Revista de Ciências Sociais, v. 50, n. 2, 2019.

RESENHA

 

 

Raízes sociais de um sonho cosmopolita

 

MICELI, Sergio. Sonhos da Periferia. São Paulo: Todavia. 2018.

 

 

Leonardo Octavio Belinelli de Brito
Universidade de São Paulo
belinelli.leonardo@gmail.com

 

Em um dos trechos de seu O escritor e seus fantasmas, aquele no qual compara a literatura russa e a argentina, Ernesto Sabato frisa um dos aspectos compartilhado por ambas: o europeísmo, “traço tão tipicamente eslavo ou rio-platense quanto a vodca e o mate, contrariamente ao que acreditam nossos sociólogos apresados [...]. É uma característica tipicamente nossa. Os europeus não são europeístas; eles são simplesmente europeus” (SABATO, 2009, p. 17). Cada um a seu modo, os chamados países periféricos parecem compartilhar o sonho, calcado em condições objetivas derivadas da inferioridade econômica e da má-formação social, de eliminar seus aspectos deformantes pela supressão de suas diferenças em relação aos países que lhes servem de modelos.

Como notou Maria Arminda Arruda (2004, p. 114), essa é uma das questões constantes das reflexões de Sergio Miceli. Situadas a partir de práticas sociológicas formuladas por sociólogos da cultura, com claro destaque para as ideias sistematizadas por Pierre Bourdieu, elas se dedicam, especialmente, à compreensão das constrições e possibilidades de atividades culturais, acadêmicas e artísticas em circunstâncias periféricas, tema recorrente nas vidas de nossos intelectuais. Esse programa é continuado em Sonhos da Periferia, livro em que Miceli analisa os condicionantes sociais de um empreendimento cultural que tentou, de forma específica, suprimir a mencionada distância. Trata-se da vanguarda argentina dos anos 1920 e 1930, objeto a que o autor se dedica desde 2001 e sobre o qual já publicou Vanguardas em retrocesso (MICELI, 2012) e organizou, com Heloísa Pontes, Cultura e sociedade: Brasil e Argentina (MICELI; PONTES, 2014).

O livro conta com três ensaios. O primeiro nos informa que a mirada de Miceli sobre o modernismo argentino se baseia no contraste de seus fundamentos sociais com o caso brasileiro. “Enquanto no Brasil foi se configurando um regime de cooptação dos intelectuais pelo Estado, no país vizinho a inteligência subsistiu dependente do mecenato privado” (MICELI, 2018, p. 10). Nessa diferença, revelam-se os diferentes impactos, no plano cultural, das trajetórias política, econômica e social dos dois países. Entre eles, cabe destacar que um aspecto decisivo para o desenvolvimento do sistema cultural argentino foi a consolidação da escola pública gratuita, fator que gerou um público leitor robusto, capaz de sustentá-lo.

Se esse é o ponto de partida que nos informa sobre dos tipos de injunções às quais estava submetido o campo cultural argentino, a força da análise se revela em ato quando tais influxos são percebidos na dinâmica de Sur, revista literária criada em 1931 cujo impacto cultural e simbólico não encontra precedentes entre as similares brasileiras. Isso se deveu, em boa medida, ao fato de que Sur, capitaneada pela escritora e socialite Victoria Ocampo, tinha ambições de alcançar planos supranacionais, objetivo que seria possibilitado, por exemplo, pelo maior raio de compartilhamento da língua espanhola e pelos vínculos estabelecidos pela alta inteligência argentina com suas homólogas de outros países. Miceli enfatiza o grau de ambição da revista quando destaca que o projeto internacionalista de Sur “espelhava a auto-imagem triunfante da elite nativa, o sonho de erigir, do recesso da periferia, a expressão convincente de uma arte própria, de lavra autóctone, autêntica, liberada de peias nacionais, capaz de se equiparar à melhor literatura do mundo” (MICELI, 2018, p. 11). Isso em um contexto nacional e internacional turbulento como os anos 1920 e 1930, nos quais ocorreram a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o início da chamada “década infame” com o golpe de Estado liderado pelo general José Felix Uriburu, entre outros acontecimentos.

Como era de se esperar, a realização desse desejo cosmopolita não poderia passar infensa às lutas do período, uma vez que o acirramento ideológico mina a “autonomia do literário” (MICELI, 2018, p. 66). Ao examinar as edições da revista entre 1931 e 1945, Miceli procura justamente analisar as posições de Sur diante de tal contexto, no qual forças de lados opostos competiam por legitimidade política e cultural. Em geral, as posições da revista dirigida por Victoria Ocampo foram vagas e indiretas, sem enfrentamentos abertos com os problemas políticos postos pela ordem do dia, mas que nem por isso deixavam de fazer o jogo das forças conservadoras (MICELI, 2018, p. 67).

Entre os resultados dessa postura, um se sobressai: o sonho cosmopolita de Sur logrou ocultar os fundamentos sociais que o tornavam plausível. Criava-se, nesse sentido, uma ideologia em sentido próprio, na medida em que a aparência de desligamento de Sur dos conflitos sociais foi tomada, por muitos de seus analistas, como sinais de alienação ou de apego à ideia de cultura em sentido estético. Diante dessa narrativa, Miceli é ácido: “Para o desconcerto dos estetas, o anúncio de piano de cauda é tão revelador quanto a peroração de [Eduardo] Mallea ou os artifícios literários de [Jorge Luis] Borges. Ecoando o bordão determinista, toda disposição intelectual retém as marcas das condições em meios às quais se forma” (MICELI, 2018, p. 14).

Pressentindo uma das críticas que lhe poderiam ser feitas, o autor logo afirma que não é “contra nem a favor de Sur” (MICELI, 2018, p. 15); pode ser que esse seja mesmo o caso, é claro. Porém, talvez fosse adequado assinalar que Miceli é contra a narrativa em torno da Sur, suscitada ela própria pelo entourage da revista. Se antes dissemos que essa narrativa constituiu um tipo de ideologia, nãos seria demais afirmar que, nesse aspecto particular, a tarefa de Miceli poderia ser pensada como um tipo de crítica da ideologia, ideia favorecida por sua busca incessante por desvendar as condições sociais de produção do empreendimento cultural que foi Sur, sem que se perca de mira o caso brasileiro como contrastante. Aliás, sua prosa apimentada, deliberadamente altiva e provocativa diante de objetos que não costumam ser questionados, reforça, no plano formal, essa impressão. Pode ser, inclusive, que o autor às vezes passe do ponto, como assinalou Antonio Candido (2008, p. 73) em comentário a outro trabalho do autor. Isso ocorre especialmente quando o ímpeto crítico de seu ponto de vista ultrapassa seus próprios limites, o que faz com que alguns aspectos sejam reduzidos a um conjunto de estratagemas supostamente mobilizados, de forma racional, pelos autores analisados.

Um exemplo do que mencionamos aparece no momento em que Miceli, muito imaginativamente, busca compreender as razões pelas quais a literatura argentina do período assumiu determinadas formas cosmopolitas, enquanto na literatura brasileira prevaleceram outras, via de regra mais localistas. Por razões compreensíveis, a figura de Jorge Luis Borges, autor ao qual o sociólogo uspiano já havia dedicado um estudo crítico (MICELI, 2007), avulta. Não há, entretanto, como deixar de notar que, apesar de plausíveis, falta às argumentações certa fineza no trato do objeto literário; isto é o texto, e não seu autor. A força da literatura de Borges, como de outros escritores, não se resume a um conjunto de estratégias retóricas, nem à sua disposição pessoal, nem à sua herança familiar, nem à suas amizades, embora tudo isso deva ter contribuído, como demonstrou Miceli, para a construção social de seu sucesso. É que a literatura de Borges transcende o cotidiano de seu autor e é ela que constitui sua singularidade. Ou, por outra: o conjunto de medidas tomadas pelos autores a respeito do seu processo de consagração não lhes garante sucesso, o qual depende, também, de elementos alheios ao seu controle. Nesse plano, várias questões poderiam ser abordadas, entre as quais caberia mencionar o estudo da recepção da literatura do grupo de Sur em outras paragens e uma análise de sua potência crítica aos moldes do estilo dialético de Theodor Adorno e Roberto Schwarz.

As observações não diminuem o mérito da análise de Miceli, cuja força se revela, também, na passagem para o terceiro ensaio do livro. Nele, o autor explora, em tom menos acre, as trajetórias sociais e artísticas de alguns literatos marginais, como Alfonsina Storni e Horácio Quiroga. A condição marginal compartilhada por esses autores é percebida pelo seu alheamento aos processos de produção e circulação cultural suscitados pelos membros do grupo de Sur, os quais haviam se tornado os sujeitos capazes de estabelecer as regras de legitimidade para o campo cultural argentino. Como de praxe, um dos efeitos sociais visíveis da marginalidade está na dispersão e insegurança dos esforços de suas vítimas, situação simetricamente oposta à coesão típica dos grupos dominantes, dos quais Sur é um exemplo bem-acabado. Nos casos em tela, Storni e Quiroga se viraram em direção à indústria cultural então nascente na Argentina, de modo que ajustavam suas literaturas ao gosto compartilhado pelos populares. “Outsiders aos olhos de Borges e congêneres, não obstante foram ícones de uma pujante indústria cultural que se espraiava em variados gêneros e formatos expressivos” (MICELI, 2018, p. 97). A homologia traçada por Miceli entre Storni e Quiroga chega, literalmente, ao fim de ambos. A objetividade radical com a qual se busca tratar o tema do suicídio dos dois escritores não esconde a simpatia do autor pelos dominados – aliás, aspecto revelado, de passagem, na introdução do texto (MICELI, 2018, p. 16-7). Não seria esse aspecto um sinal de que, embora afirme o contrário, Miceli guarda certo mal-estar diante do elitismo de Sur?

Esse é um exemplo de que a forma objetiva nos permite entrever aquilo que não é dito, e talvez nem conscientemente percebido, pelo sujeito; mas nem por isso ela deixa de estar lá e tem suas consequências. De modo geral, a sensação que fica é que a busca por desvelar a construção social das ideologias parece contar objetivamente, salvo em caso de cinismo deliberado, ao lado do esclarecimento das injustiças envolvidas no processo de sua consolidação. Por outro lado, é preciso observar que as produções culturais do grupo de Sur e de seus concorrentes não são necessariamente reflexos de sua condição social e simbólica, fato que sugere a necessidade de outro passo, para o qual o livro de Miceli é indispensável.

Referências

ARRUDA, Maria Arminda. Pensamento brasileiro e sociologia da cultura: questões de interpretação. Tempo Social, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 107-18, 2004.

CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 71-5.

MICELI, Sergio. Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato. Novos estudos Cebrap, São Paulo, n. 77, p. 155-82, 2007.

_____. Vanguardas em retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

_____. Sonhos da Periferia. São Paulo: Todavia. 2018.

MICELI, Sergio; PONTES, Heloísa (orgs). Cultura e sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: Edusp, 2014.

SABATO, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Resumo:
Trata-se da resenha de Sonhos da Periferia, de Sérgio Miceli (Todavia, 2018).

Palavras-chave:
Sur; Sociologia dos Intelectuais; Sociologia da Cultura.

 

Abstract:
This is the review of Sonhos da Periferia, by Sérgio Miceli (Todavia, 2018).

Keywords:
Sur; Sociology of intellectuals; Sociology of culture.

 

Recebido para publicação em 14/11/2018
Aceito em 21/11/2018.