Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 1, mar./jun. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.1.a04

 

 

Indignação e rotinização:
sobre sofrimentos e estratégias para lidar com a violência policial em uma favela pacificada

 

Luana Dias Motta OrcID
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
luanadmotta@yahoo.com.br

 

Introdução1

No fim do ano de 2008, o Governo do Estado do Rio de Janeiro iniciou a política de segurança pública das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), na tentativa de ocupar permanentemente territórios de favelas dominados e controlados por grupos de traficantes.2 A chamada política de pacificação foi apresentada e justificada como um deslocamento na maneira de conceber e implementar políticas de segurança pública para favelas. Entretanto, no cotidiano, ela não eliminou os episódios de violência e arbitrariedade policial. Tomando como pano de fundo o contexto de pacificação e os deslocamentos discursivos por ele produzidos, este texto propõe uma reflexão acerca das experiências de moradores da favela Cidade de Deus (CDD) frente às práticas de violência e arbitrariedade policial de agentes de segurança pública. O argumento central é de que a indignação e a rotinização da violência policial,3 além de coexistirem, são incorporadas ao cotidiano daqueles que estão expostos constantemente a essas situações, seja nas estratégias para lidar com o sofrimento e a humilhação – em uma espécie de gestão do medo e da dor – ou no repertório de ações práticas para proteger seus corpos dos riscos permanentes.

A ancoragem empírica para tal reflexão encontra-se em pesquisa etnográfica realizada em função do meu doutorado, entre 2014 e 2016, na favela Cidade de Deus, onde morei por quatro meses.4 Passado o estranhamento inicial, comecei, pouco a pouco, a participar da vida ordinária e cotidiana de um grupo de vizinhos, sendo incorporada a ela, sobretudo pelas mulheres: aniversários, cultos em igrejas, ajuda em afazeres domésticos, refeições compartilhadas e churrascos nos finais de semana, ajuda para cuidar das crianças, saídas para comer algo diferente, compras em mercado, passeio à feira de domingo, ajudas na lição de casa, fogueiras nas noites mais frias de maio e junho. Além disso, histórias de vida eram compartilhadas: desabafos sobre problemas domésticos com filhos e maridos; conversas com as mulheres mais novas e solteiras sobre namoros, flertes e casos; problemas no trabalho; dificuldades financeiras; insatisfações com a polícia; dores, medos e preocupações nas épocas “mais difíceis” com a polícia. Parte do meu cotidiano também foi marcada pelas inúmeras vezes em que fui questionada e precisei explicar, sem convencê-los, o que eu fazia na CDD, sozinha e longe da família.

Se, por um lado, com o decorrer do tempo, as relações na CDD se intensificavam, a convivência era mais fluida e eu era incorporada à rotina, por outro lado, era também o passar do tempo que deixava evidente minha condição de moradora temporária, com data para ir embora. Quanto mais tempo residia na CDD, mais ficava claro que a minha condição ali era bem diferente, não só pela origem e pela história, mas pela possibilidade de ir embora, de esperar o dia seguinte (na casa de amigos) para voltar quando as coisas estavam tensas. Sem dúvida, esse sentimento também se intensificou porque, ao longo do período em que residi na CDD, de março a julho de 2014, os confrontos com troca de tiros entre policiais e traficantes, que eram mais raros no início da pesquisa, aumentavam progressivamente e, por isso, aumentaram as ocasiões em que eu esperava um ou dois dias para retornar ao local. Havia uma desigualdade de condições não só nas possibilidades para lidar ou ter que lidar com os problemas e as contingências, mas também na forma de encarar, perceber e sentir aquela realidade, uma vez que o que me causava medo ou me deixava insegura era algo rotinizado, incorporado pelos moradores, não por opção, mas porque era preciso viver, seguir em frente. A morte do garoto Lucas, em decorrência de uma troca de tiros entre traficantes e policiais, caso que apresento adiante, potencializou esse sentimento e essa reflexão.

Esse desconforto me chamou a atenção para o fato de que havia um abismo que era ilustrado, também, pela diferença entre os modos como eu e meus vizinhos víamos e lidávamos com os episódios de violência, especialmente a policial. Passei a me perguntar: como era possível rotinizar a violência sofrida e o risco permanente de sofrê-la? Como a incerteza passava a se constituir como a rotina e não seu oposto? Que mecanismos emocionais e práticos os moradores de favela forjavam para lidar com essa realidade? Como forjavam esses mecanismos? Passei a empreender uma reflexão sobre essa rotinização da violência que não se reduzisse às explicações da violência e do abuso policial como imposição, embora a dimensão objetiva de estar na favela não pudesse ser desconsiderada. Busquei, então, descrever os modos como os moradores tecem essas estratégias para lidar com essas práticas abusivas, mas também para criticá-las e evitar seus efeitos.

Nesse esforço, retomei, de um lado, os registros do caderno de campo sobre episódios de violência policial, narrados ou que presenciei e, de outro, minhas leituras e reflexões acerca do sofrimento social, juntamente a um debate sobre violência e a política de pacificação no Rio de Janeiro. A articulação entre esses três elementos constitui o argumento que desenvolvo neste texto.

Para iniciar essa reflexão, primeiro apresentarei o contexto e a constituição da política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) e descreverei como, no plano discursivo e de sua apresentação, ela tem extrapolado as fronteiras da segurança e se constituído no que tenho denominado contexto da pacificação ou política de pacificação. Em seguida, lançarei luz sobre dois casos relacionados a ações de violência e arbitrariedade policial: o de Dona Clara, seu filho e seu marido, que sofreram agressões de policiais da UPP; e o caso do menino Lucas, de doze anos, baleado e morto durante confronto entre policiais e traficantes.

Partindo desses dois casos, discutirei a articulação entre violência e sofrimento, mobilizando a noção de sofrimento social e abordando sua relação com a construção da legitimidade da política de pacificação. Assim, coloco em relevo o fato de que o esforço para tornar a pacificação uma política inovadora exige e tem como efeito tratar os episódios de violência (e, consequentemente, o sofrimento a eles relacionado) como exceções e não como responsabilidade das polícias (“morreu com bala de arma de traficante”), como algo justo (“aquele que morreu era bandido”) e, no limite, como efeito colateral da ação violência.

Em seguida, descrevo como, diante das ações de violência decorrentes de uma política cujo principal discurso é “levar a paz às favelas”, os moradores constroem estratégias que combinam resiliência e indignação, estratégias que tornam possível viver, conviver e suportar a exposição constante ao risco e a imprevisibilidade de uma violência que pode ser letal.

Da cidade em guerra à pacificação como contexto

Em meados da década de 1970, num contexto no qual se buscava compreender as causas do aumento da violência e da criminalidade, se instaura um debate nas Ciências Sociais acerca do tema da segurança pública. Ao longo da década de 1980, esse debate ganha centralidade na agenda política de movimentos sociais e governos, bem como na sociedade em geral, tendo em vista um cenário de aumento de crimes violentos e expansão do tráfico de drogas.

Assim como em diversos campos (direitos das crianças e adolescentes, direitos das mulheres, direito à cidade etc.), o processo de redemocratização, que culminou na Constituição de 1988, significou muitas mudanças também na área das políticas de segurança pública. Entretanto, mesmo após a nova Constituição, enquanto o problema da violência nas metrópoles persistia, a estrutura do sistema de segurança pública se mantinha inalterada. Diante desse quadro, as discussões referiam-se, sobretudo, às fragilidades e incompletudes do processo de redemocratização, que, apesar de ter promovido uma reforma na concepção ideológica e doutrinária, não implicou em mudanças na estrutura do sistema de segurança pública, que manteve práticas e posturas tributárias ao regime militar (KANT DE LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000).

A partir da década de 1990, frente ao medo e à insegurança gerados pelo aumento dos crimes violentos (arrastões, balas perdidas, sequestros etc.), bem como pela consolidação da ideia de que o Rio de Janeiro passava por uma crise da segurança (KANT DE LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000), começa a ser construída a imagem da cidade em guerra, sendo a favela a ameaça e o inimigo a ser combatido. Seguindo essa mesma lógica, as políticas do campo da segurança pública passam a se pautar, de fato, na metáfora da guerra, reforçando a ideia de guerra ao crime (LEITE, 2012).

A associação da favela à marginalidade, violência e degradação moral existe desde seu surgimento no início do século XX (VALADARES, 2005; GONÇALVES, 2013), entretanto, verifica-se que esse processo tem se acentuado nas últimas três décadas. É importante destacar que, especialmente no Rio de Janeiro, onde as favelas são vistas como o lugar da violência (BIRMAN, 2008; MACHADO DA SILVA, 2008). Com efeito, a violência urbana, tomada como gramática (MACHADO DA SILVA, 2010; 2011) – que constitui o que supostamente descreve –, altera profundamente o lugar das favelas no imaginário da cidade; “o medo se reifica e se espacializa nos perigos imputados aos territórios de pobreza” (MACHADO DA SILVA, 2008, p. 14).

É nesse contexto – em que a segurança se coloca como tema central do debate público, operando com o pressuposto de que a violência está associada aos territórios de pobreza das cidades – que o governo do estado do Rio de Janeiro instala, em dezembro de 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Pautado na ideia de polícia de proximidade, o projeto das UPP, ao tomar a paz como noção central de sua retórica, apresenta-se como uma inflexão na ideia de guerra ao crime, estratégia que, como mencionado, orientou os discursos públicos ao longo das últimas décadas.

De acordo com dados oficiais, as UPP são pequenas forças da Polícia Militar instaladas em comunidades para atuação exclusiva junto a elas. As áreas onde as UPPs se instalavam ou poderiam se instalar são, segundo critérios da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro, “comunidades pobres, com baixa institucionalidade e alto grau de informalidade, em que a instalação oportunista de grupos criminosos ostensivamente armados afronta o Estado Democrático de Direito” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2013). Segundo a retórica institucional, o objetivo das UPPs era consolidar o controle estatal nessas áreas, garantindo a paz e a ordem para as comunidades e a cidade como um todo (UPP-RJ, 2013).

A implantação das UPPs com a proposta de ocupação permanente buscava superar a ineficácia das intervenções pontuais. Se, antes, o padrão das ações policiais em favelas priorizava o combate a confrontos de facções de traficantes, com a retirada das forças do Estado após o controle dessas situações, as UPPs previam uma ocupação permanente para a retomada do território pelo Estado, sem prazo para sair, visando, prioritariamente, a combater o armamento de traficantes (não a erradicar o tráfico de drogas). Nesse sentido, é emblemática a declaração do secretário de segurança pública do Rio de Janeiro ao jornal The Guardian, em 2010: “Não podemos garantir o fim do tráfico de drogas, nem temos essa pretensão [...]. O que queremos quebrar é o paradigma do território controlado por traficantes com armas de guerra” (BELTRAME apud RODRIGUES; SIQUEIRA, 2013).

Apesar de o Decreto n°42.787, de 06/01/2011, que dispõe sobre a implantação, estrutura, atuação e funcionamento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no estado do Rio de Janeiro, não estabelecer, prever ou especificar ações e estratégias destinadas ao desenvolvimento social local, ao longo dos meses em que residi no Rio de Janeiro para realizar a pesquisa, pude observar que os discursos sobre a pacificação revelavam que essa política não era apenas e exclusivamente uma política de segurança pública, apesar de esse ser o seu centro. De fato, a pacificação produziu uma conjuntura específica, que impactava o cotidiano dos moradores do local, especialmente em função da presença permanente de grande número de policiais dentro da favela.

Não obstante o processo de pacificação significar um deslocamento discursivo da ideia de guerra ao crime para a ideia de paz/pacificação, a política das UPPs operou, desde seu início, com linguagem e lógica militares; tal deslocamento no plano discursivo não garantiu o fim de ações policiais violentas nas favelas. Como destaca Fridman (2014, p. 615):

[...] a polícia também não mudou substancialmente suas práticas coercitivas e discricionárias de relação com a população favelada. Os moradores continuam submetidos a constrangimentos e atitudes violentas [...], apesar da redução dos tiroteios e da letalidade proveniente dos confrontos com os grupos responsáveis pelo comércio ilegal de drogas. O discurso público da instituição policial passou por alterações [...]. Mas a cultura policial não mudou substancialmente.

As continuidades das práticas policiais após a implementação de uma nova política de segurança lançam luz para a permanência de um modo de compreender e lidar com as populações pobres. Nesse sentido, João Pacheco de Oliveira, em texto considerado um marco e um norte para os esforços de análise das UPPs, chama a atenção para a utilização do léxico da pacificação na nomeação e figuração da nova política de segurança. O autor argumenta que, mais do que uma mudança ou passagem de uma lógica a outra, a mobilização do termo pacificação coloca em evidência uma conexão e uma permanência dos modos de produzir alteridade e governá-la que vem desde o período colonial com a tutela e controle dos povos indígenas e chega à contemporaneidade com os modos como lidamos com os pobres e os territórios de pobreza, notadamente as favelas. Trata-se, portanto, da continuidade de um modo de governo de certas populações que combina violência e tutela.

Seja do ponto de vista analítico, das práticas observadas ou das experiências vividas, fica evidente que a política de pacificação carrega mais continuidades do que deslocamentos no que tange aos modos de compreender e lidar com populações e territórios de pobreza – especialmente no que se refere ao tema da segurança pública. Entretanto, do ponto de vista da representação as UPPs figuraram durante muitos anos como uma estratégia legítima, por ser distinta das anteriores, para intervir sobre as favelas. É à luz dessa duplicidade, que configura os sentidos da violência policial em favelas pacificadas, que relatarei, a seguir, duas situações de violência ocorridas na CDD, destacando as dimensões da rotina que atinge a todos e o privado que perpassam as situações de violência e como isso expressa o caráter social dos sofrimentos experienciados.

Os relatos: sobre violências múltiplas

Não querem nem saber se é trabalhador ou bandido!

Já fazia dois meses que eu iniciara o trabalho de campo na Cidade de Deus. Como parte da rotina, estava na recepção do Prédio do CRJ5 quando uma mulher e um homem começaram a conversar sobre o problema da violência e da polícia. A mulher era Dona Clara, uma senhora negra, com cerca de 50 anos, vestindo roupas de malha bem desgastadas, com os cabelos crespos, curtos e presos. Ela comentava com um homem sobre a situação da comunidade, falava sobre a frequência dos tiroteios e que comumente eles aconteciam nos horários de maior circulação de crianças, na entrada ou na saída da escola. A esse ponto eu já havia me juntado à conversa. Dona Clara explicava, em tom de desabafo, que a situação naquele momento (2014) era tão ruim como em períodos anteriores, considerando que, diferente do que era veiculado, a polícia continuava com uma postura violenta mesmo após a UPP.

Para exemplificar, Dona Clara contou que havia um matagal ao lado da casa dela na Cidade de Deus, para onde os policiais conduziam pessoas, em especial jovens, para agredi-las e também para “desovar” corpos. Ela disse que, poucos dias antes, eles tinham matado oito meninos lá e jogado nesse matagal. Em tom de indignação, continuou relatando um episódio vivido por sua família envolvendo a polícia:

Outro dia mesmo eles pegaram meu menino. Ele estava indo buscar a esposa dele no ponto de ônibus, porque ela chega tarde, na hora que a polícia pegou ele. Meu menino gosta de andar com aquelas correntes, boné, radinho, mas ele não é bandido, é trabalhador, segurança, ele é alto, moreno. Os policiais pegaram ele. Aí, chegaram lá em casa avisando que eles tinham pegado meu menino. Eu saí correndo e fui onde eles falaram, perto desse matagal. Na hora que eu cheguei, meu filho tava sentado no chão e o policial preparando pra dar um chute na cara dele (ia quebrar a cara dele com aquela bota). Eu segurei a perna do policial por trás e ele caiu. Eu fiz isso mesmo, porque, pra proteger meus filhos, eu faço tudo. A gente ficou lá um tempo, mas eles não fizeram nada com meu filho.6

Perguntei para Dona Clara se não tinha havido alterações após a UPP e ela disse que sempre foi do mesmo jeito. Explicou que, com a chegada da UPP, a situação ficou um pouco mais tranquila por cerca de três meses, mas depois os episódios de abuso e violência policial voltaram a crescer. Embora reconhecesse exceções, Dona Clara frisava que a indignação com relação ao modo de agir dos policiais estava relacionada ao fato de agirem do mesmo modo com trabalhador e bandido. Ela continuou com outro caso:

Pra você ter uma ideia, outro dia eles fizeram uma coisa comigo, que eu até chorei, de tanta raiva. Eles entraram na favela, mandaram todo mundo entrar pra dentro de casa, com as armas apontadas. Eu estava na porta de casa, olhando pra ver o que estava acontecendo e um dos policiais falou pra mim: ‘entra pra casa, sua vadia!’ Eu fiquei com tanta raiva que até chorei, mas falei pra ele: ‘vocês não podem fazer isso, eu sei dos meus direitos, vocês têm que nos proteger!’. E o policial respondeu: ‘tá vendo essa farda aqui? Ela não é pra te proteger não; ela é pra me proteger de gente como você. E entra pra casa, sua vadia!’. Quando é assim, a gente tem que entrar e, se começar tiro, tem que deitar no chão.7

Naquele momento, a voz de Dona Clara ficou embargada e seus olhos marejaram... e os meus também. Mas como se estivesse se recuperando da tristeza de lembrar o ocorrido, Dona Clara disse:

mas eu sei dos meus direitos, eu falo mesmo, eu não deixo eles baterem nos meus filhos, eu não tenho medo de morrer, não. Eu sou pobre, favelada, mas eu sei dos meus direitos.8

Para além de afirmar ou questionar se as UPPs produziram mudanças ou não, para o argumento aqui desenvolvido, são dois os pontos que a serem destacados na fala de Dona Clara. O primeiro refere-se à leitura da situação e à relação com os policiais, que independia da política pública de segurança em curso, evidente em reiteradas observações de que “foi sempre assim”, “eles agem assim”. O segundo ponto que me parece central relaciona-se ao primeiro e refere-se ao fato de que, mesmo não operando mudanças na relação cotidiana entre comunidade e polícia, a implementação da UPP figurava como um novo elemento a ser explicado nas denúncias de violência policial. Se Dona Clara afirmava que o fato de haver UPP não mudava o modo de agir dos policiais na favela, era preciso frisar que nada havia mudado com essa política. Não era suficiente relatar que a polícia sempre agiu do mesmo modo, era preciso dizer que “nada mudou” após a UPP, pois havia uma crença de que essa política era diferente e que ela se pautava na proximidade e na paz, o que a legitimava. Nesse sentido, a fala de Dona Clara evidencia não só a violência policial dentro das favelas, mas também como ficou mais difícil falar disso no contexto das UPP, na medida em que havia um grande apoio e legitimidade dessa política. A retórica da pacificação e seu caráter legítimo e inovador acabavam por obscurecer a permanência das práticas de violências, tratadas como residuais.

A morte de Lucas

Eu não estava na Cidade de Deus quando vi na internet a notícia de que um menino de doze anos havia sido atingido por uma bala após uma troca de tiros entre policiais e supostos traficantes na localidade. As primeiras notícias eram de que o estado da criança era grave, mas que ele ainda estava vivo. No dia seguinte, antes de ir para minha casa na Cidade de Deus, vi a notícia de que o menino havia morrido. Era época de Copa do Mundo e a alegria era evidente nas ruas e na vizinhança, mas, neste dia (véspera de um jogo da seleção brasileira de futebol), quando cheguei, percebi que havia um clima de tristeza. Logo, minha vizinha perguntou se eu havia escutado a notícia do menino que morreu na Cidade de Deus e começou a me contar os detalhes:

Aqui tá todo mundo inconformado, sem acreditar. Ele saiu para ir na casa da tia buscar pimenta do reino, de bicicleta, com o irmão mais novo. Quando ele estava voltando, a polícia entrou e o tiro começou a comer solto. Ele caiu junto com o irmão da bicicleta e logo uma vizinha que conhecia ele veio “é o Lucas, é o Lucas...”. O irmão dele estava todo cheio de sangue também… ele ficou lá parado sem reação, todo cheio de sangue do irmão…

Outra vizinha interveio:

Dizem que a mãe dele está inconformada, está acabada. Imagina, o menino sai pra buscar pimenta na casa da tia pra ela terminar o almoço e leva um tiro. Eu sou mãe, eu sei o que ela deve estar sentindo, ver um filho morrer assim, desse jeito, um filho inocente, um menino que todo mundo gostava.9

Todos que chegavam onde eu estava comentavam o assunto; a tristeza e a incredulidade com relação ao fato eram grandes. Eram recorrentes as falas de que essa situação não era justa, uma vez que Lucas era um menino inocente, assim como as afirmações de que isso era culpa da polícia, que fazia sempre da mesma forma, entrava atirando. Sobre esse fato, uma moradora disse:

É mais um menino inocente que morre, mais uma mãe da CDD chorando a morte do seu filho. Até quando isso vai? Do jeito que eles [policiais] fazem, ainda vai ter muita mãe chorando.10

A desconfiança de que o caso não seria devidamente investigado também marcava as falas naquele dia.

Eles falam que vão investigar, eles falam que foi bala de arma de bandido, mas a gente sabe que nunca investiga mesmo. Um dos tios dele [de Lucas] disse que viu as balas que estavam perto do corpo do menino e que eram balas de arma de polícia; ele disse que vai provar que o menino foi morto foi com arma de polícia.11

No dia seguinte aconteceu o enterro de Lucas. Cida, minha vizinha, estava ainda mais abalada após o enterro. Contou que muitas pessoas passaram mal e desmaiaram, tendo em vista que o calor agravava a forte emoção que envolvia o momento. Cida se lembrou emocionada da fala do professor de futebol de Lucas, que deu um depoimento sobre o menino, dizendo que sua profissão não tinha mais sentido, uma vez que uma tragédia como essa teria levado um de seus melhores alunos, um dos melhores meninos que já havia conhecido. Ela também se emocionou ao relembrar que o irmão mais novo de Lucas, que estava com ele na bicicleta, também desmaiou. Ao ouvir sobre o sofrimento daquela criança de apenas sete anos, pensava em como aquelas crianças da vizinhança tinham seus corpos e suas vidas expostos já tão cedo.

A rotina imprevisível e a produção de sofrimentos

Tanto nos casos relatados por Dona Clara como no caso da morte de Lucas, as falas sobre a violência expressam a faceta rotineira e recorrente das formas de agir da polícia.12 Ao mesmo tempo, essas falas revelam que o sentimento e, sobretudo, o sofrimento decorrente desse processo é algo específico. Quando Dona Clara afirma que “a polícia sempre age assim”, combinam-se, na sua fala, a indignação e a dor de ver seu filho sendo espancado pela polícia ou de ser chamada de vadia. Para Vianna (2014, p. 220),

a singularidade da dor de cada perda ou da injustiça de cada morte é combinada, assim, de modo paradoxal, com a imagem da repetição e da probabilidade. No plano dos relatos pessoais e familiares, a repetição aparece quando falam de um agir constante do “Estado” [...]. Essa racionalização não desfaz, porém, o registro da tragédia irredutivelmente pessoal e incompreensível [...], indicando o estranho encontro entre o rotineiro e o trágico; entre o provável e o inimaginável.

Desse modo, ao destacarem como as violências experienciadas estão relacionadas a uma forma específica de a polícia agir em favelas, os moradores nos permitem diferenciar conteúdos, episódios e experiências tratados sob a chave da violência urbana (VIANNA, 2014). Se a ideia de violência urbana como gramática nos permite refletir sobre como tem sido construída a compreensão prática e discursiva da questão da segurança e como as possíveis soluções têm se restringido à demanda crescente por repressão, direcionada a territórios específicos (as favelas), as falas dos moradores sobre as violências policiais, de modo complementar, nos permitem perceber como essas demandas se traduzem nos territórios de favelas e a que tipo de experiências os moradores desses locais estão expostos.

Essa distinção da face concreta da violência urbana nas favelas e a combinação rotineiro/singular nos permitem pensar que “o sofrimento não entra, portanto, no quotidiano das pessoas só por mero acaso, por contingências específicas da vida ou por existirem mecanismos objetivos de ‘disfunção social’” (BRAZZABENI; PUSSETTI, 2011, p. 5). O mal-estar e o sofrimento, nessa perspectiva, têm uma natureza social e política, uma vez que são impostos por causas externas, podendo, então, ser pensados como sofrimento social (SANTOS, 2007). Portanto,

o sofrimento social, nesta perspectiva, resulta de uma violência cometida pela própria estrutura social e não por um indivíduo ou grupo que dela faz parte: o conceito refere-se aos efeitos nocivos das relações desiguais de poder que caracterizam a organização social. Alude, ao mesmo tempo, a uma série de problemas individuais cuja origem e consequência têm as suas raízes nas fraturas devastadoras que as forças sociais podem exercitar sobre a experiência humana. O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, econômico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de poder podem influenciar as respostas aos problemas sociais. (BRAZZABENI; PUSSETTI, 2011, p. 4).

No bojo desse processo de violência e de sofrimento social, ocorre outra violência: a forma como o próprio sofrimento é tratado. Nas falas, fica evidente que tais episódios não são apenas violência física e letal, mas também violência moral (BIRMAN; LEITE, 2004). Esse caráter moral pode ser notado pelo tratamento dado aos casos e às reivindicações (“a gente já sabe no que vai dar a investigação”, “a gente sabe que não adianta denunciar”), bem como no fato de essa violência ser cometida pelo Estado13 (nesse caso, materializado na UPP), que coloca em prática uma violência seletiva, destinada e possível apenas para os que moram em favelas (“eles fazem isso porque a gente é favelado”, “já entra atirando”, “não quer saber se é trabalhador ou bandido”).

Mas, no caso da violência policial em favelas pacificadas, a possibilidade de perpetuar o sofrimento está estreitamente relacionada ao processo de construção da legitimação da política de pacificação. Como sugere Fridman (2014), a imagem criada sobre as UPPs produziu uma adesão a essa política e, consequentemente, a redução da crítica pública às suas deficiências e fracassos. E essa redução da possibilidade de crítica termina por obscurecer e legitimar a violência policial nas favelas, dificultando a vocalização das denúncias dos moradores.

A UPP como a concretização do sonho da paz, a violência como efeito colateral

A implantação do programa das Unidades de Polícia Pacificadora teve grande repercussão na esfera pública, obtendo elogios e apoio quase unânimes dos meios de comunicação e de vários setores da população, sobretudo pela redução do índice de mortalidade decorrente dos confrontos entre policiais e traficantes. Produziu-se, assim, um efeito-demonstração de que essa política representava uma solução para o problema da violência, fazendo do modelo das UPPs um exemplo a ser seguido em outros estados e países, como a Argentina.

Para Fridman (2014), a construção da legitimidade da política de pacificação e a adesão a ela estão fortemente ancoradas na ideia de que essa política instaura um novo momento: a era da cidade pacificada. No entanto, em nome e em defesa dessa ideia (dessa utopia, nos termos de Fridman),

[...] o que se impôs, na verdade, foi a solução militar com a divulgação de seus sucessos e os anúncios das novas regiões a serem cobertas pela proteção policial. A circulação das declarações, opiniões na mídia, reportagens, estatísticas e eventuais júbilos pelas medidas tomadas deixam de fora o que permanece o mesmo, isto é, o jogo e o movimento de forças duradouramente instaladas nas favelas. O “novo” da implantação das UPPs não se traduz no revigoramento da cidadania e da legitimidade dos pobres na mesa das negociações sociais. O “velho”, ao ser deixado de lado, permanece intacto. (FRIDMAN, 2014, p. 614).

O que merece atenção é como a lógica que orienta a justificativa das UPP, em conjunto com os discursos acionados e mobilizados para justificar o que permanece intacto, sustentam não só a legitimidade dessa política, mas a legitimidade da violência cotidiana que ela produz.

Nesse sentido, as discussões de Foucault (2008; 1988) sobre biopolítica podem contribuir para pensarmos sobre esse processo. Segundo Foucault (1979), a partir do século XVI, o poder soberano de fazer morrer se torna econômica e politicamente inoperante em uma sociedade que passava por uma explosão demográfica e um processo de industrialização. Assim, a partir da época clássica, o objetivo central do poder soberano passou a ser a incitação, o reforço, o controle, a vigilância, a majoração e a organização das forças submetidas ao soberano, ou seja, desloca-se de um poder de “fazer morrer e deixar viver” para um poder de “fazer viver e deixar morrer”. Essa modificação consistiu uma dupla acomodação do exercício do poder soberano, ou seja, as tecnologias de poder sobre a vida, aquelas do biopoder, se desenvolvem em dois polos: de um lado, uma tecnologia que individualiza o corpo e incide sobre ele como organismo dotado de capacidades – a anátomo-política – e, de outro, uma tecnologia que se interessará pelos corpos inseridos nos processos biológicos da espécie – a biopolítica (FOUCAULT, 1979).

A eficácia das tecnologias do biopoder reside precisamente no fato de que ele se abstém explicitamente de matar e, em vez disso, se fundamenta nas metas de bem-estar da população e cuidados com ela (OKSALA, 2010, p. 38). Assim, é como se o poder político desaparecesse e fosse substituído pelo poder meramente administrativo e econômico, uma vez que “não há decisões políticas ou debates possíveis quando os objetivos são unânimes” (OKSALA, 2010, p. 43). No caso em questão, a unanimidade e o consenso gravitam em torno do sonho de uma cidade pacificada, o qual se realizaria com a expansão e consolidação das UPPs.

Entretanto, como mostram os casos relatados, um poder que faz viver pode fazer morrer. “O velho direito soberano de tirar a vida ou deixar viver não foi substituído, mas foi bastante complementado com um novo direito de fazer viver e deixar morrer” (OKSALA, 2010, p. 38). Para esse autor,

o biopoder é, assim, claramente capaz de utilizar violência, mas apenas sob condições muito específicas e restritas por limites definidos. A violência que ele usa tem que ser escondida ou chamada de outra coisa, pois apresenta um problema na racionalidade da biopolítica, o objetivo explícito que é a otimização e melhoria de vida. (OKSALA, 2010, p. 38).

Assim, a violência e a arbitrariedade só são possíveis em nome e em defesa da qualidade de vida, do bem-estar da população, da paz. É nesse sentido que a construção da legitimidade das UPPs está estreitamente ligada à construção da ideia de que essas ações da polícia são necessárias. As práticas estatais de infligir sofrimento pressupõem que é possível causar um dano menor para alcançar um bem maior no futuro. “Entretanto, ao dar definições precisas de dano e bem-estar, a ciência e o Estado podem acabar por formar uma aliança na qual se apropriam do sofrimento daqueles que eles definem como refugo social, a fim de alcançar um projeto de sociedade no futuro” (DAS, 2008, p. 451).

Fica evidente, portanto, como a associação dos favelados à classe perigosa,14 agora deslocada do plano político para a chave do desvio moral, possibilita a construção de outro radical, que, por isso, precisa ser combatido, considerando o risco potencial que oferece.15 É pressupondo esse outro radical, moralmente perigoso para o restante da sociedade, que é possível mobilizar certas justificativas e explicações sobre a violência policial, que vai figurar como um efeito indesejado, porém necessário. Dessa forma, as violências policiais poderão ser tratadas como exceções, como acidentes, como engano, como de responsabilidade dos traficantes (“o tiro era da arma de bandido”) e, no limite, como efeito colateral necessário. No caso do filho de Dona Clara, o problema era que ele parecia com bandido; no caso da morte de Lucas, a perícia demonstrou que a bala que o atingiu não provinha da arma utilizada pelos policiais, mas nada foi dito sobre a forma como a polícia entrou na favela no momento do disparo. Em outras palavras, o que está em questão não é a forma rotineira de a polícia agir na favela, muito menos um modelo de política pública com a presença ostensiva da polícia em favelas, mas sim a necessidade de se evitar erros, exceções.

Como afirma Das (1997), nas sociedades contemporâneas, a violência e o sofrimento infligidos podem ser interpretados como um preço a pagar pelos indivíduos para vivenciarem sentimentos de pertença identitária e social – uma “teodicéia secular” que funciona quer como instrumento social para enfrentar as frustrações, quer como instrumento de poder para explicar e justificar o sofrimento atribuindo-lhe uma alegada “utilidade social” e “pedagógica”. (BRAZZABENI; PUSSETTI, 2011, p. 5).

Vale destacar que, no bojo do processo de pacificação e combinado ao discurso do favelado como uma alteridade radical (por isso, perigosa) (FELTRAN, 2014), o processo de implementação de outras políticas públicas voltadas para o social também tem contribuído para a legitimação de práticas violentas de policiais. Como pude perceber ao longo da minha pesquisa de campo, nas falas e nas práticas dos policiais, fica clara a possibilidade e a necessidade de coexistência de estratégias de controle (violência) e de cuidado (social). Se o meio é degradado, se as famílias são desestruturadas, há os que não têm salvação e aqueles que têm. Dessa forma, quanto mais são oferecidas políticas para o social – apresentadas e consideradas como uma alternativa ao crime -, mais é possível sustentar a necessidade de políticas de repressão para aqueles que não agarram as oportunidades que lhes são disponibilizadas. Em outras palavras, cada um deve ter o que merece: aos trabalhadores, o respeito e as políticas sociais; aos bandidos, a violência e a força da polícia. Nesse sentido, o aumento e a diversificação das políticas vinculadas à pacificação (que não se restringem à segurança pública) parecem ter como efeito a convivência e o reforço mútuo das estratégias de violência e de cuidado, uma vez que a violência será legitimada ou justificada pelo fato de os sujeitos não aderirem aos programas, não aproveitarem as oportunidades.

Nessa lógica, políticas como as UPPs, assim como outras destinadas às populações pobres, parecem operar na mesma lógica: aquela que reifica a maior exposição desses grupos à dor e ao sofrimento, consideradas efeitos colaterais de um projeto maior e socialmente mais importante. A exposição sistemática ao sofrimento é justificada, por esse poder que deve fazer viver, como uma espécie de mal necessário para garantir e promover a ordem e defender a sociedade.

Lidando com o risco, explicando a injustiça: resiliência

É frente a essa lógica de conceber a favela e os favelados e lidar com eles que os moradores, em especial aqueles que já sofreram violência policial ou têm pessoas próximas que também foram vítimas dela, elaborarão estratégias emocionais e práticas para explicar e conviver com essa exposição rotineira à violência. Aqui vale esclarecer que, ao falar de explicação, não pretendo adentrar nas justificativas para as violências específicas sofridas (em cada caso), mas descrever os sentidos atribuídos à violência policial e as estratégias para lidar com ela.

A morte de Lucas ocorreu em um período de bastante tensão na Cidade de Deus: episódios de entrada da polícia, de trocas de tiros e de prisões foram recorrentes nas semanas que antecederam o fato e nas que o sucederam. Percebi que foi redobrada a atenção em relação às atividades rotineiras de outras crianças da rua e, nesse sentido, duas situações, especialmente, me chamaram a atenção.

A primeira aconteceu alguns dias após a morte de Lucas. Por volta das 16h, Pedro Henrique, de 3 anos, sobrinho de uma vizinha, brincava com seus carrinhos e bonecos no pequeno quintal da casa da madrinha. Em geral, o portão de sua casa que dá acesso à rua fica aberto para facilitar a entrada dos amigos que chegam. Normalmente, Pedro Henrique entra e sai de casa, alternando suas brincadeiras no espaço do quintal e na calçada, de onde é visto pela janela da frente da casa da tia. Os vizinhos adultos já o conhecem e sempre interagem com ele quando passam e, algumas vezes, crianças das casas vizinhas brincam com ele na calçada. Nesse dia, Pedro Henrique brincava no quintal e, como de costume, o portão estava encostado (sem trancar). Como estava acostumado, o menino levou um de seus brinquedos para a calçada e começou a brincar. Eu vi a cena e achei normal; ele estava na calçada, no meu campo de visão. No entanto, a madrinha foi ao quintal e, quando não o viu, rapidamente abriu o portão, pegou o menino no colo e disse para ele: “eu já falei que é não pra você ficar na rua!”. Pedro Henrique ficou parado, assustado e confuso com as razões daquela ordem. A madrinha, como que falando sozinha, reforçou: “eu já avisei. Parece que não vê como as coisas estão! Corre o risco de tomar um tiro, de acontecer igual ao outro menino!”.

O segundo episódio também ocorreu com o Pedro Henrique. Ele brincava sozinho, como se estivesse em combate e, segurando uma arma imaginária (representada, na ocasião, por uma vassoura), dizia: “eu vou te matar, pá, pá”. Corria pela casa e fingia se esconder. Num dado momento, a brincadeira impediu que a madrinha prosseguisse com as atividades, então ela disse: “para com isso, para de brincar com isso!”. Ele, desapontado e irritado, disse: “pá, pá, eu vou chamar a polícia pra você!”. No mesmo instante, ela interrompeu suas atividades e, com o semblante sério, disse: “para com isso, menino, não pode falar essa bobagem, para de falar bobagem!”. Pedro Henrique, um pouco assustado, deixou a vassoura de lado e foi procurar algo para comer. Eu já tinha visto Pedro Henrique fazer brincadeiras como essa diversas vezes, sem que nenhum adulto o repreendesse. Dessa vez estava claro o clima de tensão daquele momento; não era indicado falar sobre polícia e era melhor que as crianças também o fizessem, evitando qualquer problema ou mal entendido. Dei-me conta, então, que nos períodos de maior tensão os assuntos sobre polícia, bandidos, UPP e tiroteios eram evitados.

No que tange aos sentidos e explicações atribuídos aos episódios de violência policial, as falas mais recorrentes e enfáticas são aquelas de descrença sobre a possibilidade de denunciar, de ter sua denúncia ouvida e de obter soluções e/ou respostas, sobretudo institucionais. A fala “a gente já sabe onde vai dar essa investigação” é expressiva dessa falta de perspectiva. Os moradores sabem que, provavelmente, suas críticas e as injustiças sofridas não provocarão ações institucionais efetivas. Entretanto, acredito que essa falta de perspectiva para a resolução justa não significa uma aceitação pura e simples. O fato de essas certezas se tornarem assunto recorrente entre os próprios moradores e de serem reiteradas ao longo de conversas com pessoas “de fora” (como eu) é uma forma de deixar evidente que eles sabem claramente em quais relações de poder estão imersos, bem como os limites de suas possibilidades de denúncia. Nesse sentido, as falas de Dona Clara são emblemáticas, pois combinam a indignação e a clareza dos limites do que pode ser feito: o policial a chamava de vadia, ela o contestava, afirmando saber dos seus direitos e dos deveres do agente, ele reafirmava a ofensa e a ordem para ela entrar em casa, ela entrava, simplesmente porque “quando é assim, a gente tem que entrar”.

Outro ponto bastante recorrente nas falas dos moradores sobre a violência policial é o questionamento sobre a falta de critérios dos policiais, que não distinguiam trabalhadores e bandidos. No relato de Dona Clara, o tom de denúncia e indignação refere-se às ações arbitrárias e violentas da polícia contra os moradores trabalhadores. Se o processo de pacificação deveria representar uma mudança também na forma de agir da polícia, na prática, ele não trouxe mudanças efetivas nesse sentido, uma vez que a violência policial persistia.

Entretanto, no questionamento feito pela moradora acerca da violência e da falta de respeito dos policiais com os moradores de favelas fica evidente a percepção de que essa é uma forma injusta de tratar os moradores trabalhadores; “eles não querem saber se é trabalhador ou se é bandido”. O ponto central do questionamento ou da revolta não está na forma como a polícia age, mas na falta de um critério, na indistinção entre trabalhadores e bandidos, reunindo todos sob a mesma categoria de favelados e dispensando a todos o mesmo tratamento. Em geral, “as críticas são antes ao caráter indiscriminado da ação que não distingue entre ‘gente de bem’ e ‘marginais’ [...] criticam menos a violência policial em si e mais a falta de seletividade de seu objeto”. (MACHADO; LEITE, 2007, p. 572).

A constatação da ausência de uma “filtragem” e dos limites de suas denúncias expressa a clareza que os moradores têm sobre o lugar que ocupam no espaço social. Como destaca Vianna a respeito de etnografia realizada junto a parentes de vítimas mortas pela polícia,

o registro do perigo rotineiro que aparece nessas falas está atravessado sempre pela percepção de se estar localizado em um ponto de margem, sendo alvo de ações discricionárias e estando sujeito a regulações singulares pelo “Estado”, materializado, sobretudo, na polícia militar, seja por meio de controles da vida cotidiana considerados invasivos nas áreas “pacificadas”, seja de achaques, risco de execução ou “bala perdida” em quaisquer favelas. (VIANNA, 2014, p. 218).

A clareza do lugar social que ocupam não parece indicar uma banalização ou ignorância frente a essa violência, mas o trabalho do tempo ao longo de suas vidas. Com efeito, para os sujeitos que vivem expostos a esses riscos, “nesse projeto de reconstruir suas vidas, podem utilizar a noção de sanar não como cura, senão como uma relação com a morte”. (DAS, 2008, p. 456), seja ela literal, social ou moral. É nesse sentido que a noção de resiliência parece assumir aqui um sentido profundo e doloroso, na medida em que diz de uma capacidade de suportar a pressão, envergar sem quebrar, sem se deixar romper.

Considerações finais

As falas dos moradores sobre a violência policial deixam evidente a construção cotidiana de estratégias para explicar essa violência, assim como para se protegerem dela. Ao mobilizar o conceito de sofrimento social para compreender as falas deles sobre os episódios de violência policial, pude perceber que o sofrimento diante da morte de um parente ou da violência sofrida por um filho tinha relação com processos sociais e políticos. Com a política de pacificação, a possibilidade de infligir e legitimar o sofrimento, por meio da violência policial, estava estreitamente relacionada ao processo de construção das UPPs como alternativa eficiente, legítima e viável para a concretização da utopia da cidade pacificada.

O corolário dessa imagem-efeito (FRIDMAN, 2014) foi obscurecer e legitimar a violência policial. Os moradores afirmavam que, após a UPP, os tiroteios diminuíram muito, o que melhorou a vida, mas as mortes, violências e arbitrariedades continuavam a ocorrer e continuava também a dificuldade para denunciá-las e esclarecê-las. Os casos da agressão do filho de Dona Lúcia e da morte de Lucas mostram uma sucessão de violências. Violências que vão desde a insegurança e a incerteza com relação aos modos de agir dos policiais que passaram a transitar cotidianamente na favela, passam pelas violências físicas (por vezes letais), se intensificam com a impossibilidade de vocalizar e ter apurados os abusos e, por fim, se rotinizam, tendo em vista a necessidade de estratégias (práticas e emocionais) para lidar com toda essa dinâmica violenta, insegura e incerta.

O que o contexto das UPPs colocava de novo não eram os episódios de violência. O que havia de novo nesse cenário era o fato desse novo contexto da pacificação contar com a legitimação pela população em geral, ou seja, “a pacificação funciona persuasivamente muito mais para fora do que para dentro das favelas”. (FRIDMAN, 2014). Desse modo, esses sujeitos ficavam expostos ao sofrimento cotidiano, rotinizado e ignorado. Ao figurarem como efeitos colaterais de uma ação necessária e com um fim supostamente maior, as violências sofridas por moradores de favelas revelam nossa incapacidade para reconhecer a dor do outro (BUTLER, 2011), o que nos impossibilita de estabelecer laços com o outro e de nos opor à violência. É nesse sentido que parece caminhar a construção da favela e do favelado como alteridade radical, diante da qual é possível não só ignorar o sofrimento, mas infligi-lo a esses sujeitos constante e cotidianamente.

Referências

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  1. Este texto apresenta resultados da pesquisa desenvolvida no âmbito do doutorado em Sociologia pela UFSCar, defendido em novembro de 2017, que contou com o financiamento da FAPESP, processo 2013/ 22630-6.

  2. Para uma análise das fases da política das UPP, de sua implementação ao seu declínio, ver o trabalho de Menezes (2015).

  3. Como buscarei discutir adiante, ao me referir a uma espécie de “rotinização” da violência, não pretendo sugerir que os moradores aceitam passivamente essa situação. Para uma discussão sobre movimentos de mães e parentes de vítimas de violência institucional, ver Vianna (2014); Farias (2013); Birman e Leite (2004).

  4. Até 2014, as UPP ainda gozavam de certa estabilidade e legitimação; na Cidade de Deus, os conflitos com policiais apenas começavam a aparecer. No entanto, em 2016, quando retornei ao local, o projeto das UPP era alvo de fortes críticas e já estava bastante desgastado, o que se somava à grave crise econômica que o governo do Estado do Rio de Janeiro enfrentava. Na CDD, os confrontos entre traficantes e a polícia eram frequentes, assim como as operações com a entrada do “caveirão” e prolongadas trocas de tiros. Portanto, a pesquisa teve dois momentos bastante distintos, uma vez que, em 2014, residi na Cidade de Deus por 4 meses, ao passo que, no ano de 2016, fui a campo semanalmente, ao longo de 4 meses, para realizar, sobretudo, entrevistas. Além desses dois momentos mais prolongados, realizei visitas mais pontuais e isoladas em 2014 e 2016.

  5. O chamado “Prédio do CRJ”, localizado na região central da Cidade de Deus, era um equipamento do governo estadual do Rio de Janeiro onde funcionavam diversas políticas e serviços, como o Centro de Referência da Juventude (o CRJ, que “dava nome” ao prédio), o Programa Caminho Melhor Jovem, atendimentos do SEBRAE, atendimentos do CRAS e da Secretaria Estadual do Trabalho.

  6. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  7. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  8. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  9. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  10. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  11. Reprodução da fala a partir das anotações do caderno de campo.

  12. Machado da Silva e Leite (2007) destacam que a dimensão da recorrência da violência policial é fortemente caracterizada pelos moradores de favelas como imprevisível, uma vez que não é possível prever o momento de incursão da polícia e, principalmente, os critérios para abordagem e ação.

  13. Vianna (2014) destaca como, nas falas de familiares que perderam parentes vítimas de ações policiais, o Estado assume significados variados (polícia e policiais, legistas, sistemas judiciários, governo do estado do Rio de Janeiro).

  14. Para uma discussão sobre o tema ver Valadares (2005); Gonçalves (2013) e Machado da Silva e Leite (2007).

  15. É interessante perceber como a duplicidade da ideia de risco social orienta essa lógica. As populações em risco (vulneráveis, em risco social) são também as populações de risco (aquelas que constituem ameaça ao restante da cidade). Essa ideia ambivalente sobre a população pobre – que precisa ser ajudada e controlada justamente devido aos perigos que oferece – justifica uma intervenção maciça nos segmentos “precários” e “indesejados” da sociedade, com vista a ajudar os sujeitos na construção de seus próprios projetos de vida, para que se tornem cidadãos integrados na ordem social e moral dominante, evitando, assim, que ameacem a sociedade, os “cidadãos de bem”. (BRAZZABENI; PUSSETTI, 2011).

Resumo:
Este texto apresenta uma reflexão sobre as estratégias de moradores de uma favela carioca para lidar com práticas policiais de violência e arbitrariedade, em um contexto de pacificação de favelas. Considerar a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) é importante na medida em que elas representaram e figuraram como um deslocamento em relação a uma antiga forma de ação da polícia – calcada na ideia da guerra – para uma nova concepção que, ao menos discursivamente, se apoia na noção de paz. Considerando esse cenário e a partir de relatos dos moradores sobre episódios de violência policial, discuto como a indignação frente a essas práticas policiais convive com certa rotinização, tanto da exposição permanente a essa violência quanto das estratégias para lidar com ela e se proteger física e emocionalmente.

Palavras-chave:
Violência; Sofrimento; UPP Favela; Rio de Janeiro

 

Abstract:
This text presents a reflection on the strategies of residents of a slum in Rio de Janeiro to deal with police practices of violence and arbitrariness, in a context of “pacification” of the slum. The implementation of the Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) is important insofar as the UPPs have represented and figured like a shift from the old way of doing of the police, supported in the idea of war, to a new way of doing supported in the notion of peace, at least discursively. From the resident’s reports on police violence, I discuss how the indignation towards these practices coexists with certain routinization, both the permanent exposure to this violence and the strategies to deal with it and protect yourself physically and emotionally.

Keywords:
Violence; Suffering; UPP Pacification; Rio de Janeiro.

 

Recebido para publicação em 18/04/2017
Aceito em 28/08/2019