Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 51, n. 3, nov. 2020/fev. 2021
DOI: 10.36517/rcs.2020.3.d07

 

 

Entremeio:
resultados de uma pesquisa sobre jovens bolsistas em escolas privadas

 

Pedro Henrique Barboza Machado OrcID
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Brasil
pedro.barbozamachado@gmail.com

 

Introdução

O diálogo entre os campos das Ciências Sociais e da Educação é terreno potente para pensar algumas dificuldades e impasses que o país tem à frente. Se por um lado a aproximação contém possibilidades positivas, nem sempre é marcada pela linearidade e ausência de conflitos. Delimitando ainda mais a discussão, quando se observa de que maneira essa aproximação é feita pelo campo da sociologia, podem ser percebidas múltiplas influências teóricas e mudanças de perspectivas analíticas.

Tendo como foco analítico uma perspectiva sociológica, desde a década de 1940 nota-se uma preponderância sobre o universo escolar em produções brasileiras sobre educação (SPOSITO, 2003). Embora a preocupação com a instituição escolar fosse constante, as influências teóricas que marcaram época apontam que as análises não foram conduzidas de modo singular. Ao passo que durante as décadas de 1950 e 1960 a proposta funcionalista de Talcott Parsons (1902-1979) dominava as discussões, durante a década de 1970 houve uma influência maciça da sociologia francesa — seja através das propostas marxistas de Louis Althusser (1918-1990) ou daquelas provenientes dos estudos de Pierre Bourdieu (1930-2002).

Já na década de 1980, influenciados pela “nova Sociologia da Educação” desenvolvida na Inglaterra, os estudos brasileiros voltaram-se “para dentro” da própria instituição. Desse modo, privilegiaram-se análises sobre currículo, cotidiano escolar e modos de ensino e aprendizagem que levassem a escola a “ensinar melhor”, tendo como referência rankings e outros tipos de mensuração muitas vezes questionáveis. Alcançado o último decênio do século, as produções brasileiras privilegiaram uma “revalorização dos vínculos entre as práticas efetivadas no espaço escolar e suas relações com as práticas afirmadas em outros espaços sociais” (SILVA, 2018, p. 194).

O presente trabalho insere-se nessa perspectiva, uma vez que apresentará os principais resultados de uma pesquisa que estudou a inserção de jovens bolsistas de camadas populares em escolas privadas, notadamente voltadas ao público de classe média. Será enfatizada a dimensão social do processo educativo, uma vez que a experiência dos bolsistas será compreendida tanto a partir das interações travadas dentro da instituição escolar, como também a partir de seus processos de socialização empreendidos em outros ambientes sociais.

Para cumprir tal proposta o artigo divide-se em algumas seções. A primeira, intitulada “A pesquisa”, apresenta o objeto, suas questões principais e seus recursos metodológicos. Após esse momento, em “Trajetórias estudantis em camadas populares: contribuições ao debate a partir de estudos brasileiros”, será realizado um breve recorrido em alguns trabalhos nacionais que dialogam e que serviram de base teórica para a construção da pesquisa. Logo em seguida a escrita se concentrará nos principais resultados. Essas são as seções denominadas “A importância do lazer”, “Figuras maternas, divisão sexual do trabalho doméstico e a produção do gênero”, “A relação com a escola pública”, “A relação com a favela”, “Sentidos à experiência da bolsa de estudo e inteligência institucional” e “Barreiras materiais e simbólicas”. Dessa maneira, a conclusão retomará os resultados apontando também a relevância da pesquisa em cenário mais amplo da sociedade brasileira onde a relação entre os setores público e privado se estreitam cada vez mais.

A pesquisa

As reflexões deste trabalho são frutos de uma pesquisa realizada na etapa de mestrado. Com este empreendimento buscou-se compreender como jovens de camadas populares1 dimensionavam a experiência de estudar em escolas privadas que continham rotinas e público diferentes daqueles que estavam habituados em seus locais de origem. Dessa maneira, o questionamento inicial concentrava-se na pergunta de como os jovens viviam suas condições estudantis em escolas que não condiziam com suas realidades sociais. De modo mais específico, procurava compreender quais estratégias eram postas em práticas, quais aprendizagens anteriores eram acionadas para ajudá-los nesta etapa e quais outras poderiam surgir desta experiência. Através desses questionamentos era importante à pesquisa também identificar facilidades e dificuldades deste processo — bem como detectar de quais maneiras os estudantes encaravam essas dificuldades, caso as houvesse.

Para cumprir os objetivos da pesquisa, seis jovens foram entrevistados — três do sexo masculino e três do sexo feminino. Esses jovens encontravam-se na etapa do ensino médio em duas escolas privadas localizadas na região da Grande Tijuca, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. A fim de preservar a identidade dos indivíduos foram atribuídos nomes fictícios: Eduarda, Carlos, Paulo, Paula, Luan e Vanessa. Os três primeiros estudavam em uma escola — que a partir desse momento será denominada “escola A” — enquanto os demais jovens estudavam em outra instituição — a “escola B”. Embora ambas tivessem seu público composto hegemonicamente por membros das camadas médias da sociedade, algumas diferenças eram notadas entre si.

A entrada no campo da pesquisa não foi simples, e obtive recusa de algumas escolas para trabalhar com seus bolsistas. Algumas hipóteses para essa dificuldade podem ser levantadas. Primeiramente, a presença de um pesquisador no ambiente escolar talvez fosse encarada sob o signo da desconfiança. Destaco que, ao fazer contato com as escolas, somente pedia para que indicassem estudantes que se enquadrassem na categoria de bolsistas. Não solicitava fazer campo na instituição ou qualquer entrada mais incisiva. Mesmo assim o acesso era muito difícil. Outra tribulação emergia, possivelmente, como consequência do próprio interesse do projeto. O que uma pesquisa sobre estudantes bolsistas poderia revelar? Muitas escolas que possuem sistema de bolsas de estudos fazem ampla divulgação e chegam mesmo a se valer disso como ferramenta potente de propaganda. Nesse sentido, poderia ser vista como inconveniente uma pesquisa que, ao observar os estudantes bolsistas, apontasse qualquer realidade que saísse do discurso oficial de integração propalado pelas instituições.

A despeito deste cenário, a entrada na escola A deu-se sem muitos percalços. Já trabalhava há cinco anos na instituição como professor e fiz valer esse posto para conseguir uma comunicação mais direta com a coordenação pedagógica e com os estudantes. De todo modo, passei pelos trâmites burocráticos e apresentei o projeto da pesquisa à direção. A maior dificuldade nos casos desta escola foi fazer com que os jovens e suas famílias compreendessem que não era mais “o professor”, e que nada do que falassem seria exposto em qualquer momento institucional da escola. Buscava apresentar sempre com transparência o papel que exercia ao longo da entrevista: era o pesquisador, o estudante de mestrado, e não o professor da sala de aula.

A escola A possuía mais de 40 anos de existência e levava consigo o rótulo de ser uma “escola alternativa”. O valor de sua mensalidade ao longo do ano de 2019 para o ensino médio era de R$ 2.297,00. Dentro desse mesmo segmento, a divisão por estudantes dava-se da seguinte maneira: 1° ano do ensino médio com 21 estudantes, 2° ano com 16 estudantes e 3° ano também contando com 16 estudantes. Esse padrão oscilando entre 16 e 25 estudantes era algo percebido também em outras turmas de outros segmentos. Essa instituição não contava com nenhum tipo de parceria com ONGs ou qualquer outro tipo de associação para a concessão de bolsas de estudo. Desse modo, os descontos nas mensalidades que os estudantes bolsistas gozavam — fosse integral ou parcial — eram conseguidos mediante negociação com a direção da escola (caso de Eduarda) ou pelo fato de seus pais serem funcionários da instituição (casos de Paulo e Carlos).

A inserção na escola B só foi conseguida através da indicação de um amigo. Conversando com ele, explicava minha pesquisa e as agruras que passava para acessar alguma escola que contasse com bolsistas de camadas populares. Ato contínuo de me ouvir, ele disse que poderia ajudar porque na escola em que dava aula, “tinham muitos estudantes bolsistas e dava pra perceber de cara”. Essa percepção logo chamou atenção e fui à busca de conseguir acessar a escola, o que felizmente se efetivou.

A escola B também era conhecida na região, porém, com outros atributos. O imaginário coletivo tratava-a enquanto uma instituição adequada para “preparar” os estudantes para os exames vestibulares. Essa escola fazia parte de uma rede de ensino de educação básica. Tal rede distribuía-se por toda a cidade do Rio de Janeiro, contando com sete unidades. O valor da mensalidade para o 3° ano do ensino médio (etapa em que os três entrevistados cursavam no momento das entrevistas) era de R$ 2.451,92. O estudante poderia usufruir de bolsas de estudo através de dois caminhos. O primeiro era realizar um processo seletivo elaborado pela própria escola (como foi o caso de Paula). O outro era através de parceiras que a escola possuía com associações que subsidiavam o valor da bolsa de estudo (casos de Luan e Vanessa).

Guiada por literatura sobre trajetórias estudantis em camadas populares, a pesquisa assumiu como relevante que os responsáveis que mais se destacaram no acompanhamento do percurso escolar dos jovens também fossem ouvidos. Dessa forma, ao longo de oito meses (entre dezembro de 2018 e julho de 2019), foram realizadas 11 entrevistas. Somente no caso de Luan não foi possível a entrevista com o responsável. Quando indagado sobre qual adulto foi mais importante em sua trajetória escolar, o jovem colocou como resposta sua irmã e ninguém mais. Disse que mãe e pai nunca acompanharam de perto seus estudos, porque sempre estavam trabalhando. À época da entrevista, Luan dividia um apartamento com essa irmã. Entretanto, por conta de incompatibilidades de horário e lugar, infelizmente, a entrevista não pôde ser feita. Sua irmã trabalhava sempre no período da noite ou madrugada, o que fazia com que não estivesse disponível durante as manhãs e tardes. Sugeri em mais de uma ocasião que poderia encontrá-la onde e quando ela achasse melhor para fazer a entrevista, mas ela se mostrou muito resistente. Desse modo, optei por não insistir demasiado, respeitando os limites éticos que a pesquisa deve observar.

A opção de entrevistas enquanto ferramenta metodológica estruturou-se a partir do entendimento de que estas não se configuram enquanto um fim em si mesmas. Seu uso é válido porque propicia ao pesquisador acessar mecanismos mais profundos a partir das análises empreendidas. A entrevista, dessa forma, revelou-se um instrumento potente para revelar aspectos interessantes sobre a história de vida dos entrevistados — pontos esses que eram de grande importância para que fossem compreendidos os sentidos atribuídos à experiência da bolsa de estudo.

Posto isso, ao fazer uso dessa opção metodológica, a pesquisa considera o recurso de “história de vida” enquanto uma narrativa elaborada pelo indivíduo entrevistado que, embora seja vinculado no presente, diz muito sobre interpretações e construções do passado, lançando luz sobre seus processos socializadores. Para essa reflexão são relevantes as considerações de Suely Koffes, quando afirma que as histórias de vida são fontes de “evocação”, “informação” e “reflexão”. Evocação, pois transmitem a dimensão subjetiva e interpretativa do sujeito que conta sua história. Informação porque revelam uma experiência que ultrapassa o sujeito que a veicula. Por fim, reflexão, já que as histórias de vida apresentam uma análise articulada pelo próprio entrevistado sobre aquilo que está contando (KOFFES, 1994).

Através desse percurso metodológico, portanto, foi possível acessar análises tanto dos jovens como de seus principais responsáveis. Tais análises permitiram que se compreendesse de forma mais apurada as avaliações sobre a experiência provida pelas bolsas de estudo. Antes, porém, de passar para os resultados da pesquisa, uma breve apresentação sobre importantes considerações teóricas que guiaram as análises faz-se necessária.

Trajetórias estudantis em camadas populares: contribuições ao debate a partir de estudos brasileiros.

Observando leis e planos educacionais nos últimos trinta anos no país, pode-se argumentar que ao menos formalmente houve esforço significativo para encurtar a distância entre os bancos escolares e uma juventude historicamente marginalizada desses espaços de ensino. A Constituição de 1988 entende a educação enquanto um direito de todos os cidadãos e um dever da família e do Estado (BRASIL, 1988). Outros documentos também foram produzidos objetivando a diminuição das desigualdades existentes em nosso complexo cenário educativo. Nesse sentido, tais documentos propunham desde uma maior proteção às crianças e aos jovens pelo Estado, até metas a serem alcançadas a fim de um desempenho melhor em nossa educação.2 Tal esforço de democratização expresso na letra de muitas leis e planos repercute em produções acadêmicas, tanto no campo da Educação quanto no das Ciências Sociais.

Uma maneira de se aproximar desse universo epistemológico é observando estudos que se detiveram sobre trajetórias escolares de indivíduos provenientes de camadas populares. Dentro desse escopo, uma dualidade muito presente e que norteou muitos trabalhos é a noção de “êxito” ou “fracasso escolar”. Quanto maior o tempo que o indivíduo conseguiu permanecer dentro da escola (ou, possivelmente, da universidade) mais essa trajetória é vista, inicialmente, do ponto de vista do “êxito”. Muitas vezes essas trajetórias longevas contrariavam sobremaneira as estatísticas sobre o grupo social ao qual aquele indivíduo pertencia. Enquanto perspectiva analítica hegemônica, os estudos privilegiaram observar os múltiplos processos socializadores que os indivíduos atravessaram ao longo de suas vidas a fim de explicar as trajetórias.

Em sua pesquisa de mestrado Écio Antonio Portes tomou por objeto a trajetória escolar de trinta jovens de camadas populares que estudavam na Universidade Federal de Minas Gerais (PORTES, 1993). Destaca-se no trabalho do referido autor as estratégias familiares — sobretudo aquelas centralizadas nas figuras maternas — para que os jovens alcançassem o ensino superior. A chegada à universidade pelos jovens era entendida de maneira extremamente positiva, posto que simbolizava uma possibilidade de ultrapassar a condição socioeconômica de seus progenitores.

A partir de uma perspectiva relacional, o estudo empreendido por Maria José Braga Viana agrega ao debate importantes reflexões. Ao estudar ao caso de sete jovens que cursavam o ensino superior em instituições públicas, a autora destacou certas variáveis para o “êxito” percebido. Dentre essas pode-se citar a preocupação que os jovens sempre apresentavam a respeito de seus “futuros”, o significado positivo que os pais tinham para com as instituições de ensino e as estratégias pelas quais procuravam efetivar essa valoração positiva em ações reais — além de alguns processos socializadores empreendidos tanto pelas famílias como por outros grupos que preenchiam a vida dos jovens (VIANA, 1998).

Débora Piotto em sua tese de doutoramento estudou as experiências universitárias de indivíduos também provenientes de camadas populares. Tais indivíduos eram membros de cursos considerados de “alta competitividade” na Universidade de São Paulo. Piotto destacou o caráter muitas vezes solitário dessas trajetórias, ao mesmo tempo em que eram muito marcadas pela lógica do “esforço” (PIOTTO, 2007). A autora afirmou que não eram estranhos a esses percursos momentos dolorosos, experiências humilhantes e sensações de um intenso “desenraizamento”. Ao mesmo tempo em que afirmava isso, Piotto também sublinhava o fato de que entrar em espaços tão impensados para suas condições sociais propiciava aos jovens a possibilidade de reorganizarem de forma drástica suas expectativas para a vida.

Ainda observando a intersecção entre trajetórias escolas em camadas populares e a entrada e permanência no ensino superior, o trabalho desenvolvido por Jailson Sousa e Silva traz considerações pertinentes ao debate. O autor pesquisou a trajetória de indivíduos residentes no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, que conseguiram adentrar o espaço do ensino superior (SILVA, 2018). Em sua análise, Silva destacou a capacidade do indivíduo em entender e saber lidar com as regras escolares, as classificações direcionadas ao indivíduo atribuídas tanto pela escola como pela família, além da valorização do próprio indivíduo de que o campo escolar merecia atenção e era digno, portanto, de investimento. Esses são alguns fatores que explicam, afinal, o porquê de alguns alcançarem patamares mais longevos do que outros no tocante à trajetória de escolarização dentro de um mesmo grupo social.

Direcionando esforços analíticos para o segmento da educação básica, tem-se o trabalho de Mariana Bittar enquanto boa referência para o debate (BITTAR, 2011). Em sua tese Bittar analisou o percurso escolar de jovens residentes em “áreas vulneráveis” da cidade de São Paulo. Realizando 23 entrevistas a partir de seis “perfis de configuração”, a autora colocou em relevo efeitos plurais que múltiplas esferas de sociabilidade tiveram sobre as trajetórias pesquisadas. É interessante notar quais esferas de sociabilidade eram essas: família, trabalho, escola, religião, programa social e vizinhança/lazer. Bittar argumentou que as escolhas colocadas em prática pelos jovens estudados contêm a marca da confluência entre a maneira individualizada a partir da qual os sujeitos interpretam suas vivências com “constrangimentos estruturais”.

A despeito de objetos e escolhas metodológicas diferentes, os estudos supracitados possuem instigantes considerações quando se pretende estudar trajetórias estudantis em camadas populares de nossa sociedade. A primeira a se destacar é a não absolutização do ambiente escolar enquanto universo para a análise se desenvolver. Com isso destaca-se o fato de que, embora as escolas sejam importantes nas análises, as instituições de ensino são atravessadas por influências que as extrapolam. Por conta disso, observar tais realidades externas às escolas é imprescindível para que qualquer análise do que acontece “dentro de seus muros” seja empreendida.

O segundo ponto é o modo pelo qual os indivíduos pesquisados são compreendidos metodológica e epistemologicamente dentro da pesquisa. Estes são considerados enquanto portadores de saberes que devem ser levados em conta para que suas trajetórias sejam compreendidas. É a partir dessa proposta que as escolhas metodológicas que muitas vezes recaíam sobre entrevistas compreensivas podem ser compreendidas. Dentro desse contexto, é válido considerar que as entrevistas proporcionam uma chance de compreensão sobre as trajetórias escolares e os sentidos atribuídos a elas a partir das zonas de contato entre as próprias percepções dos indivíduos e os processos de socialização empreendidos por outros campos (não só o escolar), como o familiar, o religioso e o do lazer.

A importância do lazer

Ultrapassada a discussão sintética de alguns estudos brasileiros que refletem sobre trajetórias estudantis em camadas populares, os principais resultados da pesquisa em questão serão apresentados. Todos os seis estudantes, assim como seus responsáveis, valoravam positivamente a experiência nas escolas privadas proporcionada pelas bolsas de estudo. Entretanto, essa avaliação positiva não vinha sem percalços. Antes de adentrar nas reflexões mais específicas que dão conta desses obstáculos, alguns traços comuns às trajetórias merecem ser colocados em destaque.

Notou-se em todos os casos uma moratória em relação ao trabalho remunerado. Pode ser encontrada uma breve exceção a isso no caso de Paulo, pois o jovem informou que vendia trufas nos ônibus. Entretanto, esta prática não era uma imposição da família. Sua mãe disse que ele fazia essa atividade “porque ele queria, para ganhar o que é dele”. É válido pensar que essa falta de obrigação relativa às atividades laborais liberava os jovens para se dedicarem a outras atividades ao longo de seus dias, como o estudo.

Ainda nesse âmbito, outra constante também nas trajetórias dos jovens eram os ambientes e/ou atividades através das quais eles escolhiam (ou podiam) se divertir. Na grande maioria das vezes optavam por ambientes abertos, públicos, onde não era cobrada a entrada para usufruir do espaço — como as praias e parques perto de seus locais de moradia. Isso reforça a necessidade do poder público em garantir espaços democráticos de lazer, onde os cidadãos (independente da camada social a qual pertençam) possam usufruir do seu direito à cidade.

A observância de como os jovens se divertem não é desprovida de interesse sociológico. Através da maneira pela qual usufrui seu “tempo livre”, há a aquisição de saberes e modos de conduta que poderão ser recompensados pela escola. É canônica a contribuição de Bourdieu ao debate quando afirma que:

Aquilo que a criança herda de um meio cultivado não é somente uma cultura, mas certo estilo de relação com a cultura que provém precisamente do modo de aquisição dessa cultura. A relação que um indivíduo mantém com as obras da cultura [...] é, portanto, mais ou menos “fácil”, “brilhante”, “natural”, “laboriosa”, “árdua”, “dramática”, “tensa”, segundo as condições nas quais ele adquiriu sua cultura [...] Vê-se, assim, que, ao colocar a ênfase na relação com a cultura e ao valorizar o estilo de relações mais aristocráticos [...] a escola favorece os mais favorecidos. (BOURDIEU, 2015, p. 61)

A partir disso pode-se supor que aqueles indivíduos que puderam ter, ao longo de seus processos de socialização, contato com certo tipo de cultura e, mais importante, certa relação com esses objetos culturais, terão maiores chances de serem recompensados nos bancos escolares. É a partir dessa elaboração que se entende o caráter muitas vezes perverso da instituição escolar, posto que a instituição cobra certa relação com a cultura, mas não realiza essa cobrança de modo aberto e nem ensina o educando a ter essa relação.

Tendo em vista essas considerações, é de extrema relevância notar a fala de Luan quando o jovem diz que há coisas que “não dá pra se conversar na escola”. Exemplificando que “coisas” eram essas, o jovem respondeu que era conversar sobre onde os amigos foram nas férias. Ao passo que ele responderia que ficou “jogando bola o dia todo”, os amigos contestariam com destinos na Europa. Desse modo, em seus tempos livres, os amigos de Luan, não bolsistas e provenientes de camadas médias da sociedade, têm a oportunidade de conhecerem in loco paisagens, obras de arte e museus que muitas vezes estão em seus livros didáticos. Lembrando Bourdieu uma vez mais, os passeios que os colegas de Luan desfrutam na Europa servem para “favorecer os favorecidos” (BOURDIEU, 2015). Não é ingênuo notar, portanto, que uma das maiores aspirações da vida de Luan seja conhecer os lugares que ele só vê pela TV ou pelos livros didáticos. Pode-se imaginar a angústia e o desconforto sentido pelo jovem ao ouvir constantemente experiências valorizadas não só social como também escolarmente — experiências essas que, dada sua condição financeira e de sua família, não tem condições de usufruir.

Ainda nesse escopo pode-se citar também o caso de Vanessa. A jovem afirmou que foi somente a partir da experiência da bolsa que passou a gostar de realizar “passeios culturais”. Por essa categoria a jovem entendia a ida a museus e outros espaços de exposição. É possível afirmar que a jovem já compreendeu o valor dessas atividades para o mercado de bens que é a escola. Ponto maior desse entendimento talvez seja a sua vontade de transmitir para seu irmão mais novo esse hábito. Vanessa afirmou que planejava passeios a museus com o irmão em seus tempos livres “para que ele abra os horizontes ainda criança.”

Vanessa vislumbrava em sua performance na escola privada a oportunidade chave para “quebrar ciclos” presentes em sua trajetória familiar: residir em uma favela e empregos pouco rentáveis do ponto de vista financeiro. Observando sua postura para com o irmão notou-se também que estendia a ele suas expectativas para que, através da via dos estudos, conseguisse “quebrar o ciclo da pobreza” de sua família. Desse modo, sua atenção para prover “passeios culturais” ao irmão alinhava-se a esse desejo maior de poder ascender socialmente pelo caminho da escolarização. Ainda que de modo inconsciente, a jovem ao fazer isso talvez propicie ao irmão formas de lidar com uma cultura que normalmente é cobrada de maneira implícita nos bancos escolares.

Figuras maternas, divisão sexual do trabalho doméstico e a produção do Gênero

Quando os jovens eram contatados para a realização da entrevista, era pedido que indicassem o principal responsável que tivesse acompanhado suas trajetórias de estudos até o momento. Todos os jovens indicaram suas mães. Além disso, somente em um caso o entrevistado morava com seu pai biológico. Em todos os outros, a figura masculina com a qual os jovens dividiam convivência encarnava-se nos padrastos.

De fato, durante as entrevistas com os responsáveis, as mães ocuparam o lugar central. Em apenas um caso alguma figura masculina também acompanhou o momento (isso se deu na entrevista com os responsáveis de Carlos). E mesmo nesse momento o pai pouco se colocou, deixando à mãe a incumbência de responder a todos os questionamentos. Ao longo dos relatos das mães, e também de seus/suas filhos/filhas, foi possível perceber que elas desempenhavam funções cruciais na trajetória estudantil. Essas funções eram exercidas, seja garantindo condições mínimas de estudo, batalhando para que a bolsa fosse concedida3 ou também valorando e reforçando de forma sistemática a experiência estudantil da bolsa de estudo enquanto algo que contribuiria para o futuro não só dos filhos, mas também da família como um todo.

Através das análises familiares que puderam ser feitas, notou-se uma característica importante quando se observa a trajetória estudantil em camadas populares que é o “mito da omissão parental” (LAHIRE, 1997). Muitas vezes os pesquisadores são traídos em suas análises sobre a presença e a preocupação dos pais para com a escolaridade de seus filhos porque são guiados por uma lente que coloca como referência analítica padrões das camadas média e altas da sociedade. Desse modo, é comum atestar a “falta de interesse” dos pais para com a escolarização dos filhos. Alguns sinais disso seriam a ausência em eventos escolares (como festas e reuniões) e uma fraca cobrança e acompanhamento no momento dos deveres de casa. De todo modo, a própria movimentação percebida nos pais ou nos jovens pesquisados de buscarem bolsas em instituições privadas de ensino já é um indicador importante de distinção dessas famílias com outras do mesmo grupo social.

Das seis mães, apenas uma contava com ensino superior em sua trajetória, ao passo que as outras ou possuíam o nível médio ou tinham interrompido seus percursos escolares antes mesmo de chegarem a essa etapa.4 Desse modo, as responsáveis em sua maioria possuíam um capital escolar inferior ao de seus filhos. Mesmo contando com esse déficit, essa condição não era impeditiva para que as mães dessem importância aos estudos e procurassem estratégias para acompanhar a trajetória dos filhos. Essas estratégias se materializavam tanto em conversas rotineiras sobre os estudos e as notas, a obrigatoriedade dos filhos em mostrarem o boletim, como também por um esforço de estarem presentes nas reuniões e em confraternizações promovidas pelas escolas.

Desse modo, notava-se nas figuras maternas uma sobrecarga de funções, uma vez que além dos cuidados com a casa, eram elas também que se dedicavam aos cuidados com os filhos — e esse cuidado passava necessariamente pelo acompanhamento escolar.5 Ainda tendo como referência a discussão de gênero para a análise, é interessante observar como se dava a divisão sexual do trabalho nos lares dos jovens entrevistados.

Nenhum dos jovens do sexo masculino externou obrigações para com sua casa. A mãe de Paulo chegou a mencionar que já tinha tentado fazer “combinados de limpeza” com o filho e com seu companheiro, mas que, infelizmente, “não adiantava” e era ela quem “fazia tudo”. Nos casos das jovens, Paula tinha uma função importante na organização familiar que era cuidar de seus irmãos mais novos. Tanto Eduarda quanto Vanessa estavam liberadas temporariamente de funções de trabalho dentro do lar para que pudessem se dedicar mais aos estudos. Essa liberação, contudo, era uma concessão dada pelas mães.

Esse aspecto é de crucial importância porque a produção do gênero em nossa sociedade também acontece a partir de como se estrutura a divisão sexual do trabalho doméstico. O debate sobre a divisão sexual do trabalho dentro dos lares muitas vezes é relegado ao segundo plano, o que configura um erro. Observar esse aspecto da vida em sociedade é fundamental, posto que incidirá diretamente nas possibilidades de participação dos indivíduos nos mais variados campos da vida pública. Desse modo, problematizar sobre a divisão sexual do trabalho é também pensar recursos, possibilidades e limites à vida democrática (BIROLI, 2018).6

Ainda vale a pena ser notado que nos casos das jovens, um dos argumentos fortes que apareciam no discurso das mães (e também no das próprias estudantes, ainda que com menor intensidade) para valorar positivamente as trajetórias era que o caso de suas filhas serviria como exemplo para os familiares menores (sejam irmãos ou primos). Esse discurso não foi percebido no caso dos jovens de sexo masculino. Sobre as meninas, portanto, pesa também a responsabilidade de serem exemplos para algum parente, ao passo que os meninos estão liberados dessa responsabilidade dentro do ambiente doméstico.

A relação com a escola pública

Todos os jovens entrevistados, antes de conseguirem a bolsa de estudo, estudavam em colégios públicos na cidade do Rio de Janeiro. Acessar as memórias e o entendimento que possuíam desse momento em suas trajetórias é de fundamental importância para que a experiência da bolsa de estudos seja mais bem dimensionada. Em um panorama geral, os estudantes entrevistados guardavam boas recordações das passagens pelo sistema público de ensino. A única exceção a isso foi o caso de Paulo.

Como já observado, no tocante ao capital escolar de seus responsáveis, os jovens não dispunham em seus lares de um acompanhamento qualificado. Dessa maneira, era muitas vezes com amigos ou professores de suas escolas públicas que buscavam ajuda. Esse apoio em alguns momentos poderia continuar a existir inclusive após a obtenção da bolsa de estudo na escola privada. Esse é o caso de Paula, que afirmou que ainda continuava a frequentar sua ex-escola, sobretudo, para procurar ajuda de seus antigos professores. A jovem disse que o primeiro ano foi o mais difícil porque teve que “correr atrás” de muitos conteúdos. A jovem destacou sua dificuldade em inglês e o fato de sua antiga professora da escola pública a ter ajudado.

A rede de amizades e também a relação com os professores foram mencionados em algumas entrevistas enquanto fatores relevantes ao estímulo para a obtenção de bolsas. Nos casos de Paula, Luan, Vanessa e Eduarda, foi possível perceber isso através de exemplos onde figuras da instituição escolar, seja diretores ou professores, eram explícitos quanto a necessidade de o estudante sair do sistema público para “ter mais chance”, “aproveitar melhor a inteligência que tinha”. A mãe de Eduarda chegou inclusive a mencionar uma reunião na escola antiga da jovem cujo objetivo era justamente estimular que ela buscasse bolsas de estudo para sua filha, “que era muito inteligente”. A obtenção da bolsa de estudo de Vanessa e de Luan também passou pela figura da diretora de suas respectivas escolas, uma vez que era a direção quem deveria indicar “os melhores estudantes” para participarem do concurso subsidiado por associações que dariam a bolsa de estudo em escolas privadas.

Somente no caso de Paulo é que não foram observadas lembranças positivas do período em que estava em sua antiga escola. O motivo é importante. O jovem disse que não se identificava com os padrões de comportamento percebidos na sua escola, assim como não sentia apreço pelo “jeito de ser” de seus outros colegas que também moravam na mesma comunidade que ele. No caso de Paulo, a ida para uma escola privada com um público de classe média significou um bálsamo, uma vez que nesse ambiente o jovem começou a ter contato com valores e comportamentos que ele (assim como sua família) valorizava: rotinas de leitura, passeios para museus da cidade e uma educação norteada para práticas mais progressistas.

É também observando a relação que os jovens estabeleciam com as amizades construídas nas escolas públicas que se começa a dimensionar melhor uma condição que a bolsa de estudo em uma instituição privada proporcionava a eles. Essa condição é denominada aqui como sendo um entremeio, justamente para representar a angústia de muitas vezes não pertencer nem a um lugar e nem a outro.

Exemplificando o que fora dito, os jovens relataram em suas entrevistas falas depreciativas partindo de amigos que fizeram nas escolas públicas quanto ao fato de terem ingressado em instituições privadas. Era como se, por serem estudantes de uma escola privada, houvesse uma quebra de expectativas quanto ao ethos de um estudante de uma escola pública. A passagem a seguir, extraída da entrevista com Vanessa, exemplifica bem a análise:

Engraçado que assim que eu consegui a bolsa eles [colegas da escola pública] falaram assim: “poxa, você já é um pouco metida, agora que vai ficar mesmo”. Eu falei: “poxa, que é isso.” Um fato interessante foi que um dia eu tava na minha escola e próximo tem uma escola [pública]. E tenho um amigo que estuda lá. Aí eu saí e fui lá. Disse: “oi, quanto tempo”. Aí como eu sei que tem amigos meus que estudam lá, fui até a porta da escola. Eu me senti muito diferente. Primeiro, diante deles, porque eu tava com uniforme da particular. Eles me olharam diferente. Da mesma maneira que eu olhava alguém que usava uniforme diferente. Eu senti, assim: “caramba, um uniforme parece que muda quem eu sou.” Não que eu me sentisse diferente deles, mas eles me olhavam assim: “nossa, quem é essa garota, nojentinha...?” Gente, isso aqui é um algodão e eu sou que nem vocês, sou tão pobre que nem vocês. (Vanessa).

É importante destacar que, se pelo lado dos amigos da escola pública ocorria esse julgamento de que eles pertenciam a um “novo mundo” por estudarem em escolas privadas, já para os estudantes das escolas privadas, vestir os mesmos uniformes e dividir os mesmos bancos não configurava condição suficiente para tratá-los como iguais.7

Em que lugar, portanto, situá-los? Uma resposta interessante a esse questionamento é uma categoria usada justamente por um desses jovens. Ao responder à pergunta sobre como ele próprio se considerava, Paulo respondeu que a melhor resposta seria “um desencaixado”. Essa reflexão sobre a existência de um não-lugar para esses estudantes que adentram ambientes de ensino antes impensados não é nova na Sociologia. Temos em Bourdieu a clássica formulação dos “excluídos do interior”.

Essa ideia abarca aqueles estudantes que foram cooptados pelo sistema escolar, mas que ainda se mantêm excluídos, só que agora dentro do próprio sistema (BOURDIEU, 2015). Com isso, percebe-se que democratizar o acesso não é o mesmo que democratizar as chances para se obter os postos na sociedade que, anteriormente, antes da “democratização”, os diplomas conferidos pela instituição poderiam assegurar aos indivíduos. Bourdieu aponta que a “inflação dos diplomas” é uma das consequências desse processo, uma vez que “um título que se torna mais frequente torna-se por isso mesmo desvalorizado, mas perde ainda mais seu valor por se tornar acessível a pessoas sem ‘valor social’” (BOURDIEU, 1983).8 Mesmo povoada com mais gente, e com mais tipos de gente, a escola continuará sua função reprodutora e excludente, com a diferença de que agora essa exclusão se diluirá no tempo e se dissimulará em outras estratégias.

Essa sensação de desencaixe é também percebida quando se analisa a relação que esses jovens desenvolveram com seus locais de moradia.

A relação com a favela

Embora não fosse exigência do recorte metodológico, dos seis estudantes entrevistados, cinco residiam em favelas e uma (Eduarda) já havia residido por grande parte de sua vida. Todos, portanto, nutriam sentimentos e avaliações para com esses locais. A sensação de entremeio foi percebida quando se analisou como esses jovens se relacionavam com as amizades ali feitas. Do mesmo modo, também estava presente a percepção de que havia uma quebra de expectativas acerca de percursos na vida de uma pessoa moradora de favela pelo fato da consecução de bolsas de estudo em escolas privadas.

Percebeu-se essa sensação quando a mãe de Eduarda afirmou que a jovem, quando residia na favela, sofria discriminação das amigas por estudar na escola privada. Afirmava que as amigas falavam, ao ver sua filha indo para escola: “lá vai a ‘patricinha’ do Boréu9”. Uma história relatada por Paulo também deixa explícita essa quebra de expectativa proporcionada pelo fato de estudar em escolas privadas notadamente voltadas à classe média. O jovem contou que, em uma ocasião, um primo seu, em tom de acusação, disse que era “mais favela” do que ele. Paulo, então, se pôs a pensar sobre o que faz uma pessoa ser “mais favela do que outra”. A partir de suas elucubrações entendeu que “pelo fato dele estudar em colégio público, de escutar o RAP, e outras questões, faz ele mais favela do que eu, mesmo ele não morando exatamente numa favela.” Ao final, revelou que isso o deixava “bastante desconfortável”.

É curioso notar que a experiência da bolsa, e consequentemente, a lida com um público diferente e com valores e comportamentos destoantes de seus locais de moradia, proporcionava aos jovens a possibilidade de reavaliarem as amizades feitas na favela. É nesse sentido que Paulo afirmou que não se identificava com o público que residia na mesma favela que ele porque, em sua avaliação, faltava o hábito do questionamento. De acordo com as palavras do próprio jovem: “Eles não tentam entender o que está acontecendo. Não porque falta capacidade intelectual pra eles, mas porque a vida deles, como a sociedade fez eles se tornarem, acabou fazendo assim”.

Ainda nesse contexto, merece vir à tona uma avaliação feita por Vanessa quando a jovem afirma ser diferente de seus amigos da escola pública e de seus amigos moradores de favela porque, em seu entender, ela possuía “ambição”:

Eu não tinha ambições muito grandes. “Ah, vou fazer faculdade? Vou...” Mas era uma coisa muito distante, não era algo tangível. Eu tenho certeza que, ano que vem, eu vou estar numa faculdade. Eles não têm essa certeza, pra eles é algo muito distante. O sonho do aluno de escola pública é terminar o ensino médio e ir arrumar um emprego, entrar no Jovem Aprendiz, coisa que ela já faz no 1° ano. Então, ele trabalha e estuda, ele não tem essas projeções grandes. Eu não pensava nem em viajar. Eles falam, mas falam diferente. Falam como se isso...se acontecer, aconteceu, talvez nunca aconteça. Então, eles não têm essas ambições, não percebem uma possibilidade real de mudar de vida, economicamente falando. Mas porque eles realmente não têm. Então, assim, pode acontecer? Pode, pra um ou outro. Mas vai se perpetuar. Eles vão arrumar um emprego que vai ser o suficiente pra pagar o aluguel e comer e vão ter filhos, e provavelmente, os filhos vão estudar em escolas públicas e isso vai continuar. Eu fico triste por isso, porque eles não têm ambições que eu tenho. (Vanessa).

Nem todos nutriam avaliações negativas da comunidade na qual estavam inseridos. O caso de Carlos foi o que melhor expressou uma identificação significativa entre o jovem com as pessoas de seu local de origem. Na rua onde Carlos morava, também residia grande parte de sua família. Além de ter passado toda a sua vida naquele local, os pais de Carlos fizeram o mesmo percurso. Eram “nascidos e criados ali”. Em suas memórias, Carlos falou constantemente das relações estreitas com os irmãos e os primos que moravam naquela região. Tal condição não era impeditiva para que também se relacionasse e valorizasse amizades na escola privada. Contudo, observar como ele organizava essas amizades é interessante.

Carlos nunca misturava os grupos. Um de seus lazeres favoritos era ir à praia. E ele o fazia com suas duas “galeras”: os seus familiares que moravam na mesma rua e com os amigos da escola privada. Porém, eram praias diferentes. Com os primeiros ia à praia da Barra, e com os segundos a Ipanema.10 Essa divisão parecia bastante nítida para ele, não demonstrando em nenhum momento a possibilidade dos grupos se misturarem. Afirmou que essa divisão se dava por preferência. Quando perguntado o porquê dessas preferências, disse que o grupo da escola preferia a praia de Ipanema por lá ter “o posto específico dos que fumam maconha”. É significativo o fato de o grupo pertencente à classe média ver essa escolha enquanto algo “natural”, desprovida de perigos, ao passo que o grupo pertencente à camada popular, contendo os estereótipos do “favelado”, não escolher frequentar o ambiente.

Outra perspectiva que deve ser levada em conta quando a dimensão da favela é colocada para se compreender como os jovens avaliavam a experiência da bolsa de estudo, é considerar as idas à casa de amigos não bolsistas. A maior parte dos jovens relatou grande prazer em ir ao lar desses colegas, justamente pelo fato de tomarem contato com realidades que normalmente não poderiam ter. Essas realidades vão desde um tipo de alimento diferente à composição da casa com “muitos quartos”.

Embora essa avaliação extremamente positiva de frequentar as casas de colegas não bolsistas estivesse presente, nenhum dos jovens relatou investir no movimento contrário. Ou seja, nenhum estudante bolsista pesquisado levava colegas não bolsistas, e de classe média, para suas residências nas favelas. Os motivos variavam. Paula dizia que as mães dos colegas não deixariam. Vanessa dizia que ela própria não se sentiria à vontade, além dos amigos também “ficarem sem graça”. Carlos e Eduarda sequer cogitavam essa possibilidade. Paulo também disse que nunca se sentiu confortável para levar qualquer amigo que seja da escola privada à sua casa. Luan seguiu o mesmo caminho, dando um sorriso irônico quando perguntado se algum amigo seu da escola frequentava seu lar. A despeito das respostas, todas elas evidenciavam a existência de limites entre os grupos. Limites esses tão estabelecidos que era evidente para todos o fato deles poderem, e valorizarem, frequentar a casa de colegas não bolsistas; ao passo que o contrário não acontecia de nenhuma maneira. Paula e Luan — que estudavam na mesma escola — chegaram a declarar que, quando havia trabalho em grupo — atividade essa que poderia demandar a ida à casa dos estudantes — “normalmente bolsista fazia com bolsista”.

Por fim, há que se levar em conta a blindagem realizada pelos responsáveis nos processos socializadores dos jovens no tocante à interação com o mundo da favela. Com exceção de Luan e de Carlos, em todos os demais casos pôde ser percebida essa estratégia deliberada para a limitação das possibilidades de interação entre os jovens e seus ambientes de moradia. A mãe de Eduarda notou com orgulho o fato de sua filha, quando moradora da favela, nunca ficar “pelas escadas” da região, como muitas outras meninas faziam, de acordo com sua perspectiva. A mãe de Vanessa também disse que sempre limitou as ações da filha na favela, sendo sua rotina normalmente norteada pela lógica “da casa para a escola, da escola para casa”. O caso mais explícito dessa estratégia pode ser sintetizado na trajetória de Paulo. A passagem abaixo é emblemática:

Mãe: Então, todos os tempos livres que tínhamos, nós saímos. [cita alguns lugares fora da favela onde habitavam]. A gente andava bastante. Todo final de semana a gente tava em algum lugar. E durante a semana também, quando dava, a gente fazia isso. Então, assim, todo tempo livre dele a gente tava fora daqui. E durante a semana ele tinha muitas atividades. Eu colocava ele em tudo que dava pra colocar.

Entrevistador: Justamente para ocupá-lo?

Mãe: Justamente. Pra não dar tempo livre pra ele durante a semana, pra ele poder dispersar daqui. Porque a realidade daqui é muito diferente. Hoje em dia é muito mais fácil levar os adolescentes pra esse caminho das drogas, enfim, paralelo. É muito mais apetitoso, muito mais atrativo, do que na minha época. Hoje em dia, quanto mais pessoas te cercam, melhor pra eles. Eu tinha muito medo disso em relação ao meu filho. Então, minha opção foi essa: tirá-lo daqui o máximo possível.

Constatar essa blindagem não é irrelevante do ponto de vista sociológico. Sabe-se que a escola não contém um valor por si só. Dessa maneira, é observando alguns sistemas de disposições herdados a partir de processos de socialização tecidos em outros espaços que não o escolar, que se pode compreender melhor as trajetórias. Decerto, essa blindagem para com “o mundo da rua”, aliada a discursos que validavam o hábito do estudo, contribuíram para que os jovens em questão encarassem a instituição escolar enquanto uma realidade que merecia ser levada a sério. Percebe-se aqui que não há espaço para avaliações ingênuas, que adjetivam o jovem que conseguiu ter uma trajetória — ao menos momentaneamente — diferente de grande parte de outros jovens de seu local de origem, como um “gênio” ou “esforçado”. Na verdade, a origem da “genialidade” ou do “esforço” deve ser buscada nas estratégias que perpassaram as socializações dos indivíduos. Nos casos em questão, uma importante estratégia foi essa referida blindagem para com o “mundo da rua”.

Sentidos à experiência da bolsa de estudo e inteligência institucional

A despeito de particularidades nas trajetórias, em todos os casos analisados percebeu-se uma valorização da experiência proporcionada pela bolsa de estudo. Dessa forma, respondendo à questão inicial que motivou a pesquisa, os sentidos atribuídos pelos estudantes, e também por seus responsáveis, à trajetória escolar possibilitada pelos descontos nas mensalidades em escolas privadas é majoritariamente positivo.

Nessa discussão, é válido destacar qual o entendimento a pesquisa levou em conta para a categoria de sentido. Assumindo uma perspectiva sociológica que observa como os jovens avaliam suas experiências, essa categoria nutre-se de uma substância que se constitui “por pessoas em grupos mutuamente dependentes de uma forma ou de outra, e que podem comunicar-se entre si” (ELIAS, 2001, p. 63). Desse modo, para que se compreendessem os sentidos atribuídos à experiência de “ser bolsista”, era necessário observar como se dava a interação desses jovens com outros estudantes de suas escolas, bem como com outros grupos que existiam em suas vidas, como amizades e as famílias. A vereda que se optou para acessar esses “sentidos” foram as memórias desses estudantes a partir de entrevistas.

A partir dos depoimentos dos responsáveis e dos jovens observou-se que todos eles atribuíam um sentido ao fato de ir à escola. Ou seja, estavam mobilizados em relação à escola (CHARLOT, 1996). Essa categoria de Bernard Charlot é fundamental. Por estar mobilizado em relação à escola, o autor entende a existência de um sentido ao próprio fato de se ir à escola. O autor também trabalha com a categoria de estar mobilizado na escola. Essa categoria dialoga com a relação que o estudante tem com o próprio ato de estudar.

Nos casos de Luan, Paula e Vanessa, percebeu-se uma valorização da experiência escolar a partir do instrumental teórico que os jovens tinham em suas aulas. Desse modo, criam que esses saberes se converteriam em “moeda” necessária o bastante para que fossem aprovados em exames vestibulares futuros. A entrada no ensino superior, portanto, daria continuidade em suas trajetórias, cujo objetivo maior seria a consecução de uma “vida melhor”11 para si e para seus pais. Esses jovens, portanto, se mobilizavam tanto em relação à escola como também na escola.

O objetivo de uma “vida melhor” também era percebido nos outros casos e a atenção para esse sonho era fator que mobilizava os jovens na instituição escolar. Entretanto, através das trajetórias de Paulo, Eduarda e Carlos percebia-se uma valorização positiva da experiência proporcionada pela bolsa de estudo muito atrelada ao fato de os jovens poderem ter contato, em suas escolas, com um público de camadas mais elevadas da sociedade. Dessa maneira, o capital social que poderia ser extraído dessa experiência era observado de modo bastante destacado. Nesses casos, portanto, o saber que era amplamente valorizado era a lida — e o consequente aprendizado — com tipos de comportamento da classe média. Comportamentos esses que não poderiam ser percebidos, no julgamento de seus responsáveis, e também dos jovens, nos locais onde habitavam.

O que deve ser destacado a partir dessa conclusão é o fato de que essa valorização positiva da experiência de estudar em escolas privadas é justificada basicamente por dois motivos: seja pelo contato com conteúdos presentes nas disciplinas escolares que possivelmente gabaritaria os jovens a serem aprovados em exames vestibulares futuros, seja pela convivência com pessoas de camadas sociais superiores. A despeito dessas motivações plurais, uma característica fundamental une todas as trajetórias: a inteligência institucional. Por essa noção entende-se “o grau de compreensão manifesto pelos alunos das regras do jogo no campo escolar e da maneira de jogar com elas.” (SILVA, 2018, p. 154)

A escola, como qualquer grupo social, erige-se a partir de regras que influenciará diretamente seus integrantes. Tais regras têm o objetivo de ditarem ações corretas, esperadas pela instituição. Se os integrantes não agirem de acordo com as normas, sejam elas escritas ou não, pode-se esperar algum tipo de sanção. Penas poderão ser imputadas a esse indivíduo desviante, desde olhares maliciosos a expressões mais duras dessa fuga às “regras”, como a expulsão da instituição.12

No caso dos bolsistas, a própria forma como se deu a entrada desses jovens na instituição já é um desvio à norma geral. Ou seja, eram estudantes em escolas privadas, mas não pagavam as mensalidades. Desse modo, em todas as trajetórias analisadas pôde ser percebido um esforço de seguir as normas da instituição, para não “andar fora da linha”, como dito por um entrevistado. É importante destacar que muitas vezes esse saber lidar com as regras entraria em conflito com valores arraigados nos jovens. Contudo, justamente pelo fato de atribuírem sentido em suas permanências nas escolas, aceitavam a situação e lidavam com “as regras do jogo”.

É isso que se destaca no caso em que Paula relata ter sido chamada de “bruta” — somente pelo fato de ser moradora de favela — e também de ter sido ridicularizada por outras estudantes não bolsistas. A jovem disse que, embora as situações tivessem causado imenso desconforto para ela, “fingia que não ouvia” nada daquilo porque “precisava da bolsa”. Mesmo panorama percebeu-se no relato de Luan quando, envolvendo-se numa confusão em um jogo de futebol na escola, o jovem afirmou que todos esperavam que ele “ficasse calado” pelo fato de ser bolsista. Contudo, não se calou. Porém, o local onde sua voz teve lugar demonstra essa inteligência institucional: a sala da diretora. Ou seja, Luan usou dos canais institucionais que a escola lhe proporcionava para fazer valer sua indignação.

Observando as posturas passivas e de poucas falas nos casos de Carlos e Eduarda também pôde ser percebido uma gama de comportamentos esperados e recompensados pela escola. Embora esses jovens tenham relatados momentos de desconforto nas escolas a partir de suas relações com outros estudantes não bolsistas, optaram pelo silêncio. Optaram, portanto, pelo “bom comportamento”, pelo agir de acordo com as regras.

Esse entendimento das regras da instituição escolar e a aceitação de agir de acordo com elas, garantia aos jovens uma condição importante para a permanência naquele ambiente. Permanência essa que, como já indicado, tinha extremo valor. Contudo, a despeito dessas interpretações amplamente positivas, a experiência de estudar em escolas privadas voltadas ao púbico notadamente de classe média não vinha desprovida de situações de preconceito e sofrimento para os jovens.

Barreiras materiais e simbólicas

A pesquisa entende tais situações de preconceito e sofrimento enquanto expressões de barreiras materiais e simbólicas com as quais os jovens lidavam no ambiente escolar. Para essa discussão a contribuição de Norbert Elias ao debate faz-se necessária. Em lapidar estudo (ELIAS; SCOTSON, 2000) o autor alemão apontou a existência de algumas “constantes estruturais” nas relações entre grupos “estabelecidos” e outsiders. A constante universal usada para pensar tais situações na vida dos estudantes bolsistas é aquela que Elias qualifica enquanto sendo “meios de controle sociais”. Esses “meios” — que a presente pesquisa denomina enquanto barreiras — servem, ainda que de modo muitas vezes não explícito e premeditado pelo grupo estabelecido, para manter a devida distância entre os grupos, reafirmando dessa maneira o tabu entre os indivíduos.

Mesmo de forma não deliberada e consciente, a “ingênua” pergunta “para onde você foi nas férias?”, como relatado por Luan, cumpre essa função. O deslumbramento provocado em Vanessa pela ida à casa de uma amiga, ao mesmo tempo em que não cogitava sequer levá-la em sua própria residência, também lembra à jovem de que existem lugares onde ela pode visitar (a casa da amiga), mas que não é “seu”, não pertencem a “seu mundo”. O incômodo de Paulo com relação à proibição de falar gírias e “ser mais julgado” do que os “outros” propicia ao jovem encarar uma evidente barreira que demonstra que em muitos momentos é um outsider, a despeito de usar o mesmo uniforme de seus colegas.

O terreno da linguagem também é explorado por Carlos quando diz que o jeito de falar e os temas das conversas “no mundo dos ricos”, leia-se sua escola privada, são diferentes daqueles percebidos na região onde mora. A barreira percebida por Paula foi mais explícita ainda. A jovem relatou dois momentos em que ouviu em sua escola falas depreciativas em relação a sua pessoa, tendo como pano de fundo, o imaginário preconceituoso do lugar de onde vinha. Afirmou que já a chamaram de “bruta” enquanto jogava bola porque “geralmente quem vem de comunidade é assim mesmo” e de que já falaram que ela era “favelada”, “que mora no morro”. Embora Eduarda tenha sido a jovem mais contida em sua entrevista, também relatou momentos constrangedores, como quando presenciou um amigo não bolsista dirigir a outro colega bolsista uma “zoação” dizendo que este só havia conseguido adquirir roupas caras para uma viagem da escola porque a mãe havia comprado “no camelô”.

Essa análise é importante para desmistificar o possível entendimento de que a experiência proporcionada pela bolsa de estudo só contém pontos positivos. Por mais que o quadro, no geral, não seja avaliado de modo negativo, essa experiência não vem sem custos — tanto emocionais quanto financeiros.13

Conclusões

Com a escrita deste artigo pretendeu-se sublinhar os principais resultados de uma pesquisa de mestrado. Tal pesquisa tinha por objetivo analisar as trajetórias estudantis de seis jovens de camadas populares que cursavam a etapa do ensino médio em duas escolas privadas da região da Grande Tijuca/RJ. Tais instituições tinham seus públicos compostos majoritariamente por jovens das camadas médias da sociedade.

Lançando mão da estratégia metodológica de entrevistas com os jovens e, também, com os principais adultos responsáveis por essa trajetória, a pesquisa alcançou alguns resultados. Destacou-se a presença constante e relevante das mães nas trajetórias desses jovens. Esse papel era desempenhado seja na presença em eventos da escola, no acompanhamento — dentro de seus recursos materiais e simbólicos — dos estudos no ambiente doméstico e no estímulo para a consecução de uma bolsa que permitisse aos jovens saírem do ambiente público de ensino. Ainda no ambiente do lar mostrou-se relevante o fato de que dos entrevistados homens, nenhum mostrou grandes responsabilidades para com o trabalho doméstico, as passo que esse cenário era percebido no caso das jovens.

Foi também possível afirmar que esses jovens viviam em uma condição peculiar. Tal condição é aqui denominada como um entremeio. Para seus amigos das favelas onde habitavam ou antigos colegas da escola pública em que estudavam antes de conseguirem a bolsa, o fato de estudarem em uma escola privada com um público marcadamente de classe média era condição necessária para que se tornassem “playboys” ou “patricinhas”. Contudo, dentro do ambiente de suas escolas privadas, eles continuavam sendo os “favelados”, “moradores de comunidade”. Dessa maneira, para um grupo, ser estudante de uma escola privada era condição suficiente para que fossem desvinculadas desses jovens suas “identidades” mais ligadas às camadas populares, ao passo que para outro, essa condição não era suficiente para que os jovens bolsistas se tornassem “iguais” ao público da escola privada.

É fundamental deixar nítido que atestar esse lugar de entremeio percebido através dos relatos dos jovens em suas entrevistas não significa afirmar que viviam uma crise de identidade. É justamente o contrário que merece destaque. Pelas análises empreendidas, fica manifesta a intenção e o esforço de construírem suas identidades e trajetórias de maneira autoral, primando pelo protagonismo nessa caminhada. Para cumprir tal engenho, os jovens lançavam mão de recursos históricos e sociais que estavam ao alcance para se afirmarem enquanto cidadãos numa sociedade complexa e desigual como a brasileira.

Afinal, o saldo da experiência proporcionada pela bolsa era valorado positivamente tanto pelos jovens como pelos responsáveis. Os motivos basicamente eram dois. A experiência da bolsa era valorizada pela possibilidade da ampliação de conhecimentos formais que propiciariam aos estudantes uma chance maior de adentrarem no ensino superior, e também, pela possibilidade de alargamento da rede de relações construídas a partir da lida com o público da escola privada.

Contudo, essa trajetória entendida enquanto vitoriosa e positiva não vinha sem seus percalços. Em suas escolas privadas os estudantes bolsistas passaram por momentos difíceis, onde o preconceito ficava manifesto. Tais momentos são aqui denominados enquanto barreiras materiais e simbólicas que cumpririam a função de “lembrar aos bolsistas quem eles são”, ou seja, deixar marcada a diferenciação entre o nós (não bolsistas e membros das camadas médias da sociedade) e eles (bolsistas membros das camadas populares).

Vale a pena ainda ser destacado que a proposta de uma pesquisa que privilegia a relação entre setores privados da educação básica e indivíduos provenientes das camadas populares da sociedade guarda seu frescor nos dias de hoje. Percebe-se atualmente uma investida significativa de setores empresariais, antes muito concentrados no ensino superior, na educação básica brasileira. Esse cenário é aprofundado quando se constata um esforço de muitos órgãos públicos para estreitar ainda mais a relação com o empresariado. Pode-se mesmo afirmar que tal quadro se apresenta enquanto uma tendência dos últimos tempos.14 Sendo assim, é fundamental questionar como se daria essa interseção entre o público e o privado. Mais especificamente: como o indivíduo não acostumado com valores e comportamentos reinantes no ambiente de uma escola privada que se direciona historicamente ao público abastado da sociedade lidaria com esse cenário? Essa pergunta, como ficou evidente nas linhas acima, esteve presente e norteou todo o percurso da pesquisa em questão.

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  1.  Por “camadas populares” compreendem-se jovens oriundos de família com baixo poder aquisitivo e com acesso limitado e intermitente a certos bens de consumo mais notados em camadas médias e superiores da sociedade — seja no campo da educação, saúde e lazer. Essa definição faz-se necessária uma vez que o termo pode assumir certa polissemia no campo das Ciências Sociais. 

  2.  Alguns documentos que se inserem nessa discussão são: o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e a Lei de Cotas (2012).

  3.  Esse foi o caso nas trajetórias de Eduarda, Paulo e Paula, quando as mães desempenharam papel fundamental para que as bolsas de estudo fossem garantidas. Seja negociando diretamente com a direção escolar (caso dos dois primeiros), seja pesquisando na internet e acompanhando e incentivando a filha em todas as etapas do processo seletivo para obtenção do desconto (caso de Paula).

  4.  Das responsáveis entrevistadas, apenas a mãe de Paulo possuía graduação. O ponto máximo das trajetórias das mães de Eduarda, Vanessa e Paula foi a conclusão da etapa do ensino médio. Tanto os pais de Carlos como a mãe de Luan interromperam seus estudos na etapa do ensino fundamental. 

  5. Esse cenário torna-se ainda mais dramático quando se considera que essas mães não possuíam apenas um (a) filho (a).  

  6. Para uma discussão mais aprofundada sobre a produção do gênero na sociedade capitalista a partir da perspectiva da divisão sexual do trabalho ver Federici (2017). 

  7. Evidentemente, para uma análise melhor desse ponto, faz-se necessário uma pesquisa mais detida também com os estudantes não bolsistas das respectivas escolas privadas. Entretanto, tal empreitada fugiria aos limites da pesquisa em questão, tendo a análise feita como referência os depoimentos dos jovens bolsistas e de seus responsáveis colhidos nas entrevistas.

  8. Observando o percurso francês de democratização no acesso aos sistemas de ensino e pensando a relação entre escola e exclusão, François Dubet afirma que "a escola republicana não participava da exclusão social porque a grande maioria dos jovens, numa França operária e camponesa, tinha acesso ao emprego independentemente de suas qualificações escolares [...] A escola não participava da exclusão porque a influência dos diplomas no acesso ao emprego era fraca e controlada.’’ (DUBET, 2003, p. 33)

  9. Alusão à Favela do Boréu, local de moradia da jovem à época.

  10. Praias localizadas na zona oeste e na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, respectivamente.

  11. Essa foi uma categoria presente em muitas entrevistas. Por “vida melhor” deve-se compreender uma carreira profissional mais lucrativa financeiramente do que aquelas vividas pelos responsáveis.

  12. Para ver mais sobre a discussão consultar: Becker (2008).

  13. Foi uma constante nos depoimentos dos responsáveis e dos jovens a indicação de que ter uma bolsa de estudo não significava ausência de custos financeiros. Os gastos poderiam ir desde o transporte até o colégio, passando pelos custos com materiais escolares, até o preço de saídas com os amigos para locais caros.

  14. Para aprofundar a discussão ver Adrião (2015).

Resumo:
O presente artigo aborda os resultados de uma pesquisa de que teve como objetivo central compreender a trajetória de jovens bolsistas provenientes de camadas populares que cursaram a etapa do ensino médio em duas escolas privadas da região da Grande Tijuca/RJ. Através de entrevistas, destacou-se o sentido positivo atribuído a essas experiências, tendo em vista a chance de ingresso no ensino superior e também pela possibilidade de contato com um público diferente daquele encontrado nos espaços domésticos. Também puderam ser percebidas dificuldades, como situações embaraçosas dentro das escolas privadas e o lugar intermediário muitas vezes ocupado pelos jovens: eram considerados “playboys” ou “patricinhas” pelos seus amigos fora da escola privada e “favelados” por aqueles que dividiam os mesmos bancos escolares.

Palavras-chave:
Trajetórias; camadas populares; estudantes bolsistas.

 

Abstract:
This article addresses the results of a research that aimed to understand the trajectory of young people from popular classes who, through scholarships, attended high school in two private schools located in the Tijuca neighborhood of  Rio de Janeiro. Through interviews, the mainly positive sense assigned to these experiences was highlighted, especially considering the possibility of entering college and the contact developed with a different environment from that found on their home and leisure spaces. Nevertheless, certain difficulties were also noticed, such as embarrassing situations inside the private schools and the intermediate place frequently occupied by these young people: they were considered “preppies” from their friend outside school, and “slummed” by those who shared the same school benches.

Keywords:
Trajectories; popular layers; scholarship students.

 

Recebido para publicação em 04/04/2020
Aceito em 06/10/2020