacidade do sujeito de manejar ataques pulsionais se traduz em fator determinante para a rejeição ou, ao contrário, transformação identitária sob o signo das matrizes discursivas típicas do campo da direita radical.

Interpelação, identidade, devir e conflito

Uma premissa fundamental da psicanálise consiste na divisão do psíquico entre o que é consciente e inconsciente, de modo que o que se entende por inconsciente extrapola sua conotação meramente descritiva e adota um sentido de dinâmica do aparelho psíquico. Em “O Eu e o Isso” (2006 [1923]), Freud argumenta que o Eu seria aquela parte do Isso que passa por alterações provenientes do mundo externo; uma instância que procura impor ao Isso o crivo das estruturas normativas intrínsecas ao processo de aculturação. Em outras palavras, se o aparelho psíquico tem por função primordial o escoamento de excitações oriundas do Isso, regido pelo Princípio do Prazer, ele só pode fazê-lo a partir de representações submetidas ao Princípio de Realidade. Conforme elaboração de Fábio Belo, ausente o ato de divisão psíquica, a própria vida psíquica torna-se impossível:

O eu reúne as forças da pulsão sexual de vida, as forças que fazem síntese, que produzem sentido, que articulam o eu e o objeto através dos jogos da identificação. O isso são os restos das mensagens não traduzidas, a força do isso é a pulsão sexual de morte, a força que desconstrói os sentidos, que ataca as formações narcísicas, que é pura excitação sem nome e sem objeto (BELO, 2017, p. 3).

Ainda, decorrente da fase sexual infantil marcada pelo Complexo de Édipo, sugere Freud, o investimento libidinal sobre as figuras de seus cuidadores, das pessoas que cumprem a função de pais, deve, via de regra, passar por uma transformação. “A catexia objetal da mãe [...] deve ser abandonada”, diz Freud, e “o seu lugar pode ser preenchido por uma de duas coisas: uma identificação com a mãe ou uma intensificação de sua identificação com o pai” (FREUD, 2006 [1923], p. 47). Assim se forma, na teoria freudiana, a partir de infantis escolhas objetais do Isso, uma “enérgica formação contra essas escolhas” (FREUD, 2006 [1923], p. 47), denominada ideal do Eu, ou Supereu, consistente, inicialmente, e por sua vez, na combinação das identificações com as figuras paterna e materna e que se confrontaria com os conteúdos do Eu:

O ideal do eu, portanto, é o herdeiro do Complexo de Édipo, e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do Isso. Erigindo esse ideal do Eu, o Eu dominou o Complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao Isso. Enquanto que o Eu é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o Supereu coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do Isso. Os conflitos entre o Eu e o ideal [...] em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo interno e o mundo externo (FREUD, 2006 [1923], p. 51).

Ao longo do desenvolvimento da criança, as identificações primárias e herdeiras do Complexo de Édipo se articularão, por assim dizer, a outras figuras colocadas em posição de autoridade, de forma que suas injunções procedem ao exercício de censura moral sobre o Eu: “a tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do Eu é experimentada como sentimento de culpa” (FREUD, 2006 [1923], p. 51), e aquilo que Freud denominará, vagamente, como “sentimentos sociais” repousarão em cadeias de identificações com outrem. É dessa forma que, posteriormente, seria possível pensar uma certa sociogênese da personalidade, que serviria de horizonte para pensar a etiologia de determinados estados de sofrimento. A socialização e, portanto, a constituição do sujeito dependeria fundamentalmente de processos de identificação, isto é, da capacidade de atuação a partir de tipos ideais cuja função é prover uma espécie de “protocolo” orientador do desejo, de julgamentos e da ação. “Contudo”, pontua Vladimir Safatle (2017, p. 23), “essa internalização não deixa de ser profundamente conflitual”:

Internalizar um tipo ideal encarnado na figura de um outro significa conformar-se a partir de um outro que serve de referência para o desenvolvimento do Eu. Se quisermos ser mais exatos, diremos que se trata de alienar-se, já que significa ter sua essência fora de si, ter seu modo de desejar e de pensar moldado por um outro. [...] Isso nos explica por que os processos de socialização tendem a se impor através da repressão do corpo libidinal, da culpabilização de toda exigência de satisfação irrestrita, perpetuando, com isso, relações de agressividade profunda contra aquilo que serve de ideal (SAFATLE, 2017, p. 23. Ênfase no original).

O cenário que se nos apresenta, então, para lançar mão da proposta de Laclau e Mouffe (2001), é de um sujeito mutável, constituído ao longo de sua trajetória a partir de uma série de interpelações discursivas de naturezas distintas — familiares, religiosas, militares, escolares, étnico-raciais e assim por diante, dos mais variados matizes político-ideológicos — de modo que mostra-se impossível pensar em um processo de subjetivação inequívoco e necessário, na medida em que tal processo é fruto de organizações libidinais singulares, contingentes e inescapavelmente atravessadas pelo conflito: do sujeito consigo mesmo, com outros e o ambiente em que se encontra. Nessa linha, argumentamos que é exatamente a recusa por parte do sujeito de se haver com a alteridade radical — social, mas também subjetiva — e a adoção da postura que pretensiosamente busca aniquilar ou se livrar dessa “extimidade”, aquilo que lhe é a um só tempo o mais íntimo e o mais estranho (MILLER, 2010), que conduz àquilo que pode ser não só da ordem da psicopatologia, da neurose, mas, em última instância, ao lavramento do terreno onde poderão se assentar matrizes discursivas de extrema-direita. Elucidemos melhor esta ideia estabelecendo um contraste com o que propõe um tratamento analítico.

É possível dizer que os objetivos de um processo analítico estão relacionados com o fortalecimento do Eu contra os ataques pulsionais provenientes do Isso e da repreensão eventualmente excessiva do Supereu. Isso concederia ao sujeito, segundo Freud, maior autonomia e ampliação de sua capacidade de agir na vida, manejando com menos sofrimento constrições internas e externas que “rouba[m] do indivíduo, insistentemente, recursos importantes para estar no mundo e se relacionar consigo e com os outros” (FULGENCIO, 2018, p. 345). Por isso, o trabalho analítico não tem simples e exatamente por meta a eliminação de sintomas ou a adaptação do sujeito a uma ordem social estável e “hegemonicamente” aceita, mas, antes, a progressiva expansão da potência do sujeito de dar um destino percebido como mais ético às pressões internas em relação agonística com as pressões externas: em termos de Lacan (2005 [1975/1976]), trata-se do sujeito destituir o sintoma de seus predicados imaginários e simbólicos e criar um saber-fazer com seu sintoma; um movimento no sentido de “reconhecer e lidar com o modo de gozo central do sujeito” (COELHO, 2008, p. 366).7 Nesse sentido, ao evocarmos, aqui, as noções de “potência” e “ética”, aproximamos nossas reflexões àquelas elaboradas por Fábio Belo, que propõe o seguinte:

Potência é um indicativo do que pode ser feito na medida em que pode não ser feito. A ideia de potência com que trabalho (ela é apresentada por Agamben) tem a ver com a noção geral de contingência: algo que pode ou não acontecer. Pensemos num exemplo didático: um cavalo não pode tocar piano, isto é, ele não tem potência para fazê-lo. Já o pianista pode não tocar, caso assim queira. Poder não é o índice fundamental da potência. É também o marcador fundamental da liberdade e da ética: só podemos nos responsabilizar efetivamente por algo que poderíamos não fazer. O sujeito só pode ser ético quando transita entre o “não pode” da lei para o “poder não” da reflexão político-moral. Ao insistir que o inconsciente é composto por forças vindas do outro da situação antropológica fundamental, estamos propondo o humano como um projeto aberto e plural, sempre passível de revisões. O inconsciente é uma força que desconstrói as certezas egóicas. É preciso notar, no entanto, que esse efeito antifascista só se dá caso haja forças narcísicas suficientes para se recompor. Do contrário, o efeito disruptivo da pulsão sexual de morte, levado ao seu limite, decompõe toda e qualquer ligação narcísica, tornando-se desta forma o reverso fascista da certeza, ou seja, a destituição de todo e qualquer sentido. A constituição psíquica, o arranjo de forças do inconsciente e o do eu, a dinâmica da pulsão sexual de morte e de vida, podem não ser fascistas. E se “podem não” é porque também podem (BELO, 2017, p. 3).

É nessa linha que argumentamos que a capacidade de se sustentar conflitos, ou antagonismos — sobretudo os internos — é força substancialmente democrática, e, portanto, antifascista: trata-se, aqui, da capacidade de encarar e lidar consigo mesmo, com outros e com o ambiente, tomado aqui de forma mais geral, inclusive em termos sociais, assumindo seu caráter transitório, contingente, desafixável. Isto é, é na baliza dos conflitos entre as instâncias psíquicas — entre o Eu, sob os auspícios do Supereu, “conservador” e apegado a identidades fixas e à estabilidade, e o Isso, infantil e autoritário, em busca da satisfação pulsional livre de quaisquer parâmetros éticos — que o sujeito pode assumir-se como devir e vislumbrar, junto a outrem, mundos que ainda não existem (BELO, 2017, p. 5). Talvez nisso constitua uma das condições para o fracasso de interpelações populares-democráticas integradas a matrizes discursivas de extrema-direita ante o sujeito interpelado: a negação8 não é somente um expediente de defesa contra conteúdos psíquicos incompatíveis com a consciência — sobretudo moral — que concorreriam à desestabilização identitária, narcísica e imaginária, do sujeito, mas tem efeitos sobre o juízo em relação à realidade. Nas palavras de Freud (2019 [1925], p. 307), “o Eu-Prazer [Lust-Ich] originário quer, como desenvolvi em outro lugar, introduzir tudo que é bom e jogar fora [werfen] tudo que é mau. Em princípio, o que é mau, o que é alheio ao Eu e o que se encontra fora dele é-lhe idêntico”. Aqui, subscrevemos ao exame elaborado por Grada Kilomba, para quem a negação intransigente, por parte do sujeito, de seu próprio desejo produz, mantém e legitima politicamente “estruturas violentas de exclusão” (KILOMBA, 2019, p. 34). Referindo-se ao racismo, Kilomba assinala que

[...] o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se o oprimido, e o oprimido, o tirano. Esse fato é baseado em processos nos quais partes cindidas da psique são projetadas para fora, criando o chamado “Outro”, sempre como antagonista do “eu”. [...] O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo [...]. Tais aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetados para o exterior como meio de escapar dos mesmos (KILOMBA, 2019, p. 34-37).

Destaquemos que tal operação, cujo cerne reside na relação díade negação-projeção, não prescinde de justificação racional. Ainda tomando o racismo como exemplo, podemos citar a crítica alavancada por Frantz Fanon (2008), em Pele Negra, Máscaras Brancas, a Octave Mannoni9; e não por acaso autores como Alberto Quijano (2005) localizam o racismo como esteio das relações sociais modernas e coloniais, e Silvio de Almeida classifica o racismo como uma estrutura estruturante do espaço social, para lançar mão de um vocabulário bourdiano — nas palavras de Almeida (2019, p. 33), “a viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade”. Ora, a dinâmica analisada por Freud, Fanon e Kilomba, entre outros, sugerimos, é similar à do (neo)fascista no que diz respeito à relação consigo mesmo e com outros: diante da incapacidade de manejar o conflito, o antagonismo entre ataques pulsionais provenientes do Isso e o tecido narcísico, isto é, do Eu e do Supereu, o sujeito toma o lado dos últimos, projetando no exterior aquilo que, dentro de si, é sentido como repulsivo e que, por isso mesmo, pode e deve ser eliminado. Nega-se qualquer possiblidade de deslocamento identitário e busca-se, a altos custos, a fixação de identidades no espaço social, no mesmo diapasão de um imaginário ou uma fantasia de certeza e estabilidade atemporais, que favorecem a construção de uma disputada legitimidade do exercício de poder.

No que segue, dedicamo-nos, a partir da discussão elaborada até este ponto, a uma breve reflexão acerca da emergência do bolsonarismo no Brasil.

Comentários finais: democracia, populismo, poder e (des)razão

Desde a Constituição de 1988, o Brasil tem atravessado um irregular, mas constante, processo de ampliação e exercício de direitos sociais. A título de exemplo, no campo institucional, destacamos a criação e expansão do Sistema Único de Saúde, a expansão e popularização — ainda que insuficiente — da Universidade Pública, acompanhada da implementação de políticas afirmativas, que também foram adotadas por outras instituições do Estado, as políticas de redistribuição de renda, que hoje beiram o estatuto de políticas de Estado, entre outras. No campo trabalhista, políticas de pleno emprego e valorização do salário mínimo acima das taxas de inflação, ao longo de anos, transformou centrais sindicais e suas relações com o governo, que ensaiava, então, de forma geral, a aplicação de preceitos do Estado de Bem-Estar no País. No âmbito da sociedade civil, sobressaem os avanços das lutas alavancadas por minorias políticas no sentido da construção de relações orientadas pelos princípios de igualdade e liberdade, que fizeram surtir efeito nos campos jurídico-político: machismo, racismo, homofobia e intolerância religiosa, para restringirmo-nos somente a algumas práticas, são hoje questões prementes e combatidas nas mais diversas instâncias, dos conflitos ambientais à Ciência, do futebol às relações de trabalho, da Arte às relações cotidianas de sociabilidade. Em suma, ao longo da história brasileira, desigualdades sociais que eram tomadas pelo bloco de poder hegemônico como relações de subordinação foram configurando-se, progressivamente, como relações de opressão (LACLAU; MOUFFE, 2001). Em outras palavras, uma série de deslocamentos foram operados, e novas posições de sujeito conformadas e (re)articuladas, de modo que o fim da ditadura militar e a fundamentação de um Estado Democrático de Direito suscitaram interpelações populares-democráticas, articuladas a discursos próprios de minorias políticas e de matizes próprios da esquerda, com força reavivada. Nesse sentido, podemos falar de um processo social que concorre para a “extensão do exercício democrático e da produção de sujeitos populares que tornam-se gradativamente hegemônicos” (LACLAU, 1977, p. 108).

Trata-se de um processo de interpelação popular-democrática sistemática, integrada, grosso modo, a um discurso social-liberal (PT), mas também a discursos de sujeitos sociais mais ou menos radicalizados na esquerda que, por um lado, incide sobre o âmago do “autoritarismo brasileiro” — caracterizado recentemente por Lilia Schwarcz (2019), em uma palavra, como um composto, uma rede articulada de relações moduladas por matrizes discursivas escravagistas-racistas, mandonistas, patriarcais, que resultam num conjunto de práticas estruturadas e estruturantes de violência que se querem “naturais”.

Por outro lado, esse mesmo processo, de certa forma, guarda certas similitudes com a “dupla crise” que culminou na emergência do fascismo na Europa, no início do século passado, de acordo com a análise desenvolvida por Laclau (1977): em primeiro lugar, no Brasil, o bloco de poder hegemônico que se insurge a partir do encadeamento de equivalências do campo da esquerda e das minorias políticas, em integração com discursos populares-democráticos e a estrutura institucional do Estado Democrático de Direito, foi incapaz de “absorver e neutralizar” (LACLAU, 1977, p. 115) os antagonismos e deslocamentos impostos por diferentes discursos de sujeitos sociais opositores — elites político-econômicas de tonalidades conservadoras e reacionárias que, por exemplo, no Brasil, não se inibiram ante ao recurso ao lawfare contra adversários políticos e à divulgação sistemática e profissional de mentiras (fake news) de cunho moral em ambientes digitais. Segundo, a incapacidade da hegemonia política de sustentar a integração de discursos populares-democráticos — que, lembramos, não necessariamente têm conotação de classe — e discursos ideológicos de classe. Lembremo-nos aqui da análise de Rudá Ricci e Patrick Arley (2014, p. 48), segundo a qual o nacional-desenvolvimentismo e as políticas de transferência de renda dos governos petistas engendraram uma espécie de inclusão social pela via do consumo, “não pelos direitos ou pela ação política organizada”. Os autores avaliam que, como efeito, as classes ascendentes acabaram por adotar um imaginário conservador, típicos de camadas sociais médias, que, por sua vez, encaminharam-se ainda mais à direita do espectro político, em função do ressentimento frente ao “acesso das camadas populares aos serviços e bens que eram antes privativos aos mais abastados” (RICCI; ARLEY, 2014, p. 54). Nesse contexto, discursos “tradicionais” de diversas instituições (família, religião, trabalho, entre outras) e conformadores de papeis e lugares de sujeitos sociais no espaço social (da mulher, do sujeito racializado, da diversidade de gênero, sexual e religiosa, do trabalhador etc.) rearticulam-se gradativamente numa nova cadeia de equivalências frente a um inimigo comum: o “esquerdista”, significante que permite a referência àquilo que interpela, que põe em perigo identidades e relações até então percebidas como relativamente bem fixadas e estáveis. Ao mesmo tempo, o significante “esquerdista” passa a condensar tudo aquilo que classificamos como sendo da ordem do “êxtimo” (MILLER, 2010), a um só tempo o mais íntimo e o mais estranho, o mais familiar e mais abjeto; conflito que, negado subjetivamente, é projetado para o exterior, onde deve ser eliminado (FREUD, 2019 [1925]; KILOMBA, 2019). Como vimos por meio do exemplo de relações atravessadas pelo racismo (QUIJANO, 2005; FANON, 2008; ALMEIDA, 2019; KILOMBA, 2019), a operação basilar “negação-projeção” não se sustenta senão através de discursos racionalmente justificados e mais ou menos sofisticados, produzindo (disputados) efeitos de verdade e poder.

De outro lado, reconhecemos que o bolsonarismo se articula contingencialmente em torno de outros significantes. “Socialismo”, “comunismo”, “marxismo cultural” e “petismo”, por exemplo, servem igualmente como o mencionado “esquerdismo” para operar um “corte antagônico”, isto é, estabelecer os limites de um sistema de significação por meio da exclusão. Lançamos mão, neste trabalho, do significante “esquerdismo” pelos seus efeitos heurísticos, permitindo-nos avançar a argumentação; pois o que está em jogo, de fato, é exatamente “um significante do puro anular de toda diferença” (LACLAU, 2011, p. 68) que instaura uma fronteira de exclusão, de modo que tudo que se encontra para além dessa fronteira é reduzido à “pura negatividade” e à condição de “ameaça pura daquilo que está para além do sistema” (LACLAU, 2011, p. 68). Para Laclau (2011, p. 69), essa “sistematicidade do sistema”, ou a “demonização”, “pura negatividade” do excluído, dependem de significantes vazios porque

[...] estamos tentando significar nos limites da significação — o Real, como dizemos no sentido lacaniano — e não há um modo de fazê-lo diretamente, exceto por meio da subversão do processo de significação. (LACLAU, 2011, p. 69).

Ora, se podemos considerar o Outro como “êxtimo” — na medida em que o inconsciente é o discurso do Outro (MILLER, 2010, p. 18) — é também verdade que a “extimidade” toca algo precisamente da ordem do Real (MILLER, 2010, p. 22-23), isto é, daquilo que resiste à simbolização. E essa extimidade, sintetizada no “esquerdismo”, vem a assumir uma série de significados que buscam dar forma a isso que, no próprio sujeito, pode ser percebido como perigoso, repugnante, degenerado e resistente à nomeação.

Segundo análise de Martin Maitino, por exemplo, o “discurso anti-esquerda” se apresenta como lente de “leitura bolsonarista da política como embate moral” (MAITINO, 2020, p. 14): o “esquerdismo” estaria associado à divisão da nação, outrora supostamente monolítica e harmônica (“negros contra brancos”, “pobres contra ricos”, “pais contra filhos”), à corrupção (institucional, mas também de valores, da organização “natural” das relações sociais), à desordem e à falta de disciplina (contrastadas com o período da ditadura militar), ao confronto à lei, à imoralidade generalizada. Deste modo, “sendo o PT e a esquerda diretamente associados à corrupção e à imoralidade”, diz Maitino,

não há um grande salto em associar o cidadão de bem à direita. A esquerda e o comunismo passam, então, a ser associadas a qualquer ação tida como imoral ou negativa. A desconfiança popular em relação à política, porém, é generalizada — trata-se, afinal, de um terreno de corrupção e mentira. Se a direita é o moral e a política é imoral, também partidos de direita podem ser chamados comunistas (MAITINO, 2020, p. 15. Ênfase nossa).

Para Daniel de Mendonça (2020, p. 12), a articulação discursiva do bolsonarismo como movimento populista pode ser dividida em três eixos — moral, econômico e judicial. De acordo com Mendonça, o eixo moral diz respeito à recuperação de “‘valores cristãos’ ameaçados por anos de governos de esquerda” através de “uma narrativa em defesa da família, da moral e dos bons costumes” (MENDONÇA, 2020, p. 12). Já o eixo econômico se assenta sobre o imaginário de que a ação estatal no sentido da promoção da igualdade de oportunidades não pode ser senão um tipo de política praticada pela “esquerda”. Ainda seguindo a linha das observações de Maitino (2020), e considerando que o “esquerdismo” se traduz em absoluta negatividade, imoralidade, corrupção, pois bem, a direita bolsonarista deve se posicionar como o inverso de tudo isso. Assim, no eixo econômico de Mendonça (2020), o bolsonarismo encontra-se em aproximação com o neoliberalismo não só como um conjunto de teorias econômicas que advogam por uma agenda de privatizações de empresas públicas e uma série de reformas no Estado, mas também como forma de governo da vida (FOUCAULT, 2008; FERNANDES; DE PAULA, 2020). O terceiro eixo proposto por Mendonça (2020, p. 13) é o judicial, tomado como fundamental para a “adesão dos ‘cidadãos de bem’ ao bolsonarismo”:

Apesar da importância dos eixos anteriores para a eleição de Bolsonaro e também para a sustentação de seu governo, o eixo judicial assumiu a condição hegemônica no discurso bolsonarista, simbolizada pelo ponto nodal “anticorrupção”. O bolsonarismo reivindicou para si uma espécie de “moral republicana” não apenas contra o lulismo, mas também contra o sistema político como um todo. [...] Nesse ponto, uma espécie de “messianismo legal” fez com que o eixo judicial se encontrasse com o moral. Assim, “sob os olhos de Deus” e também “sob uma justiça implacável”, que é, em princípio, cega para todos, Bolsonaro apareceu como a alternativa moralista num cenário político em crise (MENDONÇA, 2020, p. 13).

Notamos, desta maneira, não só alguns dos significados que vêm preencher o significante “esquerdismo”, como também outros significantes importantes que servem à articulação de diferenças tornadas equivalentes no campo discursivo bolsonarista. O nome de Sérgio Moro, seja como juiz, seja como ministro de governo, apresenta-se — ao menos até sua renúncia, em abril de 2020 — como significante da luta contra a corrupção (MENDONÇA, 2020, p. 13). Da mesma forma, lançando mão do esquema analítico elaborado por Mendonça (2020), o significante Paulo Guedes passa também a significar a ruptura com a “velha política”10 (Maitino, 2020) e a “novidade da eficiência de mercado” do “Estado mínimo” (ROCHA; SOLANO; MEDEIROS, 2021), condensando demandas neoliberais (racionalidade de livre mercado aplicada a toda vida social) e neoconservadoras (estabelecimento da “família tradicional”, patriarcal, como célula fundamental para a promoção de segurança econômica individual e em alternativa às políticas públicas) (SILVA, 2021, p. 12). Conforme assinala Mendonça (2020, p. 14), “trata-se de uma ampla articulação entre demandas organizadas a partir dos [...] eixos (moral, econômico e judicial)”, de forma que Bolsonaro aparecia como significante vazio capaz de escamotear diferenças entre grupos e alavancar a oposição contra a ameaça “esquerdista”.

Nesta esteira, argumenta Alexei Indurski (2020, p. 159), em mútua identificação, Bolsonaro e o “cidadão de bem” se apresentam como significantes vazios capazes de articular e tornar equivalentes diferentes demandas num espaço discursivo tal em que o ódio é “recodificado em ‘ódio do bem’”, na medida em que é calcado numa “retórica vitimista” (INDURSKI, 2020, p. 160) e direcionado à “pura negatividade exterior ao sistema” (LACLAU, 2011), ao “esquerdismo”:

O que Bolsonaro conseguiu construir com seu discurso foi a possibilidade de que o patético (Phonyness, diria Adorno) instaurasse um novo espaço de verdade, por mais absurdo que isso possa soar. Um espaço de verdade pervertido, um espaço de verdade que serve somente a uma parcela da população, um espaço que, sem dúvida, não é novo (a metáfora aqui é o tio ou tia falastrões que falam impropérios no almoço de domingo, mas que ninguém nunca deu bola ou conseguiu conversar), mas, apesar de tudo, um espaço que transformou nossa esfera pública. Atos homofóbicos, racistas e raivosos que outrora eram criticados e combatidos em nossa esfera pública passaram a ser sinônimos de espontaneidade, coragem e, sobretudo, sinceridade: todos aqueles predicados que faltam à classe política (INDURSKI, 2020, p. 159).

Nesse fio lógico, o significante “esquerdista”, esse inimigo comum, servirá para o processo de unificação de um “nós”, um bloco de poder, composto por uma miríade de sujeitos sociais distintos, cujos discursos, a princípio, são incoerentes entre si — conservadores, ultraliberais, monarquistas, militaristas, evangélicos neopentecostais, setores católicos e kardecistas e outros grupos que, em comum, guardam o apego às identidades fixas e estáveis, “tal como sempre foram” — o “cidadão de bem”.11 Conforme argumentamos, é exatamente esse o sujeito mais suscetível às interpelações populares integradas ao campo discursivo bolsonarista: o sujeito incapaz de sustentar o conflito entre as forças do inconsciente e do Eu, sempre em relação com o ambiente e a alteridade, e que encontra como expediente para se livrar da tensão psíquica a projeção daquilo que repudia sobre o exterior. E é desde o exterior que esse sujeito se sente ameaçado e atacado. Daí não só parece possível a defesa, em espaço público, do extermínio da alteridade, aqui representante do que é, para o sujeito, abjeto e em princípio inominável, como é nessa linha que os discursos de resgatar um passado imaginado, da autoridade que impõe a “Lei e a Ordem” — à revelia dos processos e procedimentos das instituições da democracia liberal — da “liberdade e justiça” da economia de livre mercado, conforme já antevisto por Laclau e Mouffe,12 integram-se a um discurso popular-democrático limitado e destituído de conotação de classe, e desse modo efetivamente conformam novos sujeitos, cujo efeito último é a manutenção (e agravamento) de desigualdades sociais. Nesse sentido, Bolsonaro, enrolado numa bandeira nacional e com um fuzil nas mãos, aparece como significante vazio para essas demandas encadeadas como equivalências (STARNINO, 2020). Conforme pontua Indurski (2020, p. 160) em relação ao episódio da facada em Juiz de Fora, ocasião da campanha de Bolsonaro à presidência, em 2018, “poucos casos conseguem oferecer tantos elementos para uma identificação narcísica: um certo Messias que nos braços do povo é atacado, chegando à beira da morte, para retornar como herói”.

É assim que, ao lado de especificidades de processos histórico-sociais e da emergência de novos arranjos sociotécnicos na contemporaneidade (MAITINO, 2020; MENDONÇA, 2020; ROCHA; SOLANO; MEDEIROS, 2021; SILVA, 2021), entre outros fatores que não cabem neste ensaio, sugerimos que o neofascismo (ROSS, 2016) bolsonarista deita raízes numa razão submissa ao inconsciente pulsional e nas afetações que dele decorrem. Aqui, cabe notar a bem conhecida asserção de Lacan, de que o inconsciente se estrutura como linguagem, na medida em que “é a palavra que instaura na realidade a mentira. E é precisamente porque introduz o que não é, que também pode introduzir o que é. Antes da palavra, nada é, nem não é” (LACAN, 1993 [1953/1954], p. 261). Em outros termos, o discurso vai além dos campos da fala e da escrita, apresentando-se como operador da pulsão e um “complexo de elementos no qual as relações assumem um papel constitutivo” (LACLAU, 2005, p. 92. Ênfase no original), isto é, trata-se de noção fundamental para a análise de relações de poder.

Neste ensaio, portanto, procuramos discutir processos e condições através dos quais interpelações discursivas populares-democráticas poderiam (1) integrar-se a discursos provenientes de setores da extrema-direita e (2) transformar e engendrar sujeitos a partir de condições psicossociais específicas. A hipótese que subjaz a este trabalho, a de que indivíduos mais suscetíveis às interpelações neofascistas são os que negam a transitoriedade, a natureza indefinida e instável da identidade, apegando-se a uma fantasia de fixidez subjetiva e do espaço social, no entanto, deve ser cotejada com investigações que partem de outras perspectivas teórico-metodológicas, além de demandar maiores esforços analíticos e corroboração empírica futuros para que possamos acatá-la ou, ao contrário, reajustar nossas lentes de investigação.

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  1. Um conjunto de ataques a minorias, proferidos por Bolsonaro, pode ser conferido em istoe.com.br. Acesso em 29/10/2020.↩︎

  2. Assumimos a responsabilidade pela tradução de textos em língua estrangeira.↩︎

  3. Cabe notar que a noção de discurso acionada por Laclau e Mouffe não se restringe a aspectos linguísticos ou verbais, mas diz respeito a relações entre elementos, de modo que “esses elementos não são preexistentes ao complexo de relação, mas se constituem através dele” (LACLAU, 2005, p. 92). Conforme assinala Marcelo Marques (2020, p. 17), o conceito de discurso designa “uma prática (ações e enunciados) que resulta de processos articulatórios voltados para a produção de uma determinada unidade de significação da realidade que, como tal, busca se sedimentar enquanto uma verdade última na organização das relações sociais”.↩︎

  4. Laclau e Mouffe definem como “relações de subordinação” aquelas relações nas quais o sujeito é submetido às decisões de outrem; “relações de opressão”, por sua vez, são entendidas como “relações de subordinação que se transformaram em campos de antagonismo” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 153-154). Enfim, “relações de dominação” são concebidas como “o conjunto de relações de subordinação que são consideradas como ilegítimas da perspectiva, ou do julgamento, de um agente social externo a elas” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 154).↩︎

  5. Se o conceito de discurso implica processos articulatórios entre elementos que não necessariamente guardam alguma coerência lógica entre si e produz uma unidade de significação, isso se deve ao fato de que “os fatores que levam diferentes elementos (particularidades discursivas) a se articularem não são aquilo que eles podem ter em comum, mas, ao contrário, são fatores externos aos elementos e que mantêm uma relação de negatividade comum a todos” (MARQUES, 2020, p. 17). Nesse sentido, processos que concorrem para a formação de identidades são sempre relacionais, atravessados pela construção de um “inimigo comum exterior” em oposição a um “nós”. O processo de articulação contingente entre diferenças tornadas equivalentes depende, portanto, desse “exterior constitutivo”, aquilo que “excede os limites internos das particularidades (elementos)” (MARQUES, 2020, p. 18).↩︎

  6. O entendimento de “democracia”, para Laclau, extrapola as dimensões das instituições liberais. Com efeito, o conceito de “democracia” diz respeito a “um conjunto de símbolos, valores etc. — em suma, interpelações — através das quais o ‘povo’ toma consciência de sua identidade por meio de seu bloco de poder. Essas interpelações são necessariamente conectadas às instituições nas quais a democracia é materializada, mas ambos os aspectos são indissolúveis. Não se pode conceber uma extensão de direitos democráticos sem a produção paralela de sujeitos capazes de exercê-los” (LACLAU, 1977, p. 107).↩︎

  7. O conceito de gozo (jouissance) é formulado ao longo da obra de Jacques Lacan a partir da ideia de pulsão de morte, formulada por Freud em 1920 em “Além do Princípio de Prazer” (FREUD, 2020). Sinteticamente, o conceito de “pulsão de morte”, por vezes também descrita como “pulsão de destruição”, vem representar a tendência psíquica do sujeito de proceder à “meta da vida”, ao “retorno ao inanimado” (FREUD, 2020 [1920], p. 137), à morte — e encontra satisfação tanto em objetos externos ao aparelho psíquico quanto no próprio sujeito. Nesse sentido, o gozo pode ser entendido como uma “satisfação no insatisfatório”, da pulsão de morte, e revela a importância do que é “produzido pelo sintoma sob forma de ganho primário” (DUNKER, 2002, p. 27). Diz Lacan (1992, p. 16): “certamente faz-se presente na experiência analítica, que é uma experiência de discurso, essa tendência de retorno ao inanimado. [...] Pois o caminho para a morte [...] nada mais é do que aquilo que se chama gozo”.↩︎

  8. Tratamos aqui da negação como operação psíquica exclusivamente em estrutura neurótica. Para uma discussão detalhada sobre especificidades da negação na psicose e na perversão, conferir, por exemplo, Fink (1998; 2018) e Julien (2004).↩︎

  9. Diz Fanon (2008, p. 90): “a inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado. [...] Quais são os casos excepcionais de que nos fala Mannoni? São, simplesmente, aqueles em que o ‘evoluído’ descobre-se, de repente, rejeitado por uma civilização que ele, no entanto, assimilou. De modo que a conclusão seria a seguinte: na medida em que o ‘melgaxe-tipo’ do autor assume a ‘conduta dependente’, tudo vai às mil maravilhas. Mas se ele esquece seu lugar, se por acaso mete na cabeça que quer igualar-se ao branco europeu, então o dito europeu se irrita e rejeita o audacioso — que, nesta ocasião, e neste contexto ‘excepcional’, paga com um complexo de inferioridade sua rejeição da dependência”.↩︎

  10. Lembremo-nos que Paulo Guedes, o “superministro”, também foi apelidado de “posto Ipiranga”, sugerindo sua capacidade de resolver quaisquer imbróglios econômicos, como afirma o próprio ministro Guedes, causados por “30 anos de aliança política de centro-esquerda” (MORTARI, 2019).↩︎

  11. Destacamos, no entanto, que o “sujeito bolsonarista” típico é ainda majoritariamente caracterizado pelo homem “branco, escolarizado e membro da elite econômica do país” (MAITINO, 2020, p. 15).↩︎

  12. Escrevendo na década de 1980, Laclau e Mouffe já identificavam a circulação acentuada de discursos neoliberais que buscavam restringir a concepção de liberdade à racionalidade de livre mercado: a liberdade passa a ser definida, por exemplo, no entendimento de Hayek, de forma negativa, isto é, como “‘condição dos homens na qual a coerção por outros é reduzida ao máximo na sociedade’” (HAYEK citado por LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 172). Consequentemente, “a liberdade política é ostensivamente excluída dessa definição” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 172).↩︎

Resumo:
Este ensaio tem o objetivo de discutir os processos através dos quais operam-se interpelações discursivas e conformações identitárias sintetizadas no termo “bolsonarismo”. Para isso, recorremos a Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, abordando a configuração do poder político como articulação da “hegemonia política”. Em seguida, revisitamos a problemática do conflito como categoria fundacional da psicanálise, avançando o argumento de que moções inconscientes são capazes de orientar a ação social racionalmente justificada. Enfim, argumentamos que o sujeito incapaz de relacionar-se com o mundo e com si mesmo no constante manejo e produção de alteridades é um sujeito suscetível às interpelações discursivas comuns ao autoritarismo dos matizes políticos de extrema-direita, em geral, e que chamamos “bolsonarismo”, em particular.

Palavras-chave:
bolsonarismo; extrema-direita; discurso; hegemonia; psicanálise.

 

Abstract:
This essay has the goal of debating processes through which discursive interpellations and identity conformations commonly known as “bolsonarism” are operated. In order to do so, firstly we resort to Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, approaching the establishment of political power as a successful articulation of “political hegemony”. Secondly, we revisit the problem of conflict as a foundational category in Psychoanalysis, fostering the argument that unconscious motions are capable of orienting rationally justified social action. Lastly, we argue that the subject who is unable to relate to the world as well as to oneself in the constant maneuvering and production of alterities is a subject susceptible to common discursive interpellations from far-right hues in general, and from the so-called “bolsonarism” in particular.

Keywords:
bolsonarism; far-right; discourse; hegemony; Psychoanalysis.

 

Recebido para publicação em 10/09/2021
Aceito em 01/02/2022