Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.a06
ISSN: 2318-4620

 

 

Estilos de vida e hábitos de consumo:
uma análise de anúncios publicitários de periódicos classistas a partir do conceito Habitus de Pierre Bourdieu (Florianópolis, década de 1930)

 

Gustavo Tiengo Pontes OrcID
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
gustavotpontes@gmail.com

 

A proposta deste texto1 é realizar um exercício de análise capaz de explorar as potencialidades de operar a noção Habitus, a partir de Pierre Bourdieu,2 para o estudo de anúncios publicitários presentes em periódicos de grupos ou associações sócio profissionais da cidade de Florianópolis na década de 1930. Parte-se do pressuposto que anúncios publicitários podem ser analisados em seu potencial de “frestas” que oportunizam levantar indícios sobre estilos de vida, valores e classificações por parte de certos grupos sociais.

Os periódicos que serão abordados no decorrer deste estudo são os seguintes: “A voz do operário: órgão das classes trabalhadoras”3 (Ano 1, n. 1, 02/04/1932); “O Trabalho: Órgão das Classes Trabalhadoras” (Ano 1, n. 10, 13/08/1932); “Jornal dos farmacêuticos: Mensário cientifico e de interesses técnico-profissionais da Farmácia e do Laboratório” (Ano 1, n 1, nov./1931 & Ano 1, núm. 10 e 11, ago-set/19324); “Comércio, indústria e lavoura: publicação quinzenal da união dos varejistas de Florianópolis” (Ano 1, n. 2, 22/09/1934 & Ano 1, n. 3, 06/10/1934).

Todos eles foram impressos em Florianópolis e, a partir do que pode ser percebido pela leitura de seus artigos fundadores e demais textos no decorrer de suas páginas, eles buscavam estabelecer um maior diálogo com os membros de suas respectivas classes. Reconhece-se, dessa maneira, as limitações e potencialidades dessa seleção, pois, diferentemente de jornais diários, por exemplo, que circulavam no período e que buscavam atender uma maior variedade de públicos, sugere-se que os anúncios publicitários presentes nos periódicos que representavam grupos ou associações sócio profissionais oportunizam perceber de maneira mais efetiva diferenças de estilos de vida pelo recorte da classe social.

É possível dizer que Habitus pretende oferecer um modo de compreensão dos agentes da sociedade em que os mesmos não são nem vistos como inconscientes, isto é, sujeitos passivos a uma série de representações que determinam mecanicamente suas ações, nem como portadores de uma racionalidade exacerbada, capazes de calcular todas as suas ações. A noção pode ser entendida como uma proposta científica que pretende equilibrar e analisar os demais agentes em constante construção, sendo que, separar sua compreensão nessas duas alternativas não dá conta da complexidade de explicar suas ações.5

Assim, a fim de explicar o modo como começou a utilizar a noção Habitus em seus estudos, Pierre Bourdieu (2001) expõe que:

(...) [O Habitus] permitia-me romper com o paradigma estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, a da economia clássica e do seu homo economicus que regressa hoje com o nome de individualismo metodológico. Retomando a velha noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em habitus, eu desejava reagir contra o estruturalismo e a sua estranha filosofia da ação que, implícita na noção levi-straussiana de inconsciente, se exprimia entre os althusserianos, com o seu agente reduzido ao papel de suporte — Trager ­– da estrutura. (BOURDIEU, 2001, p. 61).

Tal debate esteve presente na elaboração do modo como Habitus foi mobilizado por Bourdieu. Além disso, convém ressaltar que, se o Habitus é uma ferramenta teórica científica desse autor, deve-se estar claro que há um papel ativo do agente pesquisador para a construção do que irá se entender como Habitus de determinado agente ou grupo, que será construído em certo contexto, período etc. Em outras palavras, ressalta-se que há um processo de construção — e, portanto, também uma redução a partir de um ponto de vista (BOURDIEU, 2017, p. 46) — a fim de estudar a sociedade por esse viés. Isso não quer dizer que se caia em um relativismo do que se estuda, mas sim que se deve ter claro que houve opções teóricas e metodológicas para se conduzir tal estudo, cujas contribuições não deixam de estar ligadas com a realidade.

Dentre os principais estudos do sociólogo francês, destaca-se o investimento de pesquisa para a obra “A distinção”, em que Habitus possui um papel chave para compreender socialmente a construção ou manifestação de diferenças de apreciação, consumo ou gosto entre diferentes grupos da sociedade francesa para o período estudado, além dos distintos significados para o modo como tais classes e frações de classe dotaram de sentido suas ações. Segundo o autor:

(...) o habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium divisionais) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida (grifos do autor). (BOURDIEU, 2007, p. 162).

Ou seja, Bourdieu propõe uma ferramenta teórica e metodológica que pode auxiliar a desnaturalizar ou desvelar que as demais ações, mesmo as mais cotidianas, que nos levam a consumir tal produto ao invés de outro ou possuir certo gosto que leva determinado agente a ir assistir a uma peça teatral e não a outra atividade cultural, podem ser explicados e compreendidos através de uma investigação desse princípio gerador de práticas.

Esse princípio gerador e unificador de todas as práticas não foi nem inculcado em um vazio social nem possibilita antever o futuro de alguém,6 pois, o Habitus não é um destino, mas sim um sistema de disposições aberto. Quando se compreende Habitus dessa maneira, convém destacar e problematizar como ocorre o processo de interiorização desse princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e sistema de classificação. Sobre isso, a autora Ione Ribeiro Valle (2008) aponta que o Habitus pode ser compreendido como:

Disposições inculcadas pelas práticas familiares e sociais, que agem como automatismos nas maneiras de ser, de pensar, de julgar, designando o comportamento regular sem ser conscientemente coordenado e regido por alguma regra. (...) O habitus assegura a interiorização da exterioridade, ajustando a ação do agente à sua posição social. (...) As disposições assim produzidas são igualmente estruturadas, refletindo inevitavelmente as condições sociais no interior das quais elas foram adquiridas. As disposições estruturadas são duráveis: elas estão enraizadas no corpo de tal maneira que perduram ao longo da existência dos indivíduos e operam quase que inconscientemente, tornando-se dificilmente acessíveis a uma reflexão e a uma transformação consciente. (VALLE, 2008, p. 105-106).

Dessa maneira a fim de compreender e construir o que se entende como Habitus — que pode ser entendido também como uma história incorporada7 — de determinado grupo ou agente, é necessário investigar as demais instâncias socializadoras pelas quais se passou e, sobretudo, construir o espaço social de sua trajetória. Um exemplo se dá no modo como Bourdieu estudou o posicionamento de diferentes Professores Franceses em maio de 1968, assim, apesar das particularidades desse evento e suas consequências, a fim de compreender os efeitos desse acontecimento nas práticas desses agentes, o autor escreve:

Os habitus e os interesses associados a uma trajetória e a uma posição no espaço universitário (faculdade, disciplina, trajetória escolar, trajetória social) estão no princípio da percepção e da apreciação dos acontecimentos críticos e, desse modo, da mediação através da qual os efeitos desses acontecimentos se efetuam nas práticas (BOURDIEU, 2017, p. 236-237).

Assim, se o habitus nos auxilia a compreender as escolhas tomadas por agentes, o espaço onde estas ocorrem nunca é um vazio social, muito menos, conforme já foi escrito, os ambientes de interiorização desse conjunto de predisposições. Portanto, é necessário um esforço de construção desse espaço, em que tais escolhas não foram acidentais, mas que estão associadas a diferentes maneiras de significar e valorizar dentre os vários grupos sociais. O estudo do habitus deve levar em consideração esses diversos Campos em que ocorreu esse processo de interiorização dessa estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas. No caso de estudar um Campo, pode-se destacar como este é um espaço de disputas, cuja lógica reside muito mais no modo como se dão as suas relações, suas regras de funcionamento etc., do que somente na análise dos agentes que ali fazem parte.

Sobre esse aspecto, convém retomar o que o autor propõe no texto “A ilusão biográfica”:

O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra (...) evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale a dizer que não podemos compreender uma trajetória (...) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado — pelo menos em certo número de estados pertinentes — ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis (BOURDIEU, 1996, p. 190).

Ou seja, é possível perceber uma articulação entre essas diferentes ferramentas teóricas construídas ou ressignificadas pelo autor a fim de conduzir os seus estudos. A partir dessas considerações, apresenta-se a proposta de discussão em que se pretende mobilizar Habitus. Conforme já foi exposto, serão abordados 4 periódicos distintos, sendo que eles possuem algumas características gerais que podem ser pontuadas separadamente.

“A Voz do Operário” apresentava 4 páginas, tendo como diretor: Irineu Pavan e gerente Silvino Alves. Foi uma publicação semanal cujo preço de seu número avulso era de $200. Em suas páginas, em linhas gerais, são encontrados textos que defendem a união entre os trabalhadores, principalmente, operários, a defesa do sindicato e incentivo à filiação, informações específicas para trabalhadores, leis sobre a temática do trabalho em geral, além de uma série de mensagens curtas endereçadas aos mesmos para difundir o seu programa. Dentre essas mensagens estão: “A coragem sem a força é ridícula; a força sem coragem é desprezível. / Operários! Uni-vos para alcançardes a felicidade dentro das normas sindicais”. (A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 1). No impresso está escrito que “A Voz...” foi elaborado por operários e que receberam remessas por parte de diversos sindicatos, sugerindo uma boa circulação desta folha. Somente a página de nº 4 contou com anúncios publicitários, sendo possível contabilizar 11 anúncios distintos.

Sobre o periódico “O Trabalho”, a edição disponível contou com 6 páginas, sendo que era a de nº10. Apesar de não ter sido possível encontrar outras edições,8 sugere-se uma maior longevidade da mesma, diferentemente de “A Voz...” que, por sua vez, pode ter sido encerrado logo após o primeiro número. Pode-se supor também que, se “A Voz...” teve que logo encerrar suas atividades, talvez “O Trabalho” tenha, de alguma maneira, buscado contemplar seu conteúdo ou mesmo substituir tal publicação, o que poderia explicar também a ausência de novos números de “A Voz...”.

O conteúdo de “O Trabalho” estava centrado em notícias sobre questões trabalhistas, sindicatos, acontecimentos locais relacionados envolvendo disputas entre patrões e empregados etc. Assim como em “A Voz...”, “O Trabalho” também parecia buscar informar e instruir seus leitores sobre direitos ou lutas que eram consideradas necessárias. Destaca-se também a presença uma quantidade significativa de páginas com informações específicas sobre a Sociedade Beneficente dos Estivadores de Florianópolis. Não foi possível encontrar dados nem sobre a sua periodicidade nem sobre o seu preço, supõe-se que este era distribuído gratuitamente para interessados ou membros. Os anúncios publicitários cobriam a página 5 (6 anúncios distintos) e foi possível encontrar 1 anúncio na página 6.

Com relação ao “Jornal dos Farmacêuticos”, foram encontradas duas edições, a de nº1 e um único exemplar conjunto dos números 10 e 11. A primeira contou com 4 páginas, e a outra com 6 páginas. Na edição de nº 1 está escrito que a folha era de propriedade e direção do Farmacêutico Ney Luz, sendo que sua assinatura anual custava 10$000 (com os sócios da Associação Catarinense de Farmacêuticos recebendo um abatimento de em seu custo9). A redação e administração localizava-se na Rua Trajano 2, além de também estar escrito, já no subtítulo do impresso, que este era um “mensário científico e de interesses técnico-profissionais da Farmácia e do Laboratório” (JORNAL DOS FARMACÊUTICOS, nov. 1931, p. 2).

No nº 10 e 11 há outros nomes de responsáveis: Diretor Fco. Ney Luz; Redatores principais Prof. Henrique Brüggemann e Fco. João di Bernardi; Gerente Fco. Osny Pinto da Luz. A redação e administração estavam localizadas na Rua Esteves Júnior, 178, com a gerência na Rua Felipe Schmidt, 21, Farmácia Eliseu. O mesmo valor era cobrado para a assinatura anual. (JORNAL DOS FARMACÊUTICOS, ago./set. de 1932, p. 2).

Em linhas gerais, o conteúdo desses dois números defende a importância da associação dos farmacêuticos, apresenta leis referentes à profissão e textos com conteúdo específico acerca de fórmulas ou medicamentos. Raros eram os textos de caráter noticioso, além do impresso conter pouquíssimos anúncios publicitários. Em alguns casos, havia indicações de leituras como conteúdo corrente do mesmo ligados à prática da farmácia, que não foram considerados como anúncios. Foram encontrados somente 2 anúncios, cada um deles presente na última página de cada número do periódico.

Os dois números de “Comércio, Indústria e Lavoura” possuíam 4 páginas, sua distribuição era gratuita e anunciavam que possuíam uma tiragem de 5.000 cópias, conforme exposto logo em sua capa. Era uma publicação quinzenal que teve como diretor sempre João di Bernardi, como redator Sebastião B. Vieira e Miguel Daux na gerência. Os dois números de “Comércio...” contaram com uma grande quantidade de anúncios publicitários, todas as páginas dos dois números tiveram algum anúncio publicado. Sua sede localizava-se na Rua Felipe Schmidt n. 10 (3º andar da confeitaria Chiquinho). A sua publicação tinha como objetivo propagar a:

União do comércio, indústria e lavoura em nosso Estado (...). [O jornal] Será o veículo pelo qual se propagará a unificação das classes, doutrinando-se, por ele, todos os são princípios donde se emanará a força, a coesa e inquebrável força que há de fazer-nos a vitória de todas as nossas reivindicações. (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 22 de set. 1934, p. 1).

No decorrer de suas páginas há artigos ou textos que defendem a união dos varejistas e sua associação, dados sobre atividades comerciais de algumas cidades de Santa Catarina, e outros textos abordando temas econômicos. Convém notar as referências a outras cidades em certos artigos, sugerindo que a circulação desta folha não era restrita a Florianópolis, além da presença de um texto em alemão em cada um dos números disponíveis (n. 2, p. 4 / n. 3 p. 3). Deve-se lembrar que algumas das cidades catarinenses, principalmente as que faziam parte da região do Vale do Itajaí, receberam grande quantidade de imigrantes de origem alemã, que preservavam a sua língua original, contando inclusive com escolas neste idioma.10 Além disso, as cidades do Vale do Itajaí destacavam-se por sua dinamicidade econômica.

A partir desses dados presentes nas próprias edições dos periódicos, foi elaborado um quadro para auxiliar na visualização:

Quadro com informações sobre periódicos de associações sócio-profissionais de Florianópolis nos anos 1930

Periódico /

Edições disponíveis
Informações Gerais

A Voz do Operário

Ed. 1 — 02/04/1932

Quantidade de páginas: 4

Periodicidade: Semanal

Responsáveis: Inineu Pavan (Diretor); Silvino Alves (Gerente); Diretor Tesoureiro (João Silva)

Preço para número avulso: $200

Anúncios publicitários na página 4 (11 anúncios)

O Trabalho

Ed. 10 — 13/08/1932

Quantidade de páginas: 6

Anúncios Publicitários na página 5 e 6 (7 anúncios no total))

Jornal dos Farmacêuticos

Ed. 1 — nov. 1931

Ed. 10 e 11 — set. 1932

Quantidade de páginas, respectivamente: 4 e 6

Periodicidade: Mensal

Responsáveis: Ney Luz (Proprietário); Henrique Brüggemann (Redator); João di Bernardi (Redator); Osny Pinto da Luz (Gerente)

Preço: 10$000 (Assinatura Anual)

Endereço ed. 1: Rua Trajano 2 (Redação e administração);

Endereço ed. 10 e 11: Rua Esteves Júnior 178 (redação e administração) e Rua Felipe Schmidt 21 (Gerência)

Anúncios publicitários na última página de cada edição (2 anúncios no total)

Comércio, Indústria e Lavoura

Ed. 2 — 22/09/1934

Ed. 3 — 06/10/1934

Quantidade de páginas: 4

Periodicidade: Quinzenal

Responsáveis: João Di Bernardi (Diretor); Sebastião B. Vieira (Redator); Miguel Daux (Gerência); Mario Luiz (Encarregado Comercial)

Preço: Distribuição Gratuita

Tiragem: 5 mil cópias

Endereço: Rua Felipe Schmidt n. 10, 3º andar da confeitaria Chiquinho (Sede)

Anúncios publicitários em todas as páginas das edições (em torno de 50 anúncios no total)

Fonte: Produção do próprio autor, 2021.

Não foi possível encontrar em nenhum desses impressos informações específicas sobre a produção de seus anúncios publicitários, se eram enviados prontos para a publicação ou se eram construídos pelos próprios redatores etc. O que é possível argumentar, inicialmente e que será retomado no decorrer deste trabalho, é que há indícios claros de que alguns deles foram elaborados ou adaptados tendo em vista o público leitor “ideal” da folha em questão, principalmente quando se comparar certos itens que foram publicados no jornal das classes comerciais e em “A Voz...” e “O Trabalho”.

Dentre os impressos da época, há algumas menções nesse sentido, isto é, de que os responsáveis pelos periódicos poderiam estar envolvidos na elaboração dos anúncios publicitários. Na contracapa de Revista “Renovação” está escrito o seguinte: “Renovação faz uma propaganda inteligente dos seus anunciantes / Anunciar na RENOVAÇÃO é ganhar tempo e dinheiro. / Peçam a tabela de preços de anúncios de RENOVAÇÃO” (RENOVAÇÃO, 30/09/1931, p. 36). A primeira frase parece sinalizar que os responsáveis pela Revista poderiam participar, em algum grau, da construção dos anúncios a não ser que, é claro, que fosse enviado um anúncio fechado para o impresso. Ademais, havia na cidade locais especializados em produzir anúncios, conforme exposto em uma propaganda onde está escrito: “Procure hoje mesmo a Anunciadora Catarinense / A prosperidade nos negócios depende da sua propaganda / José Rodrigues Fonseca / Praça 17 de Novembro n. 3 / Florianópolis Sta. Catarina”. (O ESTADO, 02/01/1929, p. 4).

Estes exemplos foram apresentados para demonstrar as possibilidades que existiam para a elaboração de anúncios publicitários, desde os que poderiam ser feitos ou adaptados na redação de um periódico, ou montado em uma agência especializada. Posteriormente também serão tecidas considerações sobre as diferenças gráficas com relação alguns dos anúncios que, de certa forma, também podem servir como indício do grau de profissionalismo da elaboração de cada um dos periódicos.

Antes de tecer considerações específicas sobre os anúncios publicitários, um outro aspecto de “A distinção” pode ser apresentado. Segundo o sociólogo francês, o habitus é o produto da incorporação de uma percepção do mundo dividido em classes sociais. Assim, o Habitus, que é uma estrutura estruturada que funciona como um princípio de divisão em classes, deve ser compreendido a partir das propriedades intrínsecas e das relacionais inerentes à sua posição no sistema de condições e diferenças, pois, a identidade social define-se e afirma-se na diferença. (BOURDIEU, 2007, p. 164).11

A partir dessa discussão, ou seja, como o Habitus está relacionado a uma visão de mundo que é produto da incorporação da divisão em classes sociais e da percepção dessas divisões, a análise de determinada identidade social não prescinde do estudo que relacione o que foi encontrado em outros grupos em outras posições. Tal aspecto pretende fundamentar o modo como se dará esta análise, priorizando ao máximo comparar similaridades, diferenças ou mesmo ausências entre o que foi publicado em cada um dos periódicos. Assim, um aspecto que pode ser evidenciado primeiramente se dá com relação aos tipos de produtos que eram anunciados.

Um primeiro produto que pode ser debatido são os impressos que foram publicizados nos periódicos. Foram encontrados anúncios dessa natureza no “Jornal dos Farmacêuticos” (n. 1 p. 4; n. 10 e 11 p. 6) e no “Comércio...” (n. 2 p. 4; n. 3 p. 2).12 Cada um desses números teve um único anúncio desse tipo, assim, respectivamente, as indicações foram dos seguintes produtos: Revista mensal ilustrada “Renovação” editada em Florianópolis13; indicação de livros da Livraria do Globo com temática da Rússia atual; livros comerciais, envelopes, faturas, notas etc. da Livraria Central de Alberto Entres de Florianópolis para os dois números de “Comércio...”.

É possível sugerir, a partir da presença desses anúncios, uma maior familiaridade com a palavra escrita e impressa desses dois grupos, em comparação com os que eram representados pelos dois outros periódicos, mais ligados a classes populares. Deve-se levar em conta também a necessidade prática dos itens anunciados pela “Livraria Central” para muitos comerciantes e, inclusive, farmacêuticos, pois, ambos necessitariam de materiais para organizar seus estoques, anotar vendas etc., no entanto, o que se propõe é sugerir que a presença de anúncios comerciais dessa natureza possa ser um indicativo de que membros desses grupos seriam mais dotados a se apropriar de itens que fazem parte da Cultura Impressa.14

Convém mencionar também um texto presente na edição de n. 3 p. 4 de “Comércio...”, como conteúdo regular do periódico, que divulgou a “revista de propaganda da Companhia Construtora Kosmos” do Rio de Janeiro. A nota completa é a seguinte:

Revista ‘Kosmos’ / Temos em mãos um exemplar da excelente revista de propaganda da Companhia Construtora Kosmos, do Rio de Janeiro, número esse relativo ao mês de outubro corrente e que nos foi enviado pelos Srs. Bousfield & Cia. Representantes da ‘Ksomos’ nesta capital. / Cheia de belos contos e poesias e ainda bem desenvolvido serviço de ilustrações fotográficas, a revista ‘Kosmos’ do corrente mês apresenta-se verdadeiramente interessante e digna de ser lida. Somos gratos à gentileza dos srs. Bousfield & Cia. Desta praça. (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 6 de out. 1934, p. 4).

São diversos os aspectos deste texto que podem ser evidenciados, tais como o envio e troca de periódicos como uma estratégia para firmar e manter laços ou as conexões entre essas duas praças comerciais, por exemplo. No entanto, a questão que se pretende levantar, diante a presença de um escrito desta natureza e quando se compara este com o conteúdo de outros periódicos em foco deste estudo, é que tal matéria corrobora com a percepção de uma maior familiaridade com impressos em geral por parte do grupo responsável por “Comércio...”.

Nesse sentido, ao se partir do pressuposto que em todos os periódicos em análise são apresentadas notícias ou matérias ligadas com o cotidiano de cada classe, a presença de certos textos ou anúncios sobre livros ou revistas, que em alguns casos também poderiam fugir à necessidade profissional, pode sugerir que tais itens operariam como sinais distintivos de classe. Nesse viés de análise, o periódico parece ocupar um papel de intermediário15 entre produtores e consumidores na qual a posse de itens dessa natureza talvez possa ser interpretada como parte de um interesse desinteressado, isto é, algo que foge à necessidade prática, mas que seria cultivado por grupos específicos da sociedade que foram dotados, através de diferentes processos formativos,16 das ferramentas para decodificá-los17 e, principalmente, do tempo para apropriá-los.

Apesar da presença de um breve texto presente em “A voz...” sobre a história do livro,18 é possível sugerir que os grupos representados em “Jornal dos Farmacêuticos” e “Comércio...” cultivavam ou buscavam se apresentar como dotados da prática de leitura também como parte de seu lazer. É certo que também deve-se levar em consideração a distância possível entre os rendimentos dos trabalhadores visados pelos periódicos “A Voz...” e “O Trabalho” dos outros, o que dificultaria também objetivamente o acesso a livros, no entanto, sugere-se que a presença de anúncios possibilita perceber comparativamente diferentes predisposições no conjunto da sociedade.

Dentre outros anúncios que sugerem uma distância objetiva no acesso a certos itens entre os grupos responsáveis por cada um dos periódicos, pode-se destacar a presença em “Comércio...” (n. 2 p. 2) do seguinte anúncio: “Rádio ‘Cacique’ / o melhor no gênero / Filomeno & Cia. / Agente Geral no Estado / Rua Conselheiro Mafra n. 82 / Telefone 1257”.19 (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 22 de set. 1934, p. 2). Tendo em vista que durante os anos 1920 o rádio era um meio de comunicação ligado às camadas altas da sociedade e que somente a partir de 1930, principalmente com a autorização de propagandas em março de 1932, este começaria se popularizar, conforme expõe Sheila Schvarzman (2006) pode-se sugerir a publicidade deste item em somente no jornal “Comércio...” poderia estar associada com um hábito restrito para boa parte da sociedade local.20

Apesar das limitações em se basear em somente um anúncio dessa natureza, sua raridade também desperta a atenção, pois, talvez assim como no caso das indicações de impressos que, em certo sentido, fogem à necessidade profissional de que puderem ser compreendidos como emblemas de classe, também parece ser possível sugerir que o rádio seria um bem de luxo com uma função semelhante. Nesse caminho, a propaganda em uma folha voltada a classes de um maior poder aquisitivo, seria o indício de interesses de consumidores em sua posse com uma possibilidade real de realizar a compra.

Nessa direção, um outro anúncio que somente foi encontrado no jornal “Comércio...” (em suas duas edições disponíveis) foi o do “Edifício La Porta Hotel”. Assim está escrito:

Edifício La Porta Hotel / Máximo Conforto / O mais moderno do Estado — Magnífica situação — 80 quartos — 18 banheiros — 12 confortáveis apartamentos — Hall — Bar — Amplo salão de refeições — Salas de amostras — Lavanderia própria a vapor — Rede telefônica nos quatro pavimentos. / Diárias inclusive refeições e banhos quentes 12$000 / Proprietários: Miguel La Porta & Cia. / Praça 15 de novembro — teleg: LAPORTA / Fone Portaria 1.320 — Gerência 1.578. (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 22 de set. 1934, p. 1).

A presença de um anúncio desta natureza em um órgão de classe comercial pode ser explicada, inicialmente, por comerciantes precisarem circular entre diferentes cidades do Estado, contudo, o modo como o Hotel é apresentado parece associá-lo não somente a uma necessidade prática cotidiana. No caso deste anúncio, o uso de termos como “Máximo Conforto”, “Moderno” e “Magnífica Situação”, talvez possam buscar distingui-lo de outras acomodações disponíveis na cidade, que não seriam adequadas para quem buscava um espaço com tais características, isto é, não somente em busca de qualquer local para acomodar-se. Ao mesmo tempo, deve-se levar em consideração que este tipo de conteúdo estava sendo produzido em uma cidade que durante a 1ª República atravessou uma série de transformações sociais e espaciais. Era uma sociedade que passava por um processo de aburguesamento e que ansiava pela modernidade.21

Com relação a outros anúncios, pode-se chamar a atenção também para o seguinte que foi publicado em “A Voz do Operário”: “Cine Glória / O Cinema do Povo / Inauguração dia 10 do [mês] corrente / Preços — Cavalheiros — 2$000; Senhoras — 1$500 e crianças 1$000” (A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 4). Convém evidenciar inicialmente o modo como se dá apresentação desse cinema, que é associado como um espaço do povo a fim de, provavelmente, gerar uma maior identificação com os possíveis leitores desse periódico. Nesse sentido, pode-se supor que a presença do preço da entrada também possa ser compreendida como um fator necessário de ser exposto, tendo em vista o público visado teria rendimentos mais limitados.

Antes de tecer mais considerações sobre esse anúncio, com relação à temática do cinema em Florianópolis em 1928 foi publicado um periódico chamado “Cine-Semana: Órgão da Empresa Cinematográfica Victor Busch”. Este foi editado semanalmente em Florianópolis22 e, pelo que é possível perceber, este estava relacionado com o cinema “Cine Variedades” que exista na cidade. Assim, neste impresso havia textos sobre seus lançamentos, além de publicações sobre festas e bailes de clubes da cidade, crônicas sociais, dentre outras notícias sobre filmes e cinema em geral. Pode-se perceber que seu público-alvo eram as classes mais abastadas da cidade, principalmente também tendo em vista a presença de anúncios publicitários de veículos, ou seja, sugerindo uma maior elitização do “Cine Variedades”.

Pode-se sugerir que a associação do “Cine Glória”, presente em “A Voz...”, como um “Cinema do Povo” poderia estar relacionado com a presença deste outro espaço mais elitizado, pois, além de barreiras financeiras, uma série de protocolos de conduta ou vestuários requeridos poderiam tornar o “Cine Variedades” um ambiente desconfortável para os potenciais leitores de “A Voz...”. Nesse caminho, se havia a necessidade chamá-lo como popular, isso também poderia talvez pressupor a existência de outro espaço que não o seria. Além disso, talvez essa associação com “popular” também pode ser um indício de uma espécie de “código” que possibilitaria com que certos agentes no “Cine Glória” possuiriam determinado conjunto de modos de se portar e de vestir harmoniosos. Sugere-se que esses termos são indícios de um certo “código social” que orientaria encontros socialmente ajustados. Nesse sentido, conforme Bourdieu (2007, 226-228) aborda, parece existir uma identificação do habitus pelo habitus, presente no princípio das afinidades, que orienta os encontros sociais e desencoraja as relações socialmente discordantes.23

Neste caminho, ainda neste impresso encontra-se um outro anúncio que se associa como um espaço do povo, o que talvez possa ser compreendido de maneira parecida, objetivando, possivelmente, gerar uma maior identificação com os leitores do periódico:

Carne Verde / por preços baratíssimos só nos higiênicos açougues do Povo, Popular e Modelo / O produto vendido por esses estabelecimentos é de 1ª qualidade e são seus proprietários Vaz & Dibernardi / Os mais antigos comerciantes deste ramo de negócio na capital. (A VOZ DO OPERARIO, 2 de abr. 1932, p. 4).

Dentre outros aspectos que também podem ser discutidos com base nos anúncios dos periódicos em foco, convém evidenciar como somente em “A Voz...” e “O Trabalho” são encontrados anúncios para consertos de máquinas, calçados ou roupas, sendo que dentre eles havia um número significativo de anúncios sobre calçados. Abaixo alguns desses anúncios:

Senhores proletários! Comprar sapatos record que além de ser fino calçados vos dará conforto aos pés (...) / (A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 4) Sapataria ‘Globo’ de Testa & Irmão / Tem sempre a venda as últimas novidades em calçados de senhoras, homens e crianças / Sandálias para todos os números, em diversos tipos / Especialidade em calçados para senhoras, sob medida, formato Luiz XV e Salto Baixo / Consertos de calçados — preços baratíssimos (...) (A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 4). Casa de calçados para homens, senhoras e crianças / Gustavo Müller / Grande depósito de sandálias, tamancos, chinelos, etc. / Consertos rápidos aos preços módicos (...) (O TRABALHO, 13 de ago. 1932, p. 5)

No caso de “Comércio...”, um único anúncio refere-se a calçados, mas da seguinte maneira: “Sapato Chic de J. B. Peluso / Calçados finos para homens, senhoras e crianças / Especialidade em calçados sob medida / Rua F. Schmidt n. 2 — Florianópolis”. (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA. 22 de set. 1934, p. 2), e no caso das roupas, algumas propagandas serão transcritas abaixo:

Quereis vestir bem? A última moda e a preços baixos? Só há um rumo certo... Alfaiataria Bonnassis (...) (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 22 de set. 1934, p. 3). Procura a casa ‘O Paraíso’ de José Mansur Elias que encontrareis as maiores novidades em seda e modas (...) / Ramenzoni — o melhor chapéu — Somente encontrareis na casa A ‘Capital’ (...) / (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 6 de out. 1934, p. 3). Alfaiataria Cardoso / Especialidade em caxemiras nacionais e estrangeiras / Executam-se ternos por preços módicos (...) (COMÉRCIO, INDÚSTRIA E LAVOURA, 6 de out. 1934, p. 4).

Antes de analisar tais anúncios, deve-se expor que ênfase no preço, como critério de comparação entre os periódicos deve ser relativizada, pois, seria esperado que anúncios publicitários logo dissessem que seu estabelecimento possui os melhores preços. Já com relação a outros aspectos, algo que logo pode chamar a atenção é a oferta de serviços de conserto nas duas folhas mais ligadas a classes populares, bem como a sua ausência nos outros impressos. Além disso, ainda no caso de “Comércio...”, alguns dos termos que predominam e que pouco são mencionados nos outros periódicos são: “a última moda”, “calçados finos”, “novidades”. Percebe-se, portanto, que a o conteúdo das propagandas pode variar conforme a natureza do impresso que estava sendo publicado, conforme anuncia Aline de Morais Limeira (2012, p. 378).

Um outro eixo possível de estudo pode se dar através do exame das características gráficas dos anúncios. De uma maneira geral, em todos os periódicos houve variações de investimento na qualidade gráfica desse tipo de conteúdo, desta maneira, foi possível encontrar anúncios mais simples e outros um pouco mais elaborados em todos os periódicos. No entanto, uma particularidade que pode ser demonstrada é que somente no periódico “Comércio...” parece ter sido possível encontrar anúncios com imagens e um melhor acabamento. Parece viável argumentar que este contou com um maior profissionalismo em sua produção. Desta maneira, essas diferenças gráficas talvez possam ser explicadas pelo diferenciado grau de investimento possível de seus responsáveis e o retorno em anunciar nestas folhas, assim, talvez fosse mais vantajoso anunciar em “Comércio...” do que nos outros periódicos.

Abaixo estão alguns exemplos:

Imagem 1 — Parte inferior da edição 3 de “Comércio…”, p. 4.
Fonte: Comércio, Indústria e Lavoura, 06 de out. de 1934, p. 4.

No caso dos outros periódicos, “O trabalho” parece ter contado com uma boa organização na hora de divulgar os produtos. Já em “A Voz..” os anúncios parecem um pouco menos padronizados. Abaixo exemplos destes dois periódicos:

Imagem 2 — parte superior de “O Trabalho”, p. 5
Fonte: O TRABALHO, 13 de ago. 1932, p. 5.
Imagem 3 — Página completa de “A Voz…”
Fonte: A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 4.

Por fim, sugere-se, com base nas diferenças entre esses periódicos, que os potenciais leitores dessas folhas possuem distintos critérios de apreciação ou de consumo. Os jornais parecem se tornar uma fonte promissora para este tipo de análise, já que o jornalismo e a publicidade parecem ter surgido como parceiros inseparáveis no cenário brasileiro, conforme explica Adolpho Queiroz (2007). Se a busca pelo menor preço ou mesmo, em diferentes graus e significados, a busca por estar bem-vestido pode ser identificada como parte dos mais variados grupos da sociedade, algumas particularidades puderam ser notadas, tais como no impresso mais ligado a classes populares o critério de conforto acompanhar a busca por um calçado, provavelmente também pelos seus potenciais leitores possuírem uma jornada mais ligada a trabalhos manuais ou necessitarem de uma maior circulação pela cidade.

Com a pretensão de seguir algumas das discussões de Bourdieu sobre essa temática, foi possível perceber que certas diferenças no modo de apresentar produtos ou espaços parecem acompanhar distintas necessidades entre o campo da produção e o do consumo. Pode-se sugerir que os produtos dos periódicos “A Voz...” e “O Trabalho” estariam mais relacionados com necessidades práticas do cotidiano ou do trabalho. No caso do periódico dos farmacêuticos, apesar da pequena quantidade de anúncios em suas folhas, a presença de uma série de textos sobre livros e um anúncio com indicações de leitura, parecem corroborar com a percepção da diferença de hábitos pela sociedade. Sendo que a leitura de livros ou revistas poderia estar associada com uma forma de distinção social, que também parecia ser almejada pelos que se sentiriam representados por “Comércio...”.

Propõe-se, portanto, que através do exame dos anúncios é possível perceber distintas harmonizações de expectativas entre grupos produtores e de consumidores.24 Assim, com relação aos comerciantes, industriais ou produtores rurais, mesmo que, possivelmente, utilizassem serviços de consertos de roupas ou calçados, a ausência da exposição desse tipo de anúncio em seu periódico pode estar associada com um conjunto de expectativas ajustadas à sua classe, fora a necessidade ou busca de suas vestimentas acompanharem novas tendências ou serem consideradas como signos de distinção.

Sabe-se que certos aspectos dos periódicos e alguns dos outros anúncios não foram devidamente analisados, bem como algumas das características materiais dos periódicos e quem eram os seus responsáveis. No entanto, o recorte proposto pretendeu iniciar um debate sobre modos de vida entre diferentes grupos da sociedade de Florianópolis dos anos 1930. O uso do referencial teórico de Pierre Bourdieu, notadamente a noção Habitus, possibilitou tanto levantar uma série de indagações quanto analisar com maior profundidade desde termos a demais características dos anúncios publicitários e como estes podem estar relacionados com um variado sistema de predisposições presente pela sociedade.

Referências

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A Voz do Operário, Florianópolis, 1932. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In. FERREIRA, M. M.; AMADO, K. (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p. 183-191.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto Alegre: Zouk, 2007.

BOURDIEU, P. Homo Academicus. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2017.

BRASIL, Anuário Estatístico do Brasil. Ano II. Rio de Janeiro: Tip. Do Departamento de Estatística e Publicidade, 1936.

CAMPOS, Cynthia Machado. Santa Catarina, 1930: da degenerescência à regeneração. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2008.

Comércio, Indústria e lavoura: publicação quinzenal da união dos varejistas de Florianópolis. Florianópolis, 1934. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

Cine-Semana: Órgão da “Empresa Cinematográfica Victor Busch”. Florianópolis, 1928. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

CUNHA, Maria Teresa Santos. No estouro do flash: a Florianópolis de José Arthur Boiteux (1890 a 1930). In. CUNHA, Maria Teresa Santos; CHEREM, Rosângela Miranda (orgs.) Refrações de uma coleção fotográfica: imagem, memória e cidade. Florianópolis: UDESC, 2011. p. 12-30.

GERTZ, René. O fascismo no Sul do Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

Hemeroteca Digital Catarinense. s/data. Disponível em: hemeroteca.ciasc.sc.gov.br. Acesso em: 27 de abr. 2020.

Jornal dos Farmacêuticos: mensário científico e de interesses técnico-profissionais da Farmácia e do Laboratório. Florianópolis, 1931-1932. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

LEMOS, Clarice Caldini; PIAZZA, Maria de Fátima Fontes. Cultura Impressa: das páginas dos periódicos à circulação da arte gráfica. Curitiba: Editora Prismas, 2017.

LIMEIRA, Aline de Morais. Impressos: veículos de publicidades, fontes para a história da educação. Cadernos de História da Educação. v. 11, n. 2, jul/dez. 2012.

O trabalho: Órgão das classes trabalhadoras. Florianópolis, 1932. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

O Estado. Florianópolis, 1929. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina)

QUEIROS, Adolpho. Inventário acadêmico e profissional da história da propaganda no Brasil. Comunicação e Sociedade. São Bernardo do Campo, PósCom-Metodista, a. 29, n. 49, 2007.

Renovação: Revista Quinzenal, Artes, Letras, Atualidades. Florianópolis, 1931. (Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina).

SCHVARZMAN, Sheila. O rádio e o cinema no Brasil nos anos 1930. In. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Brasília, UNB, 2006. p. 1-14.

VALLE, Ione R. Pierre Bourdieu: a pesquisa e o pesquisador. In. BIANCHETTI, L; MEKSENAS, P. (Orgs.). A trama do conhecimento. Teoria, método e escrita em ciência e pesquisa. Campinas: Papirus, 2008. p. 95-117.

WACQUANT, Loïc. Habitus. In. CATANI, A. et. al (orgs.). Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p. 213-216.


  1. Uma primeira versão deste texto serviu como atividade de avaliação da disciplina “Dominação e Reprodução Social: a sociologia de Pierre Bourdieu” ministrada pela Profª Dra. Ione Ribeiro Valle (PPGE-UFSC).↩︎

  2. Todos os momentos que se referir à noção Habitus nesse texto será baseado no que foi proposto por Pierre Bourdieu ou o que foi escrito por debatedores de sua obra.↩︎

  3. Todas as transcrições tiveram a sua ortografia atualizada, inclusive os títulos dos periódicos. Sobre esses periódicos, os números listados foram os únicos disponíveis de cada um deles no acervo da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPSC). Os exemplares podem ser consultados no seguinte endereço eletrônico: (HEMEROTECA DIGITAL CATARINENSE, s/data)↩︎

  4. O subtítulo do número 10 e 11 é o seguinte: “Órgão da Associação Catarinense de Farmacêuticos”.↩︎

  5. Sobre este mesmo ponto, Loïc Wacquant (2017, p. 214) expõe que esta noção pretende “transcender a oposição entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade’” (...) (grifo do autor).↩︎

  6. Já se foi discutido se o Habitus irá ou não profetizar o futuro de alguém. Não será retomada essa discussão, pois, em momento algum Bourdieu escreve algo nesse sentido.↩︎

  7. Segundo P. Bourdieu (2001, p. 82): “(...) toda a ação histórica põe em presença dois estados da história (ou do social): a história no seu estado objetivado, quer dizer, a história que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes, direito, etc., e a história no seu estado incorporado, que se tornou habitus” (grifo do autor).↩︎

  8. Todas as edições analisadas neste trabalho estão digitalizadas, provavelmente as mesmas estavam em formato de microfilme no acervo da BPSC e foram digitalizadas.↩︎

  9. Não se sabe qual o valor deste abatimento, o trecho está ilegível.↩︎

  10. Sobre esse assunto, cf. (CAMPOS, 2008); (GERTZ, 1987).↩︎

  11. A citação completa da passagem parafraseada é a seguinte: (...) o habitus é também estrutura estruturada: o princípio de divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, por sua vez, o produto da incorporação da divisão em classes sociais. Cada condição é definida, inseparavelmente, por suas propriedades intrínsecas e pelas propriedades relacionais inerentes à sua posição no sistema das condições que é, também, um sistema de diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por tudo o que a distingue de tudo o que ela não é e, em particular, de tudo o que lhe é oposto: a identidade social define-se e afirmar-se na diferença (BOURDIEU, 2007, p. 164).↩︎

  12. Foram desconsiderados, para este levantamento, casos de indicações de livros que estavam inseridos como conteúdo regular do jornal.↩︎

  13. O Diretor responsável pela revista é o próprio diretor do “Jornal dos Farmacêuticos”, Ney Luz. (RENOVAÇÃO, 1931)↩︎

  14. Com relação ao que se compreende por Cultura Impressa, dialoga-se com as discussões levantadas por Clarice Caldini Lemos e Maria de Fátima Fontes Piazza no prólogo da obra “Cultura Impressa: das páginas dos periódicos à circularidade da arte gráfica”. As autoras escrevem sobre a Cultura Impressa poder englobar desde jornais, revistas, livros, periódicos literários e de fait-divers, suplementos culturais, colunas, guias, almanaques, anuários, cartões-postais e cartazes de publicidade por exemplo. (LEMOS; PIAZZA, 2017).↩︎

  15. Para uma discussão nesse sentido, cf. (BOURDIEU, 2007, p. 217).↩︎

  16. Deve-se lembrar que o Instituto Politécnico, o primeiro curso superior do Estado fundado em 1917, ofertava curso para a formação de farmacêuticos, cirurgiões-dentistas, guarda-livros e agrimensores. Nesse sentido, a prática de farmácia parecia já exigir uma certa longevidade nos estudos indisponível para muitos da sociedade.↩︎

  17. Com relação aos números de alfabetizados, no caso de Florianópolis para o ano de 1920, o Censo de 1920 levantou o número de 24.398 que não sabiam ler nem escrever e 16.940 que sabiam, ou seja, cerca de 40% de sua população sabia ler e escrever. (BRASIL, 1936, p. 53-54). Apesar de ser um número relativamente alto para o período, deve-se somar a isso as desigualdades e dificuldades na possibilidade de tomar contato com livros, revistas ou jornais pelo conjunto da sociedade.↩︎

  18. Página com matéria história do livro (A VOZ DO OPERÁRIO, 2 de abr. 1932, p. 3).↩︎

  19. Em alguns casos, os anúncios irão destacar algumas palavras com negrito, itálico ou uma fonte maior, tendo em vista a dificuldade em apresentar neste estudo os diferentes graus destas alterações dos impressos, optou-se em transcrever os anúncios e demais textos sem estas alterações.↩︎

  20. Assim como no caso das indicações de livros, é necessário levar em consideração que estes hábitos de leitura e de escutar o rádio não ocorriam necessariamente em isolamento. Livros poderiam ser lidos em voz alta além dos rádios poderem reunir uma série pessoas da mesma família ou não para ouvir a sua programação. No caso dos livros, além da leitura em voz alta, eles poderiam ser emprestados ou vendidos para futuros leitores.↩︎

  21. Sobre estes temas cf. Araújo (1989) e Cunha (2011).↩︎

  22. Somente foi encontra uma edição deste impresso, a de n. 1. (CINE-SEMANA, 25 de mai. 1928).↩︎

  23. A citação completa de P. Bourdieu é a seguinte: “Esta identificação do habitus pelo habitus encontra-se no princípio das afinidades imediatas que orientam os encontros sociais, desencorajando as relações socialmente discordantes, incentivando as relações ajustadas, sem que estas operações tenham de se formular, algum dia, de outra forma que não seja na linguagem socialmente inocente da simpatia ou da antipatia.” (2007, p. 226-228).↩︎

  24. Para uma discussão nesse sentido, cf. Bourdieu (2007, p. 215-216).↩︎

Resumo:
O objetivo desse artigo é realizar uma investigação sobre anúncios publicitários presentes em periódicos de associações sócio profissionais de Florianópolis dos anos de 1930. É proposto utilizar a noção Habitus, a partir de Pierre Bourdieu, para estudar tais anúncios, principalmente buscando compreender diferenças entre estilos de vida e gosto pelo recorte da classe social. Foram selecionados quatro periódicos, dois mais conectados com classes de trabalhadores mais populares, outro representava farmacêuticos e o último principalmente ligado a comerciantes da capital catarinense. Foi possível perceber como os anúncios publicitários eram portadores de signos de distinção que se adequavam conforme o público que era visado, propiciando compreender diferenças de gosto e necessidades pela sociedade.

Palavras-chave:
Habitus; Pierre Bourdieu; Anúncios Publicitários; Estilos de vida; Associações profissionais.

 

Abstract:
This article’s propose is to investigate advertisements published on newspapers representatives of professionals associations of Florianópolis in the 1930s. We propose to utilize the notion Habitus by Pierre Bourdieu to study those advertisements, especially to comprehend differences among lifestyles and preferences on different social classes. We selected four newspapers, two of them more connected to popular classes, one representative of pharmacists and another mainly connected to merchants of Santa Catarina’s Capital. It was possible to perceive that advertisements were carriers of distinction signals that adapted according to the target audience. They also provide the possibility to comprehend differences of preferences and necessities in the society.

Keywords:
Habitus; Pierre Bourdieu; Advertisements; Lifestyle; Professional Associations

 

Recebido para publicação em 27/04/2020
Aceito em 21/10/2021

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