Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 2, jul./out. 2020
DOI: 10.36517/rcs.2020.2.a03

 

 

Margens, Mulheres e Maternidades:
tecendo diálogos interseccionais

 

Ingrid Lorena Silva Leite OrcID
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
lorenaleitte17@gmail.com

Leila Maria Passos de Souza Bezerra OrcID
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
leila.passos@uece.br

 

Introdução

O artigo traz articulações entre as categorias mulher, feminismos, interseccionalidades e maternidade(s), compreendendo múltiplas opressões vivenciadas por mulheres, especificamente, quando inscritas nas margens urbanas.1 Salientamos raça/etnia, gênero e classe social como categorias estruturantes das relações sociais no Brasil. Dessa forma, objetivamos refletir acerca das interseccionalidades entre estes marcadores de diferenças a partir de estudos feministas e pós-coloniais contemporâneos. Para tanto, realizamos, em termos metodológicos, pesquisa bibliográfica com abordagem crítica e qualitativa acerca da temática em tela.

Mesmo ao considerarmos a contribuição histórica dos estudos feministas para a criação de conhecimentos emancipatórios capazes de desnaturalizar opressões e apontar para a construção de sociedades democráticas, importa destacar que expressam uma irrefutável diversidade epistemológica. De fato, nem toda teorização feminista participa ou dialoga com perspectivas crítico-democráticas, sobretudo, ao reconhecermos que os estudos feministas emergem em determinados contextos, sob configurações e mudanças culturais e geopolíticas específicas, e são desenvolvidas na sociedade capitalista, capitalista, de modo a atingir determinados objetivos. Assim, os estudos feministas matrizados na perspectiva pós-colonial propõem construções de saberes, práticas e conhecimentos como ferramentas política e cultural, a sinalizar os contextos específicos e suas potencialidades.

De maneira complementar, estes dois campos de estudos — feministas e pós-coloniais — debatem criticamente as desigualdades e discrimizações entrelaçadas de gênero, classe social e raça/etnia,2 pautando olhares teóricos não ocidentais. Conforme assinalam Alencar e Castilho (2016), compreender a articulação entre estes marcadores de diferenças sociais auxilia na problematização do processo de preconceito que as mulheres – sobretudo, não brancas e residentes nas nossas margens urbanas – podem sofrer em seus cotidianos, a expressar densas desigualdades entremeadas por discriminações. Consideramos, ainda, que os discursos sobre a maternidade, ou melhor, acerca do “ideal de mãe”, tendem a reproduzir e potencializar opressões e estigmas projetados sobre estas mulheres, a exigir um enfoque crítico e interseccional para fins de sua desnaturalização e desconstrução teórico-política.

Para complementarmos a proposta deste artigo, focaremos nas categorias mulher, maternidade e margens por duas questões primordiais. A primeira, por tentarmos elucidar quais discursos reforçam a figura da mulher como uma pessoa dita “em segunda perspectiva”, tendo, como debate central, a subalternidade gerada mediante a dominação masculina.3 E a segunda, por buscarmos pensar nesses elementos a partir das maternidades, que aindam carregam múltiplas exigências e opressões (im)postas às mulheres, com foco na figura da “mulher-mãe” das/nas margens. Neste sentido, trouxemos a perspectiva das interseccionalidades para este diálogo. Reconhecemos, desta feita, a urgência em melhor compreender as interfaces entre desigualdades e diferenças, que permeiam e entrecruzam-se nas vivências de mulheres-mães, em especial daquelas em situação de pobreza4 e moradoras das margens urbanas brasileiras neste século XXI.

Buscamos dialogar, de forma interseccional, a partir das categorias mencionadas, tecendo um deslocamento da obrigatoriedade de conceituarmos a partir de um marcador específico para desenvolver tal análise. Para tanto, nossa abordagem inicia nos diálogos conceituais de estudos feministas, interseccionalidades e debates pós-coloniais, construindo entrecruzamentos a partir das noções de gênero e mulheres. Em seguida, adentramos as ideias de maternidades e margens urbanas, tendo como eixo norteador a perspectiva interseccional. Objetivamos elucidar as configurações de diferenciações sociais entremeadas a possíveis manifestações de desigualdades sociais em termos contextualizados histórica e culturalmente (HENNING, 2015).

Estudos feministas, pós-coloniais e as interseccionalidades: olhares cruzados sobre gênero e mulheres

Segundo Piscitelli (2002), o conceito de gênero desenvolveu-se no seio do pensamento feminista ocidental como uma expressão de ideias resultante da interação entre desenvolvimentos teóricos e práticas dos movimentos feministas, distantes de constituir-se em um todo unificado. As diversas correntes do pensamento feminista questionam a subordinação feminina perpetrada através do suposto “caráter naturalizado” decorrente das maneiras conforme a imagem da mulher foi construída sócio-histórica e culturalmente.

O pensamento feminista vem apreendido, portanto, no plural – pensamentos feministas – pois, conforme a articulação de onde se extraem os conceitos para serem criticados ou (re) construídos, percebemos múltiplas possibilidades de examinar ou tecer reflexões, tendo em vista, a pluralidade dos movimentos feministas e teorias feministas em curso (SCHUCK, 2015).

Entre 1920 e 1930, o pensamento feminista apresentou diversas reivindicações para garantir a igualdade das mulheres no exercício dos direitos, a problematizar as raízes culturais das desigualdades existentes. E logo, diferentes perspectivas desenvolvidas ao final da década de 1960, tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra, permearam as correntes do pensamento feminista, com copiosas visões sobre as origens da opressão e da subordinação feminina. Assim, conforme nos demais países, os estudos feministas no Brasil resguardam especificidades históricas e teóricas a serem apreendidas. Desta feita, faremos o exercício de situar como esses estudos e debates convergem e/ou divergem em momentos distintos e não lineares, sinalizando diálogos teóricos e empíricos diversos.

Uma das primeiras vertentes do feminismo foi o socialismo orientado, segundo bem adverte Piscitelli, “[...] pelas maneiras de opressão sexual advindas com a divisão do trabalho alicerçada no sexo e, com as formas de parentesco e família, com base material na estrutura de classes” (PISCITELLI, 2002, p. 3). Outras vertentes criticavam tal percepção, acentuando a existência de múltiplas formas de opressão nos países socialistas. Neste decurso, outra via analítica associava capitalismo e patriarcado, a estabelecer articulação entre produção e reprodução como igualmente determinantes das relações sociais.

Para abranger as opressões sobre as mulheres, o processo reprodutivo foi tomado como base do feminismo radical, posto que a função atribuída por esse quesito à mulher a tornaria “prisioneira da biologia”, dado que a gestação e os cuidados com a criança demandariam um período prolongado de dependência física, fazendo tal mulher ficar dependente do homem. Na perspectiva de libertação das mulheres das amarras da subordinação, seria necessário o feminismo radical considerar o controle da reprodução biológica, já que eliminaria o privilégio do homem e da própria distinção sexual.

No contexto brasileiro, Sarti (2001) destaca que a presença feminina na luta armada, nos anos 1960 e 1970 durante a ditatura militar, implicou, não apenas, se insurgir contra a ordem política vigente, mas concebeu uma transgressão ao que era alcunhado, à época, como “próprio” às mulheres. Sem uma proposta feminista deliberada, as militantes negavam o lugar tradicionalmente atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual que punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, entre outros aspectos sociais e culturais. Porém, as discussões sobre raça/etnia não tinham destaque nesse contexto.

O feminismo no Brasil constituiu intenso vínculo com a luta pela democracia. Para Schuck (2015), a produção teórica feminista não estava no mesmo ritmo da atuação dos movimentos sociais. Deste modo, torna-se necessário, na produção teórica, ressaltar o papel crítico precursor do feminismo nos processos de desconstrução e confrontação dos saberes patriarcais hegemônicos, principalmente, nos países latino-americanos, compreendendo a existência de especificidades que precisam ser refletidas e problematizadas.

Em termos da produção das feministas pós-coloniais, Pelúcio (2012) destaca ter sido marcada por indianas, marroquinas, colombianas e brasileiras, que têm pensado as relações e desigualdades globais, dando centralidade ao jogo complexo das relações de classe, raça/etnia, gênero, nacionalidade e orientação sexual, de forma contextualizada, e a partir de um saber situado. Segundo a supracitada autora:

Anunciar o lugar de fala significa muito em termos epistemológicos, porque rompe não só com aquela ciência que esconde seu narrador, como denuncia que essa forma de produzir conhecimento é geocentrada, e se consolidou a partir da desqualificação de outros sistemas simbólicos e de produção de saberes (PELÚCIO, 2012, p. 399).

Uma das autoras que contribui para a formação do campo dos estudos subalternos é Gaytri Spivak (2010), teórica indiana, que apresenta, em seu projeto teórico-político, a relação com sua necessidade biográfica de desfazer o duplo lugar de fala subalterna que lhe foi imposto, como mulher numa nação colonizada. Esta autora teoriza sobre a capacidade do (a) subalterno (a) de se representar e quais possibilidades tem de subjetivar-se autonomamente. Discorre, assim, sobre as implicações em conquistar um espaço de enunciação, de assegurar um lugar de discurso, um espaço de fala das mulheres.

As mulheres, na perspectiva de Spivak (2010), sobretudo, entre as “camadas subalternas” estariam ainda mais desprovidas de uma gramática própria para construir suas falas. As reflexões acerca de quais passos a desenvolver têm como objetivo trazer discussões de autoras não brancas e não ocidentais para as análises sobre os feminismos e estudos sobre mulheres, tendo um conjunto de enunciações teóricas ora reconhecidas como saberes subalternos, justamente pelos enfretamentos teóricos, metodológicos, éticos e epistemológicos que fazem aos saberes ditos hegemônicos (PELÚCIO, 2012).

Se, para Carvalho (2001), a arena discursiva enquanto o campo no qual se conduzia todo o debate sobre a subjetividade contemporânea, tanto pelo colonizador como pelo colonizado, estava centrada no Ocidente, Spivak (2010) refez essas coordenadas ao transportar a arena desse debate para outro lugar não eurocêntrico. Segundo afirma, a condição da subalternidade é a condição do silêncio, por isso, a autora assim utiliza o termo “representação”:

[...] distinguindo os dois sentidos da palavra, segundo seu significado em alemão – Vertretung e Darstellung: o primeiro termo se refere ao ato de assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra, e o segundo, a uma visão estética que prefigura o ato de performance ou encenação (SPIVAK, 2010, p. 13).

No discurso hegemônico eurocêntrico, o(a) subalterno(a) parece necessitar de um representante por sua própria condição de silenciado. Spivak (2010) considera o(a) sujeito(a) subalterno(a) como alguém que não pode ocupar uma categoria monolítica e indiferenciada por ser heterogêneo(a). Esta autora denota que a condição de silenciado do(a) subalterno(a) está associada ao pressuposto do caráter dialógico da relação: é preciso ter um ouvinte e um falante. Como a condição do(a) subalterno(a) é silenciada, este(a) não é ouvido(a). Daí a suposta exigência de um representante a ocupar o lugar de fala do(a) “subalterno(a)”.

No momento em que o(a) subalterno(a) entrega-se ao representante, às mediações da representação de sua condição, torna-se um objeto nas mãos de seu procurador no circuito econômico e de poder e, com isso, não se subjetiva plenamente. Por conseguinte, sua legitimidade passa a ser dada por outra pessoa, que assume o seu lugar no espaço público e político, especializando-o como lugar genérico do outro do poder. Segundo Carvalho:

Formular uma teoria da consciência deliberativa soberana e tingi-lo da condição específica de coparticipação da teórica feminista com os subalternos e insurgentes (no caso, as mulheres) eis uma síntese da agenda radical de Spivak (CARVALHO, 2001, p. 120-121, grifos nossos).

As feministas de países ditos “periféricos” localizados na América Latina, África, Oceania e Oriente Médio, tem reivindicado teorias próprias, em especial, a partir do início dos anos 1990. Emergia a necessidade de explicar outras forças que combinavam para constituir o lugar social e político não só das mulheres, mas dos (as) subalternos (as). O gênero torna-se um dos elementos apontados para essas explicações.

Nesse momento, feministas, com distintas formações, procuravam estratégias epistemológicas. Algumas estabeleceram um diálogo crítico com o pós-modernismo5 e o pós-estruturalismo,6 adotando parte de suas propostas desconstrucionistas para desvelar as redes de poder que escondem a aparente objetividade do conhecimento científico. O sujeito eurocêntrico era, então, posto em xeque pelas formulações que reivindicam um lugar de fala e notava a importância político-epistemológica de um “saber localizado” (PELÚCIO, 2012). Num contexto de tensões e construções teóricas, Pelúcio assinalou:

Se a diferença entre os sexos, por um lado, era politicamente potente por ser capaz de apontar para uma experiência subjetiva comum entre as mulheres, por outro essencializava essa percepção e dificultava a problematização das diferenciações entre as mulheres. A igualdade, por sua vez, com sua reivindicação por paridade e equidade, comprometia essas mesmas diferenças das quais eu falava há pouco, não reconhecendo as estruturas de dominação que estavam ali implicadas (PELÚCIO, 2012, p. 406).

Identificamos que os debates e discussões sobre mulheres e relações étnicos raciais foram travados no âmbito das produções feministas e, sobretudo, pós-coloniais. Isso porque, a busca por uma equidade de gênero para a mulher negra não se reduz apenas à desigualdade entre homem e mulher. Afinal, a luta igualmente ocorre no gênero, nos feminismos, entre brancas e negras (ALENCAR; CASTILHO, 2016), bem como envolverá outras diferenciações entre as mulheres, de maneira a demarcar a multiplicidade das estruturas de dominação implicadas nestas relações.

Para Hooks (2015), há evidencias de que o movimento feminista contemporâneo tem um aspecto unilateral do coletivo de mulheres, como se o cotidiano, as opressões e desigualdades de todas as mulheres fossem homogêneas, deixando à margem as particularidades e possíveis entrelaçamentos de raça/etnia e classe social. E, neste sentido, cabe salientar que mesmo o movimento negro ao final dos anos 1970 pautando demandas raciais, a discussão de gênero não era enfocada e, ao mesmo tempo, era suplantada por uma visão universalizante de mulher.

Esse contexto fez emergir a voz das mulheres negras em uma tomada de consciência oriunda da falta de representatividade, a conduzi-las a construir uma luta e agenda específicas a serem protagonizadas por mulheres de ambos os movimentos sociais: feminista e negro (ALENCAR; CASTILHO, 2016). As possibilidades de articulação entre gênero, raça e classe social estabeleciam novos e complexos desafios para movimentos feministas e negro. A necessidade de pensar nas intersecções destes marcadores de diferenças socioculturais foi basilar para o amadurecimento das reflexões e atuações políticas feministas. Por isso, os estudos pós-coloniais possuem relevância nesse debate.

Para melhor contextualizar a emergência da preocupação interseccional nos estudos feministas, importa situar que o termo interseccionalidade foi constituído, nos anos 1990, pela teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1991). Esta autora vislumbrava, então, tecer distintas formas de diferenciações sociais para desvelar a construção (ou não) de desigualdades sociais. Os diálogos no campo interseccional precisam ser marcados pelas experiências de sujeitas. Tal termo alude às reflexões e teorizações sobre a multiplicidade das diferenciações sociais que, articulando-se a gênero, raça e classe social, permeiam o social (PISCITELLI, 2008, p. 263).

Diante disso, há algumas ponderações a determinadas características que acentuam a utilização desse termo. No diálogo anglófono recente entre teóricas dos Estados Unidos e de alguns países da Europa, percebemos a perspectiva de hierarquizar tais eixos estruturantes a partir de contextos específicos. Adriana Piscitelli (2008), por exemplo, afirma que algumas autoras trabalham com o termo categorias de articulação, a lembrar que Avtar Brah (2006) utiliza ambas as categorias como raça, gênero, classe, concomitantemente, construindo um debate complexo e político. Outro termo que costuma ser utilizado por autoras como Patricia Hill Collins (2000) e Wendy Hulko (2009), entre outras, para remeter a questões congêneres, corresponde a entrelaçamento de opressões. Porém, em termos gerais, adotamos, nesse artigo, a categoria interseccionalidade, uma vez que, entre outras questões, parece ser a mais disseminada nos anos 2000. Afinal, a interseccionalidade potencializa processos de descobertas entre estruturas, sujeitos(as) e seus microcontextos de experiências. Segundo Henning (2015, p. 110):

Um notável giro é o deslocamento da obrigatoriedade de partir de um marcador específico para desenvolver a análise interseccional, para uma atenção localizada às configurações de diferenciações sociais e de possíveis desigualdades em termos contextualizados histórica e culturalmente. Tal giro, portanto, relativizaria o aspecto indispensável de, por exemplo, se recitar o “mantra dos três marcadores”, uma vez que se opõe à de partir de diferenças tidas como relevantes a priori, assim como se opõe à necessidade de criação de uma ampla generalizante e transcultural “teoria interseccional estrutural”, ao primar por análises localizadas e contingenciais.

Propomos construir e refletir sob as configurações e diferenciais sociais sem engendrar padrões fixos, tendo em vista a necessidade de questionar quadros epistêmicos rígidos e descolar a construção de olhares e saberes que possam dialogar com diversidades culturais, sociais e políticas.

Destacamos que ser mulher e, sobretudo, “ser mulher das margens”, envolve ir além de características físico-geográficas. Pressupõe um reconhecimento pessoal e social fundante das identidades, assim como a afirmação e a valorização social que possam tencionar imagens negativadas e discursos estigmatizantes historicamente projetadas sobre estas sujeitas e/ou sobre seus territórios vividos situados às margens. Alencar e Castilho (2016) sinalizam, por exemplo, que as marcas construídas pelo racismo na subjetividade negra desdobram-se não só na desqualificação social de mulheres negras e na desvalorização da cultura de matriz africana, mas também se interpõe no próprio reconhecimento político e social dos movimentos sociais e de suas demandas.

Segundo mencionado por Spivak (2010), o diálogo político e feminista envolve categorias subalternizadas, sobretudo, quando pensamos nessas discussões ao longo da formação social brasileira. As raízes históricas da situação da mulher, principalmente quando “mulher-mãe”, negra e trabalhadora, acirram discursos e práticas opressores, discriminatórios e desiguais.

A categoria mulher foi pensada e articulada nas raízes do feminismo radical, a destacar tanto as dimensões de classe e raça, como a perspectiva de que as mulheres são oprimidas pelo fato de serem mulheres. Esse último aspecto é fundante para a noção de feminismo, sobretudo, em termos políticos. Afinal, a categoria mulher foi incorporada às concepções biológicas e aos aspectos socialmente construídos por causa da ênfase outorgada aos aspectos biológicos, em razão da assentada dimensão essencialista (BADINTER, 1985). Piscitelli (2002) aponta que era constante, no final do século XX, objetar os “estudos sobre mulher” aos “estudos de gênero”, conforme enunciou:

As duas situações são compreensíveis quando se pensa na trajetória do pensamento feminista. Quero dizer, o conceito de gênero se desenvolveu no marco dos estudos sobre “mulher” e compartilhando vários de seus pressupostos. Mas, a formulação do conceito de gênero procurava superar problemas relacionados à utilização de algumas das categorias centrais nos estudos sobre mulheres. Isto fica claro quando prestamos atenção [...] no pensamento feminista ao introduzir o conceito de gênero no debate sobre as causas da opressão da mulher. (PISCITELLI, 2002, p. 8).

Os avanços dos pensamentos feministas, desde o século XX, suscitaram deslocamentos na ideia monolítica de opressão feminina universal. O conceito de gênero foi proposto como uma categoria de análise alternativa ao patriarcado,7 visando às relações sociais construídas.

Nestes marcos analíticos, a teórica feminista Joan Scott (1989) ganhou destaque. Para ela, a história do pensamento feminista rejeita a construção hierárquica da relação entre masculino e feminino, nos seus conjuntos e argumentos característicos. E, estabelece uma tentativa de descolar seus funcionamentos. Dessa feita, o feminismo se expandiu dentro deste quadro geral de mobilizações diferenciadas. Scott (1989) afirma que a palavra gênero foi utilizada a priori pelas feministas americanas, que queriam imbuir um caráter social às distinções baseadas no sexo. A palavra indicava também um aspecto relacional das distinções normativas das feminilidades.

Nas décadas 1970 e 1980, a categoria de gênero encontrou uma via teórica própria, principalmente, na perspectiva pós-estruturalista (SCOTT, 1989; PISCITELLI, 2002). Este estilo de pensamento foi evidente em reformulações das conceituações de gênero, sobretudo, nas relações de poder. As análises a partir dessa perspectiva mostraram os deslocamentos mencionados, a despeito da explicação da subordinação universal da mulher. Com uma posição crítica às relações binárias e às identidades fixas, Butler (2003) propõe uma pesquisa genealógica8 para evidenciar a construção da dualidade sexual, com os diversos discursos, nos quais o sexo aparece como culturalmente construído.

Uma genealogia política, advinda de ontologias de gênero, desconstruiria a aparência substantiva do gênero em seus atos característicos, localizaria e descreveria esses atos dentro de marcos compulsivos situados por forças diversas que “vigiam” a aparência social do gênero. E, assim, esses atos e também gestos seriam “performáticos”, no sentido em que a essência que, supostamente, expressam, são construções manufaturadas e apoiadas através de signos corporais e de outros meios. (PISCITELLI, 2008)

Compreendemos que a categoria gênero conecta-se com diversas modalidades de identidades constituídas discursivamente – de classe social, raciais/ étnicas, sexuais, entre outras – e, por tal motivo, torna impossível separar “gênero” das intersecções políticas e culturais nas quais é produzido e alicerçado. Desta forma, gênero não se constitui de forma coerente e contínua (PISCITELLI, 2002).

No século XXI, temos uma vasta produção de intelectuais que buscam eliminar a naturalização na conceituação da diferença sexual, pensando gênero de forma “não identitária”. Ao recusar concepções universalistas presentes e ao conceber gênero a partir das múltiplas configurações de poder existentes em contextos históricos e culturais específicos, temos uma abertura de perspectivas de pesquisas e estudos sobre gênero não centradas nas mulheres. As discussões sobre masculinidade e os estudos queer marcam essas linhas de pesquisa. Segundo analisa Piscitelli:

No âmbito das discussões feministas, porém, as formulações desconstrutivistas têm provocado reações negativas. Essas reações, que convergem em assinalar a incompatibilidade entre essas abordagens e a prática política feminista – “gênero sem mulheres?” – mostram questionamentos à “despolitização” da pesquisa acadêmica e um acirramento nas tensões entre produção teórica e mobilização política. (PISCITELLI, 2002, p. 17).

A concepção de mulher no século XXI está voltada à historicidade, não apresentando um sentido definido. Trata-se de uma complexa rede de aspectos não determinados, mas descobertos. Alguns aspectos exerceriam um papel dominante dentro dessa rede por longos anos, em contextos, o que não significa que possam ser universalizadas. Por isso, não se trata de pensar em “mulheres como tais”, ou “mulheres nas sociedades patriarcais”, mas em “mulheres em contextos específicos” (PISCITELLI, 2002, p. 21, grifos nossos).

Neste sentido, considerando que “nenhuma mulher nasce mãe, torna-se mãe” (MESTRE, 2013, p. 208), identificamos a necessidade de compreender as discussões e as análises empreendidas acerca das mulheres mães, pobres, residentes das margens urbanas e não brancas, de maneira a problematizar as significações de maternidade(s) socialmente instituídas. Questionamos, desta feita, se os discursos acerca do “ideal de mãe” reproduzem e potencializam opressões e estigmas sobre as mulheres, sobretudo, em situação de pobreza, não brancas e residentes nas margens urbanas brasileiras nestes anos 2000. Cabe trazer a este diálogo as reflexões de Badinter (1985), ao destacar certa perpetuação do “mito do amor materno”, como uma construção social iniciada no século XVIII, que enfoca o ideal da “boa mãe”: aquela que se dedica, exclusivamente, ao filho; ama-o incondicionalmente; a mãe como ser de amor, dedicação, perdão, abnegação.

Para a supracitada autora, a partir de uma lógica dominante e de valores sociomorais estabelecidos, os ditos papéis da mãe, do pai e do(as) filho(a) são socialmente determinados. Nas palavras de Badinter: “Segundo a sociedade valorize ou deprecie a maternidade, a mulher será, em maior ou menor medida, considerada uma boa mãe” (BADINTER, 1985, p. 25). Ressalta que, neste viés, há uma surda luta dos sexos, o conflito entre homem e mulher, que, muitas vezes, é compreendido pela dominação de um sobre o outro. Esta autora aponta todos os esforços investidos na construção de discursos e práticas de valorização e de necessidade de uma maternidade moldada sob os padrões da época, perspectiva vigente na sociedade capitalista ocidental. A questão do amor materno vem carregada de supostos “universalismos” e generalizações.

Não há, portanto, necessidade masculina em mostrar sua superioridade, visto que, já ocupa tal espaço e desempenha o papel sociocultural de dominador. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode, assim, ser vista como justificativa naturalizada da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão (sexual) do trabalho (BOURDIEU, 2012).

Essa divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, em um aspecto normalizado, naturalizado, a ponto de ser forçosa. A divisão está presente, ao mesmo instante, em estado objetivado nas coisas – na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas” – em todo o mundo social; e em estado incorporado, nos corpos e nos habitus9 dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, conforme enuncia Bourdieu (2012). A força da ordem masculina evidencia-se no fato de que dispensa justificação. A perspectiva androcêntrica impõe-se como neutra e prescinde de enunciar-se em discursos para legitimá-la. A ordem social funciona como uma grande máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina10 sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos.

Frisamos que, em determinados contextos históricos, os discursos e práticas que permeiam a categoria maternidade, podem reforçar opressões sobre as mulheres. Porém, essas opressões ocorrem de formas diferenciadas quando trazemos para o debate as diferenciações de classe social, raça e margens. A relevância dos apontamentos feitos para a compreensão das significações de maternidade, a exigir uma abordagem interseccional e situada, tendo em vista que as vidas das mulheres, pobres, não brancas, principalmente, aquelas no exercício da maternidade, estão imbricadas aos eixos estruturantes da sociedade brasileira.

Para Piscitelli (2008), perceber as articulações entre as diferenciações sociais permite refletir “sobre as margens de agência concedidas aos sujeitos, isto é, as possibilidades no que se refere à capacidade de agir, medida socialmente” (PISCITELLI, 2008, p. 207). As interseccionalidades são, por fim, aportes teóricos importantes na captura de consequências da interação entre inúmeras formas de subordinação, as quais podem superar a noção de superposição e/ou hierarquizações de opressões e explorações.

Mulheres e margens: aproximações interseccionais

Ao (re)pensar a categoria mulher, após um breve diálogo com os estudos feministas e pós-coloniais evidenciamos que qualquer abordagem essencialista distorce, necessariamente, conhecimentos/saberes, experiências, contextos e conceitos. Primeiro, porque toma como imutável e natural o que é sociohistórico e culturalmente construído – com foco nas relações entre os sexos e as suas “funções” sócio simbólicas; segundo, porque tende a generalizar o que não pode ser homogeneizado; e, por último, por definir como ponto de referência um centro auto imaginado. Segundo Bahri (2013), as mulheres foram definidas, historicamente, como outro pelos homens, que se imaginam o centro a partir do qual delineiam as “margens”. Em similaridade, muitas mulheres do Norte imaginaram-se e determinaram-se como sendo o centro, a remeter para as margens muitas outras mulheres identificadas como do Sul, nos sentidos epistemológicos e político-culturais destas expressões.

Para Bahri (2013), há múltiplas opressões sofridas pelas mulheres, principalmente, em se tratando de mulheres em situação de pobreza pluridimensional, moradoras das margens urbanas e não brancas, que possuem sua identidade moldada e marcada pela ideia de inferioridade atribuída à cultura africana e/ou afrodescendente nesta sociedade brasileira, ainda sob a matriz político-cultural hierárquico-conservador e autoritário (TELLES, 2010), na qual os machismos/sexismos e racismos entrelaçam-se e tendem a reforçar traços de colonialismos desigualdades e discriminações seletivamente (im)postos a determinados indivíduos e/ou grupos sociais.

Ao travar um debate interseccional, compreendemos que as mulheres em situação de pobreza e residentes nas margens urbanas estão imersas neste sistema capitalista que, deliberadamente, as invisibiliza socialmente como sujeitas. Esta subalternidade tem raízes histórico-culturais profundas e, aparentemente invisíveis, tornando-se difícil desmontar as estruturas de opressão/dominação impetradas às mulheres, com enfoque ao lugar socialmente projetado e impelido a estas sujeitas.

Dessa forma, ao articular o conceito de maternidades na perspectiva plural, buscamos nos aproximar da proposta analítica de Bell Hooks (2015) quando destaca que fatores como classe social, raça, religião, preferência sexual criam uma diversidade de experiências que determina até que momento o sexismo e/ou o racismo será uma força opressiva na vida de cada mulher. Afinal, conforme salienta esta autora: “[...] ser oprimida significa ausência de opções" (HOOKS, 2015, p. 197, grifos nossos). No entanto, essa”ausência de opções" pode se tornar lugar de resistência, quando pensamos as maternidades, com experiências situadas que envolvem sujeitos, disputas simbólicas, conquistas, como também englobam opressões e violências. Esses elementos sociais, culturais e políticos não emergem ou se articulam através de um único marcado de raça, classe ou gênero, mas sim a partir da dinâmica da vida social que envolve diversos marcadores de diferenças sociais a partir dos microcontextos de existências das sujeitas envolvidas. Aqui, o desafio está em como tecemos o diálogo interseccional sem estabelecer outras hierarquias, tendo vista, a necessidade de compreender os contextos específicos nos quais determinados marcadores sociais se expressam.

Consideramos urgente investir na construção de perspectivas teórico-metodológicas capazes de problematizar e apreender as dinâmicas e estruturas desta dominação/opressão, com vistas tanto ao deciframento do real, como à criação de caminhos de resistências e superação das desigualdades e das discriminações vivenciadas por mulheres/mulheres pobres, não brancas em seus territórios vividos nas particularidades brasileiras.

Nesse contexto, é fundamental pensar e articular a discussão de raça à compreensão das significações das maternidades, como também à pobreza e à violência urbana,11 alicerçada na perspectiva das interseccionalidades. Em especial, porque a questão racial é estruturante nas relações sociais brasileiras articulada às dimensões de classe social e de gênero, com considerável relevância ao enfoque dos territórios e suas respectivas territorialidades. Construir um debate interseccional possibilita compreender um sistema formado de múltiplas e heterogêneas “hierarquias globais”, “heterarquias”; bem como oportuniza definir, orientar e diferenciar formas de dominação e exploração política, epistêmica, econômica, espiritual, linguística, sexual e racial dos indivíduos na sociedade moderna/colonial (BAHRI, 2013). Traços a ganhar particularidades a serem compreendidas na vida brasileira contemporânea.

Em decorrência das diferenças e, de maneira conexa, das desigualdades entre as mulheres, as violências tendem a agravar-se de acordo com o contexto em que vivem e poderão ser potencializadas em função do entrecruzamento de suas marcas geracionais, raciais, de sua posição na estratificação social e de suas sexualidades. Esta perspectiva interseccionada permite compreender a complexidade e as ambiguidades. Destacamos que há conflitos quando trazemos para os debates categorias que possuem particularidades históricas, sobretudo em relação às maternidades, a demandarem situar e refletir acerca das contradições que atravessam e constituem esses diálogos críticos e plurais.

A ideia de maternidade, comumente concebida em nosso contexto social, reflete a assimetria instaurada entre os sexos. Tal assimetria condiciona as figuras femininas e a vulnerabilidade social das mulheres nos diferentes contextos socioculturais do nosso país. Porto (2011) nos chama a atenção para a reprodução social destes comportamentos e discursos – a naturalizar a assimetria nas relações nas quais estão associadas a percepção e a hierarquização da diferença – e para a principal construção dessa assimetria, tanto por sua antiguidade, como pela universalidade pretensa, que se estabelece entre os sexos. Importa ressaltar que Sarti (1994) nos alerta para compreendermos que o substrato fundamental da construção da figura feminina no contexto de famílias pobres, sobretudo residentes das margens urbanas, concerne no trabalho doméstico que, muito além do sentido concreto das atividades cotidianas, significa, junto com a maternidade, o cerne central da definição de “ser mulher-mãe”. Essa definição ocorre nesse mundo social recortado pela diferenciação de gênero, classe social, raça e território.

Ao mencionar a noção de margens urbanas entremeadas às relações étnico raciais, abrimos espaço a reflexões sobre as desigualdades sociais que marcam a vida de milhares de mulheres, mães, não brancas e moradoras de espaços ditos “periféricos” das cidades. Vale salientar que, no capitalismo ocidental, os acessos às oportunidades, às políticas públicas sociais, aos direitos materializam-se de formas diferenciadas ao considerar os recortes de classes sociais, gêneros e etnias/raças. Desta feita, as desigualdades sociais e a pobreza pluridimensional associadas às discriminações assumem contornos singulares adensados para as populações inscritas nas margens ora compreendida na acepção reapropriada por Telles (2010: p. 33-34) da noção original de Das e Poole, a saber:

[...] produção das ‘margens’ que não correspondem a definições territoriais, periferia ou territórios da pobreza, pois elas se deslocam, se fazem e refazem conforme mudam os alvos, as conveniências, o foco das atenções dos representantes da ordem, em condições concretas de tempo e espaço[...] São espaços produzidos pelos modos como as forças da ordem operam nestes lugares, práticas que produzem a figura do homo sacer em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. No entanto, são também lugares em que a presença do Estado circunscreve um campo de práticas e de contracondutas, no qual os sujeitos fazem (e elaboram) a experiência da lei, da autoridade, da ordem e seu inverso, em interação com outros modos de regulação, microrregulações, poderíamos dizer, ancoradas nas condições práticas da vida social. [...] a noção de margem é sobretudo importante pela perspectiva que abre para descrever e discutir ‘a exceção que se tornou a regra’, para retomar aqui a formulação famosa de Benjamim e que Agamben atualiza em seu O Poder Soberano e a vida nua" (TELLES, 2010: p. 33-34; grifos nossos).

Situações adensadas nas nossas margens marcadas por violência urbana, criminalização da pobreza e pela exceção transmutada em regra, em especial, (re)produzida pelo Estado em sua face penal-punitiva, que reitera, cotidianamente, parâmetros racializados de seleção dos alvos prioritários das correlacionais perspectivas de biopolítica (FOUCAULT, 2015) e necropolítica (MBEMBE, 2018) em expansão neste século XXI. Assim, cabe relembrar que as relações étnico-raciais representam, no Brasil, vetores condicionantes para (des)classificar socialmente os indivíduos das/nas margens, conforme evidenciado em diversos espaços do cotidiano: na casa, na escola, no trabalho, na universidade, nos espaços públicos, sobretudo, em seus territórios de moradia. Aqui, a discussão das margens urbanas é fundamental, pois como assinala Bezerra (2015), esses espaços urbanos encontram-se submetidos a “[...] acusações sócio morais e criminalizações a priori (re) projetadas sobre seus moradores” (BEZERRA, 2015, p. 14).

Essas acusações, como destaca a autora, podem reproduzir esquemas classificatórios que afetam diretamente a vida dessas pessoas, cerceiam suas oportunidades de existência e os mantém presos a determinados lugares sociais minados por processos de estigmatizações e segregações socioterritoriais. As figurações públicas negativadas projetadas sobre espaços das/nas margens – a denotarem estigmas, sujeição criminal (MISSE, 2010) e violências materiais/simbólicas impelidas aos seus moradores – estão associados aos eixos estruturantes dos processos sociais brasileiros, a merecerem futuros aprofundamentos, quais sejam: nossa raiz escravocrata e seus desdobramentos no(s) racismo(s) em curso; as desigualdades de gênero, sob o enfoque do patriarcado; a construção sociocultural das classes sociais associada à hierarquização das relações sociais no capitalismo dependente/subalterno à brasileira.

Por isso, urdir uma perspectiva crítica e situada, conforme enuncia Schuck (2015), exige a tessitura de uma análise acerca da produção teórica feminista brasileira entrelaçada aos estudos pós-coloniais para apreender estes entrecruzamentos entre desigualdades e diferenciações. Esta autora apreende a importância das teorias feministas para tencionar a normatização patriarcal, entender opressão e exploração das mulheres, bem como lutar para superá-las, a exigir a identificação de quais estruturas sociais e processos de interação mantêm a dominação masculina e a subordinação feminina. Em sentido complementar, Schuck (2015) ressalta a relevância das concepções críticas às colonialidades do poder/saber, às subalternidades múltiplas, à hierarquização entre as mulheres, às opressões patriarcais/raciais/coloniais/capitalistas, de maneira a trazer, ao debate público, a pluralidade de sujeitas/os feministas, novos campos discursivos pós-coloniais. Estas nos parecem chaves analíticas profícuas às reflexões sobre feminismos e “mulheres em contextos específicos”, a considerar as particularidades da vida brasileira neste capitalismo mundializado dos anos 2000.

Considerações finais

Ao realizarmos as articulações entre as categorias mulher, feminismos, interseccionalidades e maternidade(s), compreendemos as múltiplas opressões vivenciadas por mulheres, especificamente, quando inscritas nas margens urbanas. Interpretamos que na realidade brasileira as vidas dessas mulheres atravessam categorias complexas como raça/etnia, gênero e classe social, elementos estruturantes das relações sociais. Dessa forma, destacamos que as reflexões acerca das interseccionalidades entre estes marcadores de diferenças a partir de estudos feministas e pós-coloniais contemporâneos, nos possibilitaram analisar as opressões, bem como as resistências.

Os estudos pós-coloniais, ao problematizar tais categorias e apontar para as interseccionalidades, conseguem avançar nesta perspectiva. Estas discussões elucidaram diversos questionamentos sobre a forma como os dispositivos de poder produzem diferenças e classificações, a fomentar outras sensibilidades, deslocamentos e reinvenções no campo das teorias sociais e práticas político-culturais.

Desta feita, as opressões dialogam e se anunciam de formas diversas nas trajetórias de vidas das mulheres, que possuem em seus corpos e expressões discursos e práticas assinaladas pela ideia socialmente construída de inferioridade/ o outro do masculino. Esses diálogos se acirram em contextos nos quais se entrecruzam estigmatizações e segregações sócio-territorias, opressões de gênero/ etnia e raça, desigualdades sociais e econômicas e racismos que são agudizados nas experiências de sujeitas residentes nas margens das cidades. Tecer a perspectiva interseccional é apreender que as múltiplas diferenciações – raça, gênero e classe social – envolvem e ultrapassam formas de violências e subordinações, posto que podem constituir formas de resistências coletivas cotidianas.

As experiências das mulheres, mães, em situação de pobreza e não brancas, inscritas nas margens, no que diz respeito às suas maternidades, tornam-se invisíveis sem uma abordagem interseccional, principalmente na perspectiva de compreender a realidade que vivenciam. Por isso, evidenciamos que, os saberes ditos subalternos, assinalam a compreensão de participar do esforço para prover outra gramática sociocultural e política, outras referências analíticas, outras epistemologias, que não aquela impelida como “verdadeira”, ou até mesmo única digna de ser aprendida e reproduzida sobre as questões e ideias sobre feminismos e gêneros e maternidades.

Os debates, ideias e reflexões que perpassam essa discussão são inesgotáveis. Este artigo configura-se, portanto, em tentativa de contribuir na problematização e compreensão de contextos de experiências de mulheres das e nas margens urbanas, produzidas nos diálogos críticos e plurais com os estudos feministas e pós coloniais, sob o enfoque das interseccionalidades.

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  1. Desta feita, as margens urbanas fazem alusão às reflexões de Vera Telles (2010) para melhor explicitar os espaços produzidos pelos modos como as forças da ordem operam nesses lugares ditos periféricos, em práticas produtoras do homo sacer (AGAMBEN, 2004) em situações imbricadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. A noção de margens torna-se relevante para compreender as dinâmicas e fronteiras borradas e embaralhadas que atravessam e ultrapassam as margens de distintas cidades contemporâneas (BEZERRA, 2015).

  2. O termo raça possui dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela sociologia. Dessa forma, raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas pela sociologia ou pelas ciências sociais, pois, raças são efeitos de discursos sobre origem de um grupo. Há ainda discursos sobre origens de um grupo que enfatizam lugares. O conceito de etnia possibilita a percepção dos indivíduos em sua diversidade sócio histórica e cultural. Para tanto, a discussão das relações étnico-raciais possui contornos particulares para as mulheres não brancas na realidade brasileira contemporânea (GUIMARÃES, 2003).

  3. Bourdieu (2012) vê a dominação masculina, na forma como é imposta e experienciada, o exemplo daquilo que denomina de submissão paradoxal, efeito do conceito de violência simbólica, sendo violência suave, insensível, invisível à suas próprias vítimas que se exerce, especialmente, pelas vias genuinamente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou mais especificamente, do desconhecimento, do sentimento.

  4. As abordagens que consideram as desigualdades sociais como causas da pobreza, aproximam as discussões da temática à pobreza relativa, enquanto as explicações que consideram o atendimento das necessidades biológicas referem à pobreza absoluta. Silva (2009), por exemplo, define pobreza em dois aspectos: pobreza absoluta, relacionada ao não atendimento das necessidades mínimas para reprodução biológica e pobreza relativa que diz respeito à estrutura e à evolução do rendimento médio de um determinado país. Evidenciamos, assim, a perspectiva multidimensional da pobreza.

  5. O conceito pós-modernidade é permeado de nuances. Desde os anos 1980, o argumento de estarmos vivendo um momento de crise nas relações sociais e na “cultura” apareceu entre os neoconservadores preocupados com a crise de legitimidade pela qual passavam as “democracias ocidentais”. O momento “pós-moderno” – significado como fase histórica do capitalismo tardio e seu “reflexo” no pensamento — também é representado como deterioração: deterioro de possibilidades críticas e contestatórias, triunfo final de uma sociedade capitalista, sem mais capacidade de manter uma oposição política e cultural autêntica. Para alguns autores como Almeida (1999), a pós-modernidade pode ser compreendida como uma crítica à modernidade, sobretudo, ao declarar que não há lugar para as grandes narrativas.

  6. Segundo Williams (2013), o pós-estruturalismo é considerado um movimento que teve iniciou 1960 no âmbito da filosofia. Este movimento busca compreender os limites e o papel do conhecimento. Ressaltamos que a palavra limite é compreendida no sentido de indicar estabilidade relativa num dado espaço. Em poucas linhas, o pós-estruturalismo projeta o limite sobre o interior – não é confiável- do conhecimento e sobre a nossa compreensão elaborada da verdade e do bem. Esse movimento rastreia os efeitos de um limite estabelecido como diferença.

  7. Para Piscitelli (2002) em termos de práticas políticas e teóricas algumas feministas trabalharam com uma ideia geral e unitária de poder, o patriarcado, numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deveria ser visto como uma relação política. Porém o conceito patriarcado foi esgarçado no discurso político e na reflexão acadêmica, sem que fossem incorporados aspectos centrais de seus componentes, sua dinâmica e, sobretudo, seu desenvolvimento histórico.

  8. Foucault (2015) aponta a genealogia como um modo de problematizar as práticas sociais. Segundo Foucault (2015), a perspectiva genealógica pode ser compreendida como uma proposta para tentar escapar de todo ponto de vista causal, problematizar as práticas de poder, subjetivação e discursivas que construíam e produziam um modo de ser, pensar, agir e sentir específicos a uma época, promovendo a dispersão dos acontecimentos, questionando as relações de saber-poder que produziram realidades, saberes e subjetividades.

  9. Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e, sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de pratica-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes (BOURDIEU, 2014).

  10. Bourdieu (2012) vê a dominação masculina, na forma como é imposta e experienciada, o exemplo daquilo que denomina de submissão paradoxal, efeito do conceito de violência simbólica, sendo violência suave, insensível, invisível à suas próprias vítimas que se exerce, especialmente, pelas vias genuinamente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou mais especificamente, do desconhecimento, do sentimento.

  11. Perspectiva interpretativa sobre violência urbana, enunciada por Silva (2004) que trata da violência urbana, compreendida como um conjunto de práticas sociais que adquirem sentido para os atores em suas experiências vividas na cidade, cujo núcleo de sentido consensual é o uso da força física no crime. Para o autor, a violência urbana, como representação, indica um complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime.

Resumo:
Este artigo objetiva refletir sobre articulações entre as categorias mulher, feminismos, interseccionalidades e maternidades, compreendendo as múltiplas opressões vivenciadas por mulheres, sobretudo aquelas inscritas nas margens. Considera-se raça/etnia, gênero e classe social como eixos estruturantes que balizam as relações sociais no Brasil. Diante disso, construímos um diálogo contemporâneo e crítico entre e com categorias fundantes que perpassam uma perspectiva interseccional. Para tanto, em termos metodológicos, realizamos pesquisa exploratória, alicerçada no estudo bibliográfico com uma abordagem qualitativa.

Palavras-chave:
Gênero; maternidades; interseccionalidades; margens.

 

Abstract:
This article aims to reflect on articulations between the categories woman, Feminisms, Intersectionalities and Maternities, comprising the multiple oppressions experienced by women, especially those inscrited in the margins. It is considered race/ethnicity, gender and social class as structuring axes that balize social relations in Brazil. Therefore, we built a contemporary and critical dialogue between and with founding categories that permeate an intersectional perspective. Therefore, in methodological terms, we conducted exploratory research, based on the bibliographic study with a qualitative approach.

Keywords:
Gender; maternity; intersectionalities; margins.

 

Recebido para publicação em 27/04/2019
Aceito em 06/11/2019