Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 3, nov. 2020/fev. 2021
DOI: 10.36517/rcs.2020.3.r02

RESENHA

 

 

“A elite do atraso”:
revisitando a história do Brasil

 

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: LeYa, 2017.

 

 

Nelson Lellis Ramos Rodrigues OrcID
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil
nelsonlellis@gmail.com

 

O impeachment da presidente Dilma Vana Rousseff foi objeto de exploração científica em diferentes áreas. Deu-se ali o avanço, por editoras engajadas ou não, de produções críticas1 e/ou propagandistas acerca do jogo de classes e dos trâmites da justiça quanto aos julgamentos de políticos.2 A obra A elite do atraso, de Jessé Souza, contribui neste cenário ao revisitar a história do Brasil a fim de explicar os dados correntes trazendo à baila bastidores da dominação sócio-política no país, envolvendo, consequentemente, o impedimento da presidente em agosto de 2016.

Wladimir Pomar (2018) já havia destacado que A tolice da inteligência brasileira exagera quando aborda o conceito de escravidão, tendo em vista que esta sociedade não teve apenas um modelo, bem como não se manteve de forma estática ou imutável. Para este jornalista, é preciso ter como base a análise das relações de produção existentes verificando suas mudanças no espaço e no tempo para categorizar uma sociedade. São essas relações econômicas e sociais que não permitem reducionismos, como no caso da escravidão, por Souza e, sobre os estamentos, por Raymundo Faoro.

Ignorando a crítica acima, Souza retoma em A elite do atraso a ideia da escravidão. Em resenha, Ruy Braga (2018) observara seu excesso retórico quando declarou que a escravidão no Brasil nunca foi efetivamente compreendida nem criticada. No livro, Souza procurou: a) desmontar as categorias de análise até hoje reproduzidas por intelectuais tanto de direita quanto de esquerda para se entender a sociedade brasileira e; b) demonstrar que a desigualdade brasileira deve ser refletida a partir da escravidão e não a partir da herança de um Estado corrupto. Lançando mão de uma das principais obras do pensamento social brasileiro, a saber, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, Souza aponta o sucesso desta obra clássica por conter ali uma “narrativa totalizadora” e uma legitimação “para uma dominação oligárquica e antipopular com a aparência de estar fazendo crítica social” (p. 8). Contudo, o conceito de patrimonialismo utilizado – para definir a política nacional – por Sérgio Buarque (seguido por Raymundo Faoro [com definições históricas] e Fernando Henrique Cardoso [que o transforma em teoria]), é apontado, em A elite do atraso, como uma ideia para legitimar interesses econômicos de uma elite que, além de dominar o mercado, é a real fonte do poder e da corrupção no país, gerando, assim, extrema desigualdade social.

Para tal diagnóstico, Souza reconstrói a história seguindo três eixos temáticos: a) compreender a escravidão como conceito diferente do que fora adotado por Sérgio Buarque; b) perceber a luta de classes não de maneira economicista, mas como construção sociocultural e; c) ler, acuradamente, o momento atual com seus desdobramentos na esfera política, tendo como foco o poder da elite direitista que reproduz a opressão sobre a “ralé brasileira” – termo que já havia sido trabalhado no livro A ralé brasileira: quem é e como vive apresentando o objeto não numa perspectiva econômica, mas sociocultural, onde a figura do escravo é interpretada a partir da relação social de produção.

Três importantes conceitos são trabalhados por Souza a fim de problematizar e traçar o perfil do brasileiro: de patrimonialismo; de personalismo; de populismo. Se sugere também pensar numa historiografia desenvolvida na USP por Francisco Weffort, como a obra O populismo na política brasileira (1980), dentre outros.

Souza localiza a teoria do populismo na base do liberalismo conservador. Os trabalhos de Weffort seriam, em sua visão, fontes onde se deslegitimariam os interesses populares ao, supostamente, “negar racionalidade”, aos interesses das massas (“racismo de classes”) por tornar qualquer liderança popular suspeita de manipulação. Braga critica a leitura de Souza afirmando que “a chave explicativa do populismo em Weffort não é a manipulação das massas pela liderança carismática”, antes, entende que o populismo é resultado das pressões de trabalhadores sobre o Estado, sendo, consequentemente, produto da “traição das massas populares”. Braga (2018) enfatiza que “Weffort compreendeu as massas populares como sujeitos de sua história, enquanto que Souza silenciou a agência política dos pobres em sua noção de ‘ralé de novos escravos’”.

Os dois primeiros capítulos tratam da interpretação hegemônica, a chamada “história oficial”, onde se entendia que a corrupção se dava pela transmissão cultural de Portugal. Souza afirma que o indivíduo é constituído como ser humano pelas forças de instituições e não por parentesco consanguíneo. A família, a escola, a forma econômica, a forma que a justiça é distribuída, a forma política... este é o conjunto de instituições que molda o ator social.

A escravidão, portanto, seria a maior instituição promotora deste ethos. Neste caso, a crítica é posta: ao contrário do que se pensou e reproduziu a história como “história oficial brasileira”, a “instituição escravidão” não era determinante na sociedade portuguesa, isto é, os portugueses não recriaram o seu país no Brasil – o que já havia sido considerado por outros autores do pensamento social, como Florestan Fernandes. Fora daquela reconhecida “história oficial” que escritores brasileiros, tais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, inventaram que os norte-americanos eram superiores. A fim de ratificar sua análise comparativa e histórica, Souza trouxe o autor Talcott Parsons que caminhava pela teoria da modernização e que construía uma imagem de superioridade dos americanos à época; enquanto, diferentemente dos EUA, no Brasil, se desenhava a imagem do “vira-lata”.

Dois fatores que sugerem uma avaliação. Primeiro: embora seu desejo fosse ler a atualidade, acaba por ignorar o tempo e os lugares históricos dos autores que critica. Outro ponto é a tradição-invenção, onde o autor identifica a visão liberal e pró-americana na figura de Sérgio Buarque. Contudo, na obra Raízes do Brasil, o autor se contrapõe ao restante da Europa continental (onde as relações comerciais na Espanha e em Portugal seriam mais impessoais) e não ao anglo-saxão: “A verdade é que o inglês típico não é industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia [...]. Tende [...] para a indolência e para a prodigalidade, e estima, acima de tudo, a ‘boa vida’”. Neste aspecto, a tese de Souza não fora capaz de perceber esta declaração que lançaria por terra o título dado a Sérgio Buarque de alguém pró-EUA.

Os capítulos que fecham o livro descrevem como intelectuais pensaram o Brasil a partir do liberalismo conservador. A esquerda teria sido colonizada pelo discurso da direita e, por isso, não esboçara nenhuma outra teoria capaz de responder “de onde viemos?”, “quem somos”, “para onde iremos?”. Para consubstanciação de sua tese, num breve roteiro, Souza mostra que na década de 1920, a elite do dinheiro, com suas terras e fazendas de café no interior e suas indústrias na capital paulista, havia perdido seu poder político para Getúlio Vargas. Surge, então, o tenentismo (1922), que tenta conquistar a classe média. Dez anos depois, uma nova reconquista militar fracassa. O autor compreende que a função da classe média se torna uma espécie de capataz da elite onde todos os seus empregos têm a ver com supervisão e controle. Concomitantemente, a classe média seria o lugar onde se tem o acesso à leitura e formação, mas o conhecimento plural, sua libertação de consciência. Em sua visão, a elite do dinheiro se dispõe a dominar “pela cabeça” através de jornais, imprensas, editoras etc. Estes são os poderes simbólicos. A imprensa não constrói ideias, mas as distribui.

Para o autor, a USP foi construída para cumprir o papel de disseminar ideias com as teses do patrimonialismo e populismo. Irene Cardoso (1982) documentou acerca do grupo de influência política na cidade de São Paulo, chamado “grupo do Estado”. Os intelectuais orgânicos da oligarquia cafeeira faziam parte da classe dominante e eram membros dessa “comunhão paulista”. A ambição deste grupo era fazer com que o plano estadual se coadunasse com sua ideologia política. A USP, portanto, na pesquisa de Cardoso, seria a tentativa de regenerar os costumes políticos nacionais superando a crise das oligarquias. A reconstrução nacional implicaria numa reconstrução educacional em busca da defesa da democracia utilizando-se de “cruzadas anticomunistas” (CARDOSO, 1982, p. 21-23).

Souza reconhece a USP, com sua formação moralista, como o capital cultural por onde a classe média é fisgada. Acredita que a classe média é vítima em todo o processo, mas, ao mesmo tempo, um braço responsável por ajudar a ampliar a desigualdade social. Manipulada pela mídia, tornou-se seletiva na operação Lava-Jato. O alerta de Souza se dá neste campo: a fim de esconder a verdadeira corrupção da qual o país é vítima, desvia-se a atenção para o patrimonialismo enquanto a nação é subtraída por transações globais. A lógica do funcionamento do mercado e a elite dominante se tornam invisíveis nesta conjuntura; apenas a esfera estatal tem notoriedade.

Neste ambiente, o ator social não consegue compreender o que produz e como produz – ou o que é produzido e como é produzido. Ou seja, não é possível enxergar na esfera pública as relações de subordinação. Souza, neste ponto, exorta que são as falsas ideias que fazem as pessoas de tolas. E o efeito de tolos são o produto do esforço para quem os engana e oprime.

Mais uma vez Braga contesta o que Souza chamou de “nova classe média” com base nos dados de sua pesquisa empírica (a partir da teoria bourdieusiana). A “ralé de novos escravos” (babás, faxineiras, garis, empregadas domésticas) seria uma classe incapaz de competir por capitais culturais e econômicos e serviria como objeto de exploração pela classe média. Além disso, politicamente seria uma classe passiva, dependente de condições políticas capazes de mitigar sua exclusão social. Braga (2018), em sua resenha, aponta que este é o projeto lulista desenhado por Souza: o de “redimir essa classe da escravidão contemporânea. Ao mesmo tempo, grande parte da resistência da classe média aos governos petistas adviria daí. Afinal, a sobrevivência de seus privilégios dependeria da exploração da ‘ralé’”.

Por fim, A elite do atraso aponta críticas importantes em relação às obras que sustentaram a imagem do país sem nenhuma confrontação, revisitando sua história e demonstrando que a crise política e a dominação pública pela elite do atraso são as verdadeiras responsáveis pela desigualdade social. Por outro lado, mostra-se também, como apontado por Ruy Braga, como uma obra propagandista da esquerda (mais especificamente: o lulopetismo), onde, inclusive, se omite quaisquer equívocos do próprio PT. Declarações como a da deputada federal e presidente do PT-DF, Erika Kokay, parecem denunciar tal relação: “Jessé Souza é um dos maiores intérpretes do Brasil atual”.3

Ainda que o material tenha, nas linhas e entrelinhas, certa publicidade partidária, não se deve dispensá-lo. Uma leitura crítica d’A elite do atraso para a compreensão do atual cenário político e, até mesmo, da identidade brasileira ainda em construção, ainda em luta de classes e, sem dúvidas, ainda contra sua baixa autoestima, auxiliaria para um novo pensar a partir de uma dinâmica intelectual que distancia pelo rigor acadêmico (e vulcânico!) a tão batida identidade “vira-lata”.

Referências

BRAGA, Ruy. “Pode o subalterno lutar?” Quatro cinco um. Disponível em: revista451.com.br. Acesso em 30 de abr. de 2018.

CARDOSO, Irene de Arruda Ribeiro. A universidade da comunhão paulista. São Paulo: Ed. Cortez, 1982.

FILHO, W.R.; Ramos, G.T. et al (orgs.). A classe trabalhadora e a resistência ao Golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016.

HASSELMANN, Joice. Sérgio Moro: a história do homem por trás da operação que mudou o Brasil. São Paulo: Ed. Universo dos Livros, 2016.

NETTO, Vladimir. Lava jato: o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 2016.

PIMENTA, Paulo. Democracia, direitos humanos e mídia. São Paulo: Bartira Gráfica, 2016.

POMAR, Wladimir. “Pensando a longo prazo – ainda a singularidade do Brasil”. Correio da Cidadania, 16/11/2016. Disponível em: www.correiocidadania.com.br. Acesso em: 30 de abr. de 2018.

PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele et al (orgs.). A resistência ao golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016.

SCARPINO, Luiz. Sérgio Moro: o homem, o juiz e o Brasil. São Paulo: Ed. Novas Ideias, 2016.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: LeYa, 2017.

ROVAI, Renato (org.). Golpe 2016. São Paulo: Publisher Brasil, 2016.

WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1980.


  1. Cf. ROVAI, 2016; PIMENTA, 2016; PRONER, CITTADINO, 2016; FILHO, 2016. Para ver mais: www.redebrasilatual.com.br.

  2. Os três principais livros, tendo como protagonista o juiz Sérgio Moro, foram lançados neste período por autores que são, respectivamente: jornalista da Rede Globo, jornalista e ativista política (de direita), advogado e aluno especial na USP em economia (todas as instituições e posturas são criticadas por Jessé em sua obra). Cf. NETTO, 2016; HASSELMANN, 2016; SCARPINO, 2016.

  3. PT-DF traz Jessé Souza a Brasília para debater a “Elite do Atraso”. Ceilândia em alerta, 03 de mar. de 2018. Disponível em: www.ceilandiaemalerta.com.br. Acesso em 01 de abr. de 2018.

Resumo:
Resenha de: SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: LeYa, 2017.

Palavras-chave:
Resenha; Elite do atraso.

 

Abstract:
Book review from: SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: LeYa, 2017.

Keywords:
Book review; backward elite.

 

Recebido para publicação em 20/02/2020
Aceito em 03/07/2020