Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 53, n. 3, nov. 2022/fev. 2023
DOI: 10.36517/rcs.2022.3.a05
ISSN: 2318-4620

 

 

Vegetando no Necrotério dos Vivos:
“O fazer morrer e o deixar morrer” no contexto brasileiro

 

Luiz Gomes da Silva Neto OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
luizgomesdasilvaneto15@gmail.com

Francisca Denise Silva Vasconcelos OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
denisesn1301@gmail.com

Gracymara Mesquita Severiano OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
gracymesquita@hotmail.com

Deidiane Moreira Alves OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
deidianema@gmail.com

 

Dos desprotegidos e abandonados

Este texto expõe uma reflexão sobre os direitos de cidadania das juventudes periféricas e suas relações com as (im)políticas voltadas para esses públicos. É importante ressaltar que haverá uma análise das práticas das (im)políticas para as juventudes, entendendo-as como mecanismos de poder que reverberam numa práxis de esquadrinhamento de jovens, culminando, muitas vezes, em um abandono e desproteção. Além disso, haverá uma análise acerca da política de morte em que a sociedade brasileira foi cunhada, um poder soberano que escolhe quem deve morrer e quem deve viver.

Para melhor destrinchar essa problematização, será utilizado um arcabouço teórico composto, principalmente, por Michel Foucault, Giorgio Agamben, Achille Mbembe e Fátima Lima. Entende-se que esses autores e autora são cruciais para a reflexão das condições de vida e de morte implicadas nas relações políticas de investimento ou mesmo desinvestimento, influenciadas por dinâmicas tanto de fomentos de vida como de abandono e morte.

Conceitos que se configuram como essenciais para ancorar reflexões acerca do assunto exposto serão pautados ao longo do texto, exemplo disso são conceitos como “estado de exceção”, “força-de-lei”, “matáveis”, “necropolítica”, “bio-necropolítica”, que serão utilizados com precisão necessária para a produção deste trabalho. Como maneira de nortear as discussões, parte-se do questionamento: como as políticas sociais exercem poder sobre as juventudes periféricas ao implicar, contraditoriamente, numa condição de abandono e desproteção social, produzindo adoecimento e morte?

Importante ressaltar que essas políticas sociais deveriam ser um conjunto de diretrizes, orientações, critérios e ações que manifestariam a manutenção e promoção do bem-estar social, ao produzir benefícios ao desenvolvimento de todas as classes sociais (CARVALHO, 2007). Contudo, as formulações e aplicações no contexto brasileiro, muitas vezes, diferem enormemente deste conceito que foi definido. É a partir desse contexto nacional que se problematizará as políticas de juventudes.

Cabe outro adendo, pois, ao falar-se em juventudes periféricas, há uma relação com as juventudes marginalizadas, em que se processa o extermínio delas. O periférico aqui se refere àquilo que está à margem do centro, mas que mesmo em uma condição de distanciamento dele, encontra-se nem alheio ao centro nem exterior a ele. É com base nessa visão que se trabalhará ao longo do texto.

Parte-se do entendimento que durante o período de transição democrática nacional, diversas instituições públicas e suas eventuais atuações na sociedade foram revistas, numa tentativa de reajustar as práticas numa nova realidade que se desenvolvia. Contudo, uma delas foi intocável a essa tentativa de adequação à democracia promovida: a polícia. Luiz Eduardo Soares (2003) e Glaucíria Mota Brasil (2008) demostram que mesmo com o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, as forças policiais não adentraram ao percurso “democrático” do país: “os sucessivos governos que se revezaram no poder pós-ditadura militar mantiveram intocada a autonomia de funcionamento desses dispositivos, como se eles fossem estruturas neutras e prontas a servir à democracia” (MOTA BRASIL, 2008, p. 138).

É possível entender que a lógica política nacional, embora dita democrática, dispõe de ideais paradigmáticos de governo baseados na linha da “exceção” e de “morte”. Não só a polícia adentra a essa não mudança democrática, mas quando se fala da forma de fazer política no Brasil, também existem atitudes semelhantes a essa ação de exceção, de morte. Primeiro, é indispensável compreender o conceito de estado de exceção, que justamente parte da ideia da existência de uma decisão soberana que suspende a norma para tornar possível a normatização da práxis de vida, garantindo, assim, a estruturação normal das relações de vida (SCHMITT, 2004). Ademais, é essencial mencionar que o termo “fazer política”, aqui, significa direcionar as práticas de formulações de políticas sociais, formas de governo concretizadas a partir das relações micropolíticas.

Agamben (2004) acrescenta a essa discussão que esse ideal paradigmático de estado possui duas formas de lei: a lei regulamentada — isto é, escrita —, ao garantir, teoricamente, os direitos de cidadão e uma outra lei, esta não é regular, mas encontra-se na força-de-lei. Dessa forma, o estado de exceção seria “um estado da lei em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem força) e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’” (AGAMBEN, 2004, p. 61).

Quando se propõe falar de “(im)políticas”, acredita-se que tal conceito possui uma relação com as estratégias de governo da vida de jovens, compreendidas como biopolítica, segundo Foucault (2008a), e de vidas abandonadas para a morte, com base na tanatopolítica de Agamben (2004). Além disso, também se destaca a necropolítica de Mbembe (2018), uma política de morte. Pensando nesta proposta, esse texto trará uma linha temporal que iniciará com Foucault e a biopolítica, após isso, haverá uma discussão acerca da tanatopolítica com Agamben e, por fim, encerrar-se-á com o conceito de necropolítica de Mbembe.

Foucault e controle sobre a vida: a biopolítica e a falsa democracia brasileira

Biopolítica, “governo da vida”, que Foucault destaca, tem relação direta com o controle das subjetividades das pessoas. Esse governo nada mais é do que a práxis que consiste em reger a conduta das pessoas em diversos contextos e com instrumentos estatais (FOUCAULT, 2008a). Partindo desta compreensão, adentra-se ao processo de democratização brasileira.

Esse sistema se deu nos fins de 1970, período este conhecido como “redemocratização” brasileira, que, na prática, ainda não se concretizou verdadeiramente (ZALUAR, 2007). As intenções plurais da Lei Magna, dos direitos e da cidadania não se colocaram como ações sociais de planos de governos. O Estado, apesar de ser apontado como democrático, não consegue minimizar as diferenças sociais “tanto entre as sociedades centrais entre si, quanto entre as periféricas” (SOUZA, 2018, p. 141). Como pensar em uma democracia de fato se parte da população não consegue ter acesso aos direitos pós-redemocratização? Levando isso em consideração, parte-se da compreensão de que o negligenciamento para com a polícia, no momento da repactuação democrática, foi crucial para a continuação da dominação social defendida por setores mais conservadores. Em outras palavras, essa negligência ganhou destaque muito mais como estratégia do que como uma indiferença política (SOARES, 2003).

Essa ação intencional e conservadora perpetuou as formas de efetivação de dominação — por uma minoria no poder — presentes não somente hoje, mas ao longo da história política nacional. As chamadas democracias contemporâneas traçam estratégias apoiadas em um leque de investimentos no combate ao crime, sob a forma de um Estado Punitivo, este modifica suas políticas criminais às metamorfoses econômicas vigentes. Estas manifestam o desejo do Estado Moderno burguês: a garantia, a todo custo, da segurança patrimonial.

Aqui é importante fazer um adendo sobre a visão que se compreende da sociedade moderna, a qual é oriunda de uma ascensão da burguesia que — com a atuação em vigor da produção capitalista — exige do Estado modos de ação armamentista (polícia), visando a manutenção de ordem social e paz pública, ao pretender a proteção e concretização dos direitos acoplados a esse sistema: a propriedade privada, o individualismo e a liberdade.

Ora se o monopólio da força pelo Estado é um dos pilares considerados como característica definidora do Estado Moderno, este não buscou abolir os antagonismos das classes. “Nada mais fez que substituir as antigas por novas classes, por novas condições de opressão, por novas formas de luta” (MARX; ENGELS, 2006, p. 48). Dessa forma, incorpora as instituições coercitivas antigas dos Estados (polícias, sistema judiciário), que possuem o objetivo de desenvolver e manter as relações de produção social, reprimindo potenciais revoltas e “desordens” que ferem a normatização social de vida.

Essas formas coercitivas nada mais são do que formas de governo sobre a vida. Para que se compreenda melhor essas ações, é necessário fazer uma retomada histórica da constituição das relações de poder atreladas às formas de governo sobre o corpo e do corpo. Para isso, parte-se de Foucault: na leitura foucaultiana, o adentramento da vida na polis, como corpo a ser investido, ocorre nas metamorfoses entre o Estado territorial para o Estado moderno, em que os mecanismos de governo perpassam do território para o investimento na vida da população (FOUCAULT, 2008b).

Foucault, na sua obra “História da Sexualidade I — a vontade de saber”, afirma a ideia de uma organização social em que havia um soberano que possuía o poder sobre a vida de sua família e súditos. O que lhe permitia a práxis de “deixar viver ou fazer morrer” qualquer indivíduo que vivesse em seu território (FOUCAULT, 1999a). Com o desenvolvimento do Estado Moderno, Foucault (1999a) afirma que há uma modificação logística de poder, em que “deixar viver ou fazer morrer” dá lugar para o “fazer viver e deixar morrer”. Esse sistema promove um direcionamento para propostas de intervenção diretamente relacionadas ao corpo biológico das pessoas, através do investimento na vida: o biopoder.

O controle sobre a vida das pessoas é crucial para que haja um funcionamento da modernidade, do trabalho, da mão-de-obra humana, sendo essencial para a perpetuação do lucro. As tecnologias empregadas para esse controle, segundo Foucault (1999a), são as tecnologias anátomo-políticas do corpo, que objetivam potencializar, ao máximo, as suas forças, tendo como consequências um eficaz controle normativo e econômico, oriundos de uma tecnologia disciplinar. Esta disciplina seria uma técnica de poder que se manifesta na vigilância contínua e constante das pessoas, isto é, não bastando olhá-las de modo esporádico ou verificar se o que fizeram está em conformidade com as regras. Em “Vigiar e Punir”, Foucault menciona, ao falar sobre disciplina, que há uma vigilância de forma integral, a todo tempo de atividade, submetendo os sujeitos a uma conservação piramidal de olhares (FOUCAULT, 2004).

Além dessa tecnologia, Foucault (2004) ainda ressalta uma outra, que não exclui a disciplina, e é denominada de biopolítica da população. Enquanto as práticas disciplinares seriam manifestadas a partir do objetivo de governar a pessoa, a biopolítica aponta para o governo de um conjunto de homens e mulheres, neste caso, a população. Em outras palavras, a biopolítica da população nada mais é do que a práxis de biopoderes locais. E quando se fala em biopoder, a população é o objeto e também o instrumento nas relações de poder.

Foucault (2000) traz à tona sua analítica do poder, onde apresenta “biopoder” como um deslocamento em relação à teoria política tradicionalista, que acreditava que o Estado era o único detentor do poder. Analítica do poder porque, segundo Foucault (2000), não há a existência do “Poder”, o que existe, de fato, são relações de poder, “formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2000, p. 10).

O que se quer evidenciar é que Foucault esmiúça uma rede de micropoderes no Estado, que se articula e perpassa toda uma estrutura social. Em outras palavras, objetiva-se analisar o poder partindo não do seu centro (Estado), percebendo como ele se relaciona em níveis mais baixos da sociedade (análise descendente), mas a análise almeja, a partir desses micropoderes que se interligam à estrutura social, a compreensão de como eles se relacionam com a estrutura mais geral do poder que seria o Estado (análise ascendente).

Com efeito, são nestas relações de poder que ao mesmo tempo a população é objeto e instrumento delas. Quando este poder passa a funcionar, provoca uma série de normalizações, saberes corretivos que se multiplicaram em instituições (como escolas e prisões), fazendo surgir, por exemplo, “[...] as chamadas ciências do homem e o homem como objeto da ciência” (FOUCAULT, 2005, p. 125).

Ao compreender o poder como relação e não como uma espécie de maquinaria localizada em um determinado espaço, ou seja, analisando o poder que dissemina por toda a estrutura social e a perpassa; infere-se que há nesta um sistema de poder, permeado de instituições que guardam uma ligação sociopolítica entre si com base no Estado. Exemplos disso são meios de comunicação, escolas, fábricas, e o que é legítimo ou mesmo ilegítimo a eles enquanto ligação habitual de suas relações. Entendendo, claro, que diferente do que as teorias filosóficas do século XVIII afirmavam, Foucault não compreende o poder como algo estritamente negativo, haja vista que segundo Foucault (2004), é essencial parar de afirmar que o poder produz efeitos em termos negativos como repressão, censura, exclusão. É fato que o poder produz domínios de objetos e de verdades ritualísticas, mas que seja compreensível que o indivíduo e o conhecimento que dele emana se originam nessa produção de poder.

A análise genealógica do poder de Foucault afirma que o poder produz saber, que estes estão diretamente implicados. O poder-saber das relações deve ser analisado através do sujeito que conhece, dos objetos a conhecer e das propostas de conhecimentos, que são outros diversos efeitos dessas implicações primordiais do poder-saber e de suas transformações históricas (FOUCAULT, 2004).

Entendendo isso, infere-se que a complementação dos estudos de Foucault se vale do poder disciplinar e da analítica do biopoder, este, segundo Foucault, é “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral do poder” (FOUCAULT, 2008a, p. 03). Em outras palavras, é um poder que se aplica à vida das pessoas, aos seus corpos, nisto que eles possuem em comum: a vida, o pertencimento a uma espécie.

Dito de outro modo, o biopoder tem como objeto a população e os fenômenos naturais vinculados a ela. Tem relação com a regulação ou mesmo a própria intervenção sobre taxas de natalidade, epidemias, isto é, biopoderes que passam a ocupar a gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, crenças etc. (FOUCAULT, 2008a). O que se quer afirmar com a ideia de biopoder de Foucault é que a população é o “novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável” (FOUCAULT, 1999b, p. 292).

E, para entender, controlar esses corpos, é de interesse não apenas descrevê-los e/ou mesmo quantificá-los, é necessário ancorar tais descrições e quantidades, juntando-as, fazendo analogias, buscando prever seu futuro por meio do passado. Daí a ideia de biopolítica (o outro polo do biopoder), que representa uma “grande medicina social”, aplicada à população, tendo como finalidade o controle da vida: a vida faz parte do campo do poder (FOUCAULT, 2000). Pode-se perceber isso através do pensamento medicalizante, que utiliza meios corretivos de transformação dos indivíduos, trazendo não uma ideia punitiva, mas uma tecnologia de características comportamentais do ser humano ligada a eles. Dessa forma, existindo uma aplicação a sociedade, distinguindo entre o normal e o patológico e impondo um sistema normativo, que se vincula a características comportamentais no trabalho, na escola, nos afetos, na família (FOUCAULT, 2000).

Há, então, o estabelecimento de dois mecanismos complementares que se articulam entre si, que ocupam lócus diferentes: no contexto do corpo, o poder disciplinar; na esfera da população, a biopolítica, manifestando-se a partir de mecanismos reguladores. Enfim, a biopolítica não é um poder individualizante, como as disciplinas, mas massifica as pessoas a partir de sua realidade (FOUCAULT, 1999a). A anátomo-política do corpo entrelaça-se com a biopolítica da população e, assim, a população é instrumento e objeto destas relações de poder.

Agamben e a Exceção

Pensando dessa forma e levando em consideração tudo o que já foi discutido até agora, a disciplina do corpo e as normatizações da população são os “polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (FOUCAULT, 1999a, p. 131). Partindo desta compreensão sobre Estado, acredita-se que o foco dele era intervir na população através de fenômenos como nascimento, morte, longevidade, nos quais se almejava manter o fortalecimento do próprio Estado. Para efetuar de forma mais promissora esse poder, há uma visão reformulada que prima pela gerência e investimento da população por meio do corpo político.

Nesse caso, a vida deve ser investida em seu mais ínfimo detalhe, tornando-se passível de gerenciamento através da mecânica de governamentalidade do Estado e, mais adiante, do mercado, como se constata no curso do Collège de France entre 1978 e 1979, intitulado Nascimento da biopolítica. Nessas circunstâncias, surge outra manifestação de governo da vida que se propõe não mais fortalecer o Estado, mas assegurar o desenvolvimento e fortalecimento do mercado (SCISLESKI; CAETANO; GALEANO, 2015).

Dessa forma, neste momento, se torna relevante a discussão a partir de Giorgio Agamben (2010). Este, diferente de Foucault, aponta as estratégias políticas em direção a medidas não de vida, e sim de morte, de desproteção, de abandono, mesmo nessas diretrizes processuais que se tornam mecanismos de defesa da vida, como o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA.

Giorgio Agamben (2010) se dedica a uma pesquisa que busca investigar as formas pelas quais a política captura a vida cotidiana, reformulando a problemática da biopolítica instituída por Michel Foucault, desenvolvendo novos conceitos. Nesse momento se pautará no “estado de exceção”, que advém de um processo de decisão soberana, ao suspender a norma para concretizar a normatização de ações da vida, garantindo, assim, a estruturação normal das relações de vida (SCHMITT, 2004), isto é, a norma não pode, de nenhuma forma, ser aplicada à anormalidade. Agamben (2010) acrescenta um viés que o diferencia de Schmitt, sugere o surgimento de algo, este relacionado à natureza mais fundamental da lei: a relação de exceção, neste caso, seria aquela que manifesta a estrutura original das relações jurídicas (AGAMBEN, 2010).

A relação de exceção não se restringe a disposições topológicas entre norma e exceção a uma simples exclusão — o excluído é incluído, através da própria exclusão. Para Agamben (2010), por meio do paradoxo da soberania, em que o soberano está dentro e fora do ordenamento jurídico — dentro, uma vez que é ele que funda o ordenamento e fora, pois não se submete a ele —, em que o soberano é quem decide sobre a aplicação ou não da lei.

Pode-se pontuar que a relação de exclusão e inclusão se vincula com a vida, pois a exclusão remete a algo que está se excluindo do ordenamento normal, mas que ainda mantém relação com a norma, desenvolvendo, assim, uma “zona de indistinção”. Dito de outro modo, não é a exceção a que se subtrai à regra, mas sim a regra que se suspende, dando lugar à exceção e somente desta maneira se constitui como regra (AGAMBEN, 2010). A lei, neste caso, consiste nessa condição de se permanecer no que se refere a uma exterioridade, havendo uma relação de exceção a esta forma extrema de manifestação que inclui algo unicamente através de sua exclusão (AGAMBEN, 2010).

Para entender melhor esse estado de exceção, exemplifica-se através dos cotidianos de muitas pessoas em território nacional como o tratamento que muitos policiais usam quando se dirigem aos presos, como a tortura, agressão psicológica e física. Além disso, pode-se citar o caso de Sandro, figura do incidente com o Ônibus 174 no Rio de Janeiro, no ano 2000, que foi morto por asfixia por policiais ou mesmo casos mais recentes como de Ágatha Félix, de oito anos de idade, que foi vítima de “bala perdida”, morta por policiais, quando voltava para a casa com sua mãe em uma Kombi.

Isso fica mais entendido quando se utiliza a perspectiva de zoé e bíos de Agamben (2010). Os gregos se utilizavam desses dois termos para se referirem à vida. O zoé diz da relação do viver, recorrente a todos os seres vivos — deuses, homens, animais; a bíos diz da maneira de viver própria de um grupo ou de um indivíduo (AGAMBEN, 2010). Dessa forma, zoé referia-se a vida animal ou orgânica e bíos estaria relacionada à vida qualificada de cidadão, a vida politicamente de valor.

Dito de outra maneira, com a formação da Cidade ou Estado, desenvolveu-se uma exclusão inclusiva da zoé na pólis, isto é, ao se tentar excluir a zoé (vida orgânica, animal) do contexto político, acabou-se por politizá-la. É imprescindível, entretanto, compreender que a inclusão da zoé na Cidade (ou mesmo a politização da vida orgânica), produziu a vida nua, esta potencialmente matável (MARTINS, 2015).

Excluiu-se a zoé, desenvolvendo-se a vida nua na pólis, como prelúdio jurídico-político originário. Em outras palavras, extinguiu-se a violência de todos contra todos (homo hominis lupus) desse estado de natureza (zoé), tendo como consequência a inclusão dessa mesma violência na configuração da violência soberana (ius contra omnes), onde todos os portadores da vida nua estão perpetuamente expostos ao poder soberano (MARTINS, 2015).

Essa vida nua, matável, representada pelo homo sacer, seria aquela que não poderia ser sacrificada para os deuses, além do fato de que qualquer um que viesse a matá-la não sofreria nenhuma condenação (AGAMBEN, 2010). Neste caso, é uma vida matável e insacrificável, que é uma figura interessante para se refletir com Agamben e o que ele traz com a tanatopolítica, que nada mais é do que técnicas políticas de produção de morte (AGAMBEN, 2004).

Dessa forma, em Foucault tem-se a ideia do “fazer viver e deixar morrer”, que produz o viver às pessoas para que possam adentrar a maquinaria capitalista e gerar lucro, e deixa morrer aquelas que não conseguem se adequar, dentro das relações de poder, a essa empreitada do capitalismo. Já Agamben (2004) estabelece o “fazer morrer e deixar viver”, no qual determinadas pessoas e grupos sociais são excluídos e mortos da sociedade. Ele leva em consideração o contexto do Holocausto, mas quando se pensa sobre o Brasil, por exemplo, percebe-se que o país “nasceu” em um estado de exceção. Essa constatação será explicada nos próximos tópicos, nos quais se destacará a teoria de Mbembe e seus estudos decoloniais.

Aproximando essa visão com a perspectiva das juventudes periféricas, compreende-se o fato de que para exercer governo sobre a vida das pessoas é preciso que essas pessoas estejam dentro de uma normatização e que a exceção configura-se como um mecanismo que se manifesta a partir da práxis de inserção de jovens outrora banidos de maneira que possam ser incluídos posteriormente às formas de exclusão. É com esse entendimento de exceção e sujeito matável que adentrar-se-á na discussão acerca de juventudes periféricas e as (im)políticas.

Juventudes periféricas e (im)políticas: a perspectiva ideal dos matáveis

Antes de abordar o assunto do tópico, se faz relevante a compreensão de que o termo “periférico”, tratado aqui, diz daquilo que está à margem do centro, mas que mesmo em uma condição de distanciamento dele, encontra-se nem alheio ao centro nem exterior a ele. Entendendo dessa forma, pode-se adentrar a categoria de juventudes periféricas, como exemplo os jovens em conflito com a lei com medidas de restrição de liberdade. Muitos deles possuem histórico de baixo grau de escolaridade, situação insalubre ou pobreza econômica, além de abandono familiar (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012). Imersos num cenário de exclusão é que muitos desses jovens são incluídos, ao serem categorizados como pessoas em conflito com a lei e é em decorrência dessa categoria que se tornam visíveis socialmente (SCISLESKI, 2010).

Dessa maneira, infere-se que as vidas desses jovens estão dispostas por meio do abandono e não da proteção, uma vez que o ECA não possui suas diretrizes efetivas na prática. Pensando em amostras, no Estado da Bahia, segundo a Fundação da Criança e do Adolescente da Bahia — FUNDAC, 29,2% dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação retornam à delinquência (MENDES, 2015). Já no Distrito Federal, segundo o Tribunal de Justiça do Estado (DISTRITO FEDERAL, 2015), consta o número de 53,4%.

Dados mais recentes do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário — DMF e das Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça — CNJ (2018) apontam que a quantidade de menores infratores em regime de internação no Brasil se encontra em torno de 22 mil jovens, estes internados em 461 unidades socioeducativas em funcionamento no território nacional.

Na prática, a lei do ECA é suspensa e o que vigora é a exceção, isto é, a práxis com força-de-lei que abandona à morte essa categoria social (AGAMBEN, 2004) e o mecanismo pelo qual as vidas desses jovens são fisgadas é o próprio ato infracional. É pela via da infração que essas pessoas serão compreendidas como “de direitos”, passando a ter acesso a serviços sociais que até então não possuíam (escola, saúde), porém, esse ingresso se justifica, precisamente, pelo delito cometido (SCISLESKI; CAETANO; GALEANO, 2015). Além de que, essa “entrada” é precarizada, uma vez que mesmo durante o cumprimento de medidas socioeducativas de internação, essas pessoas prosseguem tendo seus direitos violados, como dormitórios insalubres, medicação imprópria, não elaboração do PIA — Plano Individual de Atendimento (SCISLESKI; CAETANO; GALEANO, 2015).

Força-de-lei é um conceito que diz respeito a ações que visam um abandono das pessoas, expondo-as em contextos de morte. E quando se fala em morte, remete-se à morte física, mas também à própria constituição de sujeição a ambientes insalubres, um apagamento político do ser, a dita invisibilidade social (SCISLESKI et al. 2012). Exemplo dessa força é a proibição do uso de algemas em jovens, mas a prática do uso ainda é bastante usual no meio policial. Outro exemplo é o fato de que, ao invés de serem direcionados à Delegacia da Criança e do Adolescente (DECA), como consta na lei do ECA, muitos jovens são encaminhados a delegacias comuns; sem falar nas próprias violações do ECA praticados nessas medidas socioeducativas de regime fechado, como as condições em que essas juventudes são colocadas, ambientes insalubres, agressões físicas, psicológicas (SCISLESKI; CAETANO; GALEANO, 2015).

Com profundidade, percebe-se que não são somente as juventudes em conflito com a lei estão expostas a essas condições, mas qualquer jovem de periferia também pode estar sujeito a essa força de exceção. Jovens pobres, muitas vezes, são rotulados como perigos iminentes, potenciais violentos e recebem um “cuidado” para que não incomodem a normatização social. Jessé Souza (2009) em sua obra “Ralé Brasileira”, trata em alguns dos capítulos de seu livro, “O crente e o delinquente” ou mesmo “O trabalho que (in)dignifica o homem”, a ideia de que há uma linha tênue entre pobres da ralé — como assim o autor os chama com tom provocativo — que seria a delinquência e a honestidade. Nesse caso, os dois membros dessa classe (o delinquente e o honesto) podem ser confundidos a todo momento, dando a ideia de que essa classe é homogênea.

Nessa situação estão as juventudes das periferias no Brasil. Segundo Soares (2003), a sociedade brasileira desenvolve uma invisibilidade de jovens pobres e marginalizados, que podem “compensar” essa falta por meio do tráfico de drogas, entendido como alternativa potencial para suprir a “fome de existência”. Tal “fome” deseja um reconhecimento social que muitos desses jovens não encontram, pelo menos de forma lícita, recorrendo ao tráfico, uma vez que ele além de dar visibilidade, dá poder e acesso a bens de consumo — bens que são valorizados pela alta sociedade e divulgados de forma ostensiva pela mídia e pela sociedade de consumo. Um exemplo desta mecânica de “fome de existência” direcionadas ao tráfico é que ele é o segundo tipo penal mais acometido no Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça — CNJ (2018), com taxa de 24,74%, ficando atrás apenas do roubo (27,58%).

Quando se fala de campo, que, segundo Agamben (2010), é um paradigma biopolítico do Ocidente, pode-se relacioná-lo com o estado de exceção e quando este se confunde com as regras, tende-se a permanecer no tempo, surgindo, assim, o campo, que nada mais é que estado de exceção desejado ou mesmo permanente, que diz respeito ao espaço absoluto de exceção (AGAMBEN, 2010). Seguindo essa linha de raciocínio, existem os elementos necessários para se entender o ordenamento jurídico, que se instaura e se perpetua cada vez mais com a prática de abandono de vida, que a política nacional se constitui como uma biopolítica, ou melhor, em uma tanatopolítica, a carregar mecanismos invisíveis de extermínio de juventudes periféricas, com base em práticas de controle social cotidiano.

A necropolítica e o crime perfeito brasileiro

É considerável desenvolver uma discussão que segue a linha da compreensão de Foucault e Agamben, mas também trazer à tona outra ideia, mais ampla, que é o “fazer morrer e deixar morrer”, trabalhada pelo autor camaronês Achille Mbembe (2018). Ele empreende importantes discussões para analisar processos atuais no Brasil que carregam características de colonialidade, especificamente traços de ações escravocratas e do sistema de plantation presentes nas relações sociorraciais brasileiras. Esse sistema consiste no mecanismo de escravização neocolonial, no qual há uma negação dos direitos sobre o próprio corpo e do estatuto político, potencializando uma morte social do sujeito (MBEMBE, 2018).

Uma das primeiras ideias a se abarcar é que há uma reconfiguração de visão acerca da constituição social brasileira: ela não foi necessariamente um lugar histórico pautado no encontro de privilégios, mas na morte. Há uma junção entre diagramas do poder (soberania-disciplina-biopoder-biopolítica-necropolítica), culminando numa bio-necropolítica que destaca os desafios atuais para “se pensar a emergência e pulverização microcapilares das relações e mecanismos de poder, principalmente em contextos sociais advindos dos processos de colonização e onde os elementos de colonialidade ainda são fortes” (LIMA, 2018, p. 22).

Nestes ambientes, a vida (bios) não foi estritamente um espaço em que as redes de poder encontraram contextos de privilégio, mas sim de morte, e a possibilidade do matável constituir-se como centro organizador das relações sociais. Parte-se, então, da prerrogativa de Mbembe de que “a guerra, não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de matar” (MBEMBE, 2017, p. 108). Em outras palavras, o autor amplia a visão acerca dos diagramas de poder “biopoder/biopolítica”, pondo em questão o pensar sobre a vida e a morte em ambientes coloniais e decoloniais. Além disso, traz a compreensão da necropolítica (política da morte) como episteme e metodologia de reflexão para pensar os processos atuais brasileiros, latino-americanos e caribenhos que carregam, transformam e atualizam constantemente a colonialidade, como os traços dos desenvolvimentos escravocratas e dos sistemas de plantation, marcadores dispostos nas relações sociorraciais (LIMA, 2018).

O que se quer afirmar com esses pressupostos é que é imprescindível um olhar apurado para um viés racial, principalmente quando se parte da constituição social brasileira, em que o “devir negro” está permeado pela precarização da vida. Isso inclui não apenas as populações negras brasileiras, mas também as não negras empobrecidas e cada vez mais precarizadas.

A bio-necropolítica é, então, um analisador, principalmente quando se reflete sobre a democracia e o desenvolvimento de uma vida em ambientes brasileiros, pois a constituição de uma gramática sociorracial se sustentou por bastante tempo no “mito da democracia racial” e na “cordialidade” (LIMA, 2018). Daí, vem a ideia de o racismo brasileiro ser um crime perfeito. Primeiro, porque ele é um racismo não assumido, velado, não-dito, que é fincado nos ideais citados logo acima. Segundo, é um racismo que exclui e mata, e a morte não se resume apenas a uma morte física, mas também uma morte-em-vida, em que se mata não só a consciência da vítima como também da população em torno da questão do racismo (DANTAS; FERREIRA; VERAS, 2017).

A necropolítica de Mbembe traz à tona uma política da morte em que ser soberano é desenvolver controle sobre a mortalidade, estabelecendo o viver como manifestação de poder. Dito de outra maneira, ser soberano é escolher quem deve morrer, quem é descartável, quem, de fato, não importa socialmente (MBEMBE, 2018). Reconfigurando as ideias de Foucault quando fala de “Biopoder/Biopolítica” e ampliando a visão acerca das conceituações de “Estado de Exceção” de Agamben, Mbembe manifesta a junção entre “poder disciplinar”, “bio” e “necro” como uma tecnologia de produção e gestão da morte (MBEMBE, 2018).

O objetivo desse texto e, especificamente essa seção, é trazer à tona a análise da ideia de necropolítica de Mbembe e a consolidação da bio-necropolítica que Fátima Lima (2018) descreve em seu artigo “Bio-necropolítica: diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe”, evidenciando dados atuais que apontam, a nível nacional, a morte de população específica advinda das reconfigurações de racismo presentes desde a Era Colonial. Em síntese, o crime perfeito brasileiro nada mais é do que uma política centrada na construção social brasileira pautada na morte e não em direitos.

Segundo o Atlas da Violência (2018) publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a quantidade de homicídios no ano de 2016 foi de 65.517. Destacando o recorte racial, a taxa de homicídios de negros chega a 40,2% e de não negros a 16,0%, ou seja, a taxa de homicídios de pessoas negras é quase três vezes maior quando comparada com a de não negras. O 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública ressalta que 99,3% de pessoas assassinadas em 2016 eram do gênero masculino, das quais 81,8% tinham entre 12 e 29 anos e 76,2% eram negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2018).

Ao se pôr em pauta a questão da “Nordestinação de Homicídios”, destaca-se, especialmente, a questão do acentuado índice de morte de juventudes pobres e negras. Borges de Melo e Cano (2017) mostraram, em pesquisa sobre homicídios no Brasil, que dos nove estados com maiores Índices de Homicídios na Adolescência (IHA), oito estão concentrados na Região Nordeste. Além disso, vale destacar que o Ceará é o estado com maior IHA e Fortaleza, sua capital, tem o maior índice entre as capitais do país. O que se pode perceber é que pessoas negras são as que mais morrem e o Ceará é o estado que mais mata.

Eduardo Taddeo é um rapper paulista de grande destaque nacional no Movimento Hip-Hop, ao trazer temáticas interessantes em suas composições. Uma delas, que é homônimo do título do álbum, chama-se “O Necrotério Dos Vivos”. Destaca-se aqui um trecho da música: “Mesmo longe dos sacos de corpos/Mesmo sem coração crivado de tiros/Mesmo sem túmulos com a sua foto/Você aqui jaz no Necrotério dos Vivos”.

O que se objetivou com todo esse panorama numérico e com a música do rapper foi ratificar não apenas o extermínio físico, do confronto entre polícia e população civil, mas também à morte-em-vida. Assim como o escravizado de outrora, hoje os escravizados a partir do racismo duplo (o crime perfeito) são “mantidos vivos”, mas, diversas vezes, em “estado de injúria”, em “estado de morte”, em que passam a vivenciar um espectro de horrores e crueldade. Como o próprio Eduardo Taddeo menciona em outro trecho da música: “Enquanto eles criminalizam movimento social/Metralham denunciador de abuso policial/Prova da morte do nosso senso crítico/É o comício que não tem um drone explosivo/Walking Dead real versão do opressor”. Isso é manifestado nas próprias políticas públicas, que almejam a desproteção, a vigília, o descompromisso com a garantia de direitos mesmo que eles sejam instituídos por lei. A lei que vale é a lei do estado de exceção, de morte, imerso no contexto brasileiro, que é um verdadeiro e cruel necrotério dos vivos.

A bio-necropolítica dispõe, então, de tecnologias que atuam como formas de colapso não apenas nas periferias, mas também nas pessoas periféricas: negras e empobrecidas. Isso acaba por bloquear, muitas vezes, uma transição de autonomia, de conscientização crítica, impondo a ordem e o controle à força, o racismo perpetuado nas micropolíticas de relações estabelecidas através de dispositivos de poder (escolas, presídios, família) e manifestadas também por políticas públicas que não são efetivadas por completo (no caso do ECA), e, quando são, primam por práticas que focam no desamparo, abandono e vigilância, morte.

Mbembe declara que “[...] a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2017, p. 05). Eis um exemplo soberano que maximiza as práticas de morte, e, novamente, não apenas morte física. As marcas deixadas pela truculência policial em jovens que cumprem medidas socioeducativas podem ter consequências terríveis, como traumas e medos que passam a minar o dia a dia das vítimas que sofreram opressões viscerais.

Um questionamento a se fazer é: como viver sendo empobrecido(a), negro(a) e jovem em um Brasil moderno pautado em uma política da morte? Indo mais além, como se livrar das ideias eurocêntricas, colonizadas, incutidas na população brasileira desde a fatídica e genocida invasão chamada romanticamente de “descobrimento do Brasil” e que nos impede de conhecermos a nós mesmos(as) na relação com os(as) outros(as)?

Não restam dúvidas de que a forma como as colônias organizaram-se na chamada Era Colonial brasileira possibilitou o desenvolvimento de mecanismos opressivos através dos quais esses ambientes eram considerados fronteiras, povoados por selvagens que estavam abaixo da ordem estatal, construindo um espaço de terror (LIMA, 2018). Hoje, isso é vivenciado de forma reconfigurada nas favelas e nas periferias.

Em outras palavras, a sociedade brasileira se constituiu, desde o princípio, uma zona de exceção, ou seja, a exceção está nos mais íntimos processos vivenciais e suas consequências modelam, com frequência, os discursos e reatualizam, por meio de uma metamorfose, traços de colonialidade (LIMA, 2018). Essas ações suspendem o que, de fato, seria um verdadeiro processo de democracia, levando em consideração, em específico, contextos que se moldam sob o mito da democracia racial.

Ressalta-se, por fim, que, ao se afirmar que a construção nacional foi instituída por meio de uma exceção, almeja-se evidenciar o contexto em que a soberania se exerce, atuando na prática de um poder à margem da lei (ab legibus solutus), no qual a paz passa a se configurar como uma guerra sem fim (MBEMBE, 2018) orquestrada pelo Estado. As guerras se revelaram de formas atuais e se repetem microcapilarmente em distintos cenários brasileiros. Não obstante, o poder bio-necropolítico se escancara no sistema carcerário e nas favelas em dados alarmantes de genocídio da população negra e empobrecida, cuja maioria é jovem e masculina, e em inúmeros outros lugares.

Considerações Finais

Este trabalho não desejou apresentar soluções prontas ou saídas mágicas para uma conjuntura de formas de governos entendidas apresentadas aqui como de exceção, de morte. De forma contrária, sendo recortes de análises de pesquisas, referenciais teóricos devidamente embasados, políticas, ele se propôs a analisar criticamente e de maneira problematizada as (im)políticas de juventudes. Além disso, almejou-se chamar atenção para que haja um repensar sobre as práticas acerca das políticas sociais, ao compreender como elas podem evidenciar mecanismos de gestões de morte.

Ademais, desejou-se promover, enfim, uma reflexão acerca das formas de governo que são formuladas e praticadas como modos de assujeitamento de um contingente populacional incessantemente morto, excluído. As tecnologias bio-necropolíticas do “deixar morrer” e do “fazer morrer” foram postas em pauta durante a escrita das seções com o molde prático: o extermínio da vida e a produção da morte.

E, claro, se existe a produção da morte não mais se deve falar de um governo que age em uma biopolítica, mas em uma tanatopolítica. E para além disso, se existe tanto uma produção de morte como um extermínio da vida, chama-se aqui de bio-necropolítica. Destacando que: é mesmo interessante deixar jovens morrerem em meio ao discurso falacioso do “politicamente correto” sob a égide de protegê-los? A quem serve esse “fazer morrer” e “deixar morrer”?

Foucault denomina anatomia política ou mecânica do poder aquela que busca a dominação do corpo para que ele aja da maneira que o poder político precisa. Para além de uma anatomia, existe uma tanatopolítica, que se manifesta a partir do princípio da exceção, este, segundo Agamben. Há uma continuação de estudos nesta perspectiva, em que Fátima Lima adentra a visão de uma bio-necropolítica, ao fazer uma análise aproximativa entre Foucault e Mbembe. Essa tecnologia que age nas relações de poder atua nas dinâmicas de morte, uma política soberana que age matando públicos específicos (pessoas negras, empobrecidas, periféricas). A partir dessa ideia, afirma-se que a referida morte não é apenas o falecimento físico, mas também as diversas formas de exclusão e desigualdades, as políticas públicas de desamparo, ou mesmo unicamente compensatórias, que potencializam as hierarquias governamentais e rejeitam os desejos das juventudes, buscando a todo custo uma docilização dos corpos, ao torná-los passivos.

E eis que se responde à pergunta anterior: não se pode deixar a perspectiva “progressista”, com ideias de proteção e “politicamente corretas”, ser imputada nos imaginários políticos da população, uma vez que essa falácia manifesta-se de tal forma que tem como consequência a docilização dos corpos em atos, em maneiras de agir, pensar e ser. O que se deve visar são políticas públicas que abranjam potenciais de vida e não políticas de morte.

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Resumo:
As reflexões neste trabalho pautam sobre as políticas de desproteção, abandono e morte, tendo como referencial teórico autores como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Achille Mbembe e Fátima Lima. Com ajuda de Foucault, refletiu-se sobre como as políticas sociais favorecem processos de governo da vida. Com Agamben, percebeu-se como formas de estruturação das relações podem gerar exclusão de jovens e contribuir para um estado de exceção. Com Mbembe e Fátima Lima, compreendeu-se as condições de morte implicadas nas relações de políticas de desinvestimento. A conclusão a que se chega com esse estudo é que o modo que políticas são concebidas e executadas possibilitam um “fazer morrer e deixar morrer” no contexto brasileiro.

Palavras-chave:
Juventudes; Biopolítica; Necropolítica; Estado de Exceção.

 

Abstract:
The reflections in this work are based on the policies of unprotection, abandonment and death, using as theoretical references authors such as Michel Foucault, Giorgio Agamben, Achille Mbembe and Fátima Lima. With Foucault’s help, we reflected on how social policies favor life’s government processes. With Agamben, we perceived how ways of structuring relationships can generate exclusion of young people and contribute to a state of exception. With Mbembe and Fátima Lima, we understood the conditions of death implied in the relations of policies of disinvestment. The study concludes that the way by which policies are conceived and executed make it possible to “make die and let die” in the Brazilian context.

Keywords:
Youths; Biopolitics; Necropolitics; State of Exception.

 

Recebido para publicação em 04/05/2020
Aceito em 15/01/2021

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