Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d07
ISSN: 2318-4620

 

 

Narrativas mise en abyme:
memória e escrita do trauma em Terra sonâmbula, de Mia Couto, e Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie

 

Marilane de Almeida Silva Casorla OrcID
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
mari.casorla@gmail.com

 

Introdução

Para que as personagens possam viver, devem contar.
(TODOROV, 1969, p. 129).

Duas obras contemporâneas expõem contextos de guerra civil em África; dois jovens narradores escrevem suas memórias, cada qual em sua terra natal devastada, para elaborar suas trajetórias...

Terra sonâmbula, do moçambicano Mia Couto, de 1992, traz, no cenário da guerra civil que durou dez anos em Moçambique, os personagens Muidinga e Tuahir, um menino e um velho que estão caminhando a esmo à procura de abrigo e alimento. Essa marcha ganha algum fôlego quando eles encontram, junto a um homem morto, cadernos que contêm o diário de um jovem chamado Kindzu e passam a ler essas histórias diariamente. Mais precisamente, os cadernos encerram os relatos da viagem que Kindzu empreende para se tornar um naparama, espécie de guerreiro que luta por paz, abençoado por feiticeiros. Nessa jornada, Kindzu se depara com sua terra devastada e personagens desolados por causa da fome e de todas as mazelas trazidas pelo conflito.

Meio sol amarelo, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, de 2006, tem como protagonistas Olanna, uma moça da alta sociedade que se torna professora de Sociologia em uma universidade nigeriana; Richard, um jornalista e pesquisador inglês que escolhe viver na Nigéria; e Ugwu, empregado doméstico que se dedica à escrita de um livro sobre os horrores da Guerra Nigéria-Biafra, que durou de julho de 1967 a janeiro de 1970, cuja tentativa frustrada da fundação da República de Biafra termina em aproximadamente um milhão de mortos.

Pelo viés das narrativas mise en abyme, ou narrativas em abismo, é que são analisadas as obras escolhidas, pois ambas contêm, dentro de suas narrativas principais, narrativas encaixadas — os cadernos de Kindzu e o livro de Ugwu.

Utilizado primeiramente por André Gide, escritor francês, no âmbito da heráldica, para se referir à reprodução da imagem de um brasão dentro do próprio brasão, o termo mise en abyme foi tomado, em seguida, para nomear a ideia de duplicação de uma imagem, ou objeto, como ocorre, por exemplo, com as bonecas russas, as matrioscas. Outra conhecida referência é o do quadro As meninas, de Diego Velázquez, artista espanhol: a pintura, de 1656, revela um pintor no momento de seu trabalho, ou seja, contém uma imagem duplicada de si mesma.

A expressão mise en abyme passou a ser empregada, posteriormente, no campo das artes plásticas e dos estudos literários para designar uma narrativa encaixada, uma história dentro de outra história que produza reflexividade, espelhamento, como assegura Antunes (1982): “o mundo real inclui a obra literária que reflete este mundo; a obra literária inclui um fragmento reflexivo que a espelha; o fragmento reflexivo pode incluir um fragmento que o reflete ao infinito” (ANTUNES, 1982, p. 65).

Nesse sentido, parte-se da hipótese de que a mise en abyme foi uma estratégia utilizada pelos autores Mia Couto e Chimamanda Ngozi Adichie: em Terra sonâmbula, organizados em capítulos intercalados, estão os cadernos de Kindzu, que configuram uma narrativa encaixada na primeira; em Meio sol amarelo, interrompendo o fluxo da narrativa principal, há uma espécie de roteiro para o livro de Ugwu, que é a narrativa encaixada. Segundo Todorov:

Contando a história de uma outra narrativa, a primeira atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes ínfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente. Ser a narrativa de uma narrativa é o destino de toda narrativa que se realiza através do encaixe. (TODOROV, 1969, p. 125).

Afora ter uma função reflexiva, a narrativa em abismo pode, ainda, revelar aspectos ou pormenores não evidentes na narrativa principal, como observamos em Meio sol amarelo, cuja narrativa encaixada, ou seja, o livro de Ugwu, é que se ocupa de fornecer ao leitor fatos que auxiliam na compreensão de como se chegou à guerra civil na Nigéria.

Perpassando a dimensão traumática de suas experiências, Kindzu e Ugwu, como sobreviventes, realizam a tarefa individual de testemunhar catástrofes coletivas, na esteira do que nos assevera Seligmann-Silva:

[...] podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma atividade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida daquele que volta [...] de situação radical de violência que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar. [...] nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 102-103, grifos originais).

Isto posto, verifica-se que as narrativas mise en abyme nas obras analisadas são, para os personagens-autores, projetos de memória e escrita do trauma.

Os cadernos de Kindzu: a memória dos mortais

Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.
(COUTO, 2015, p. 14).

Gagnebin (2009), em seus estudos sobre a escrita como memória, reflete como a Odisseia, de Homero, pode ser lida como uma aventura que ultrapassa o território mítico e inumano, a fim de tratar da busca da constituição dos sujeitos mortais, sendo Ulisses, o herói épico, um guardião de memórias:

[...] a luta de Ulisses para voltar a Ítaca é, antes de tudo, uma luta para manter a memória e, portanto, para manter a palavra, as histórias, os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e, também, a não se esquecerem do futuro. (GAGNEBIN, 2009, p. 15).

Por esse prisma, é possível estabelecer um paralelo entre Ulisses e Kindzu, o protagonista da narrativa secundária de Terra sonâmbula, pois este também é um herói em uma jornada rumo a si mesmo, contando suas aventuras e sua passagem da infância à vida adulta. Kindzu é exemplo do narrador benjaminiano, aquele que viaja, e por isso tem conselhos para dar e verdades a ensinar, como no excerto: “A morte, afinal, é uma corda que nos amarra as veias. O nó está lá desde que nascemos. O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estacando pouco a pouco” (COUTO, 2015, p. 118).

Kindzu transcreve ditos populares e provérbios — ainda que alterados — citados por outras pessoas com quem encontra em suas aventuras: “Do menos o mal: afinal, grão a grão o papa se enche de galinhas” e “Você sabe: em terra de cego quem tem um olho fica sem ele” (COUTO, 2015, p. 125), exemplos de como a narrativa do viajante teria dimensão utilitária, em conformidade com Walter Benjamin:

[...] isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p. 200).

Depreende-se, dessa maneira, que Kindzu é — tal como Ulisses — um contador de histórias, que evoca a oposição entre a oralidade dos antepassados e a escrita da modernidade, pois ele narra o que é da tradição oral, mas na forma moderna da escrita de um diário. Em uma tênue linha entre a realidade e o sonho — ou estado sonâmbulo! — o protagonista da mise en abyme descreve, metaforicamente, tradições e elementos do folclore e da cultura moçambicanos e resgata o ato de narrar experiências, o qual vem se perdendo, de acordo com Gagnebin, na trilha de Walter Benjamin:

Quando Walter Benjamin fala do fim da narração e o explica pelo declínio da experiência (Erfahrung), ele retoma exatamente os mesmos motivos: a continuidade entre as gerações, a eficácia da palavra compartilhada numa tradição comum e a temática da viagem de provações, fonte da experiência autêntica — mesmo que seja para afirmar que estes motivos perderam suas condições de possibilidade na nossa (pós)modernidade. (GAGNEBIN, 2009, p. 109).

Dessa forma, a escrita de Kindzu contém o poder da palavra como legado para as próximas gerações, bem como a necessidade de “não esquecer dos mortos, dos vencidos, não calar, mais uma vez, suas vozes — isto é, cumprir uma exigência de transmissão e de escritura” (GAGNEBIN, 2009, p. 109).

Além da escrita como legado de tradições, Kindzu projeta em suas narrativas a busca pela condição humana, do que é do sentimento humano, procurando expor mais as mazelas emocionais dos personagens com os quais interage do que suas misérias materiais em tempos de guerra. Debruça-se sobre personagens fragmentados — como a própria Moçambique está fragmentada em sua guerra civil — que transitam entre a vida e a morte: Romão retorna do mundo dos mortos e se move carregando o próprio caixão; Virgínia pede à sua filha adotiva, Farida, que lhe escreva cartas fingindo ser um parente distante e, depois, lê as correspondências quase aos prantos — em um exemplo da escrita como consolo, como recurso ao insulamento; Surendra, acreditando que a esposa está morta, entra em um grave estado de torpor do qual não consegue mais sair mesmo quando a descobre viva.

Portanto, são constantes, nas memórias do personagem-autor, a evocação de sentimentos de não pertencimento e deslocamento, pois os personagens dessa odisseia moçambicana estão incompletos, divididos. Kindzu narra, inclusive, a sua própria solidão, mesmo estando junto a Farida, a mulher por quem se apaixona:

[...] Nós dois estávamos divididos entre dois mundos. A nossa memória se povoava de fantasmas da nossa aldeia. Esses fantasmas nos falavam em nossas línguas indígenas. Mas nós já só sabíamos sonhar em português. E já não havia aldeias no desenho do nosso futuro. Culpa da Missão, culpa do pastor Afonso, de Virgínia, de Surendra. E sobretudo culpa nossa. Ambos queríamos partir. Ela queria sair para um novo mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. (COUTO, 2015, p. 90).

Ressalta-se que quando Farida conta sua história para Kindzu, tem-se mais uma ocorrência de mise en abyme em Terra sonâmbula:

Esta é a minha estória, nem sei por que te conto. Agora estou cansada de falar. É perigoso continuar. Quem sabe eu perderei o pensamento, as minhas lembranças se misturarão com as tuas. [...] Agora, não é que acredite neles, nos espíritos. Sei que sou um deles, um espírito que vagueia em desordem por não saber a exata fronteira que nos separa de vocês, os viventes. Nós somos sombras do teu mundo, tu jamais nos tinhas escutado. É porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. (COUTO, 2015, p. 81, grifos meus).

A narrativa de Farida, que se diz dentro do fruto, está inserida na narrativa de Kindzu, que por sua vez está dentro de outro fruto, que é a narrativa principal de Muidinga e Tuahir. Reitera-se que essas narrativas em abismo espelham as narrativas que as contêm, o que se confirma pela proposição de Todorov: “A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’ da nova personagem, nos seja contada” (TODOROV, 1969, p. 121).

Os cadernos são, para Kindzu, uma forma de proteção contra sua condição de mortal. Em seus momentos finais, o jovem rapaz se sente satisfeito por seus diários estarem em outras mãos, sendo lidos por outrem, perpetuando a sua história e a da sua terra:

De repente, a cabeça me estala em surdo baque. Parecia que o mundo inteiro rebentava, fios de sangue se desalinhavam num fundo de luz muitíssimo branca. [...] Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. [...] De suas mãos tombam os cadernos. [...] Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos os meus escritos se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2015, p. 197).

A esse respeito, e ainda traçando um paralelo entre Ulisses e Kindzu, retomam-se os estudos de Gagnebin:

A única coisa a fazer, então, não é esperar por uma vida depois da morte [...], mas sim tentar manter viva, para os vivos e através da palavra viva do poeta, a lembrança gloriosa dos mortos, nossos antepassados outrora vivos e sofredores como nós. Essa é a função secreta, mas central, de Ulisses, figura, no próprio poema, do poeta, daquele que sabe lembrar, para os vivos, os mortos. [...] reconhecer nossa condição de mortais, condição tão incontornável como a exigência que ela implica: cuidar da memória dos mortos para os vivos de hoje. (GAGNEBIN, 2009, p. 27).

Logo, Kindzu é um herói da pós-modernidade, o contador de histórias que deseja, pela escrita, manter vivas as tradições e homenagear os mortos na guerra que assola sua terra, mas é também um herói homérico às avessas, pois sua narrativa é fragmentada, não linear, em contraposição às narrativas clássicas.

O livro de Ugwu: o dever de contar

Você se calou quando nós morremos?
(ADICHIE, 2008, p. 433).

Na narrativa encaixada de Meio sol amarelo, tem-se uma espécie de roteiro para o livro de Ugwu, intitulado “O mundo estava calado quando nós morremos”, que inclui prólogo, desenvolvimento e epílogo:

1. O Livro: O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos

Para o prólogo, ele [Ugwu] relata a história da mulher com a cabeça. Ela está sentada no chão de um trem, espremida entre pessoas chorando, gritando, rezando. Viaja calada, afagando num ritmo suave a cabeça coberta que tem no colo, até cruzarem o Níger; depois, ergue a tampa e pede a Olanna e aos outros por perto para que olhem lá dentro.

Olanna lhe conta essa história e ele repara nos detalhes. Ela lhe conta que as manchas de sangue nos panos da mulher se confundiam com o estampado do tecido, produzindo um tom de malva enferrujado [...]. (ADICHIE, 2008, p. 100-101, grifos originais).

Podemos considerar Ugwu um cronista, aquele que acrescenta a fatos históricos suas impressões pessoais, por vezes dando caráter ficcional ao texto, tornando-o um híbrido de jornalismo e literatura, no qual inclui sua experiência de guerra, tanto como um civil quanto como um soldado do exército de Biafra. Gagnebin afirma que:

[...] quando alguém escreve um livro, ainda nutre a esperança de que deixa assim uma marca imortal, que inscreve um rastro duradouro no turbilhão das gerações sucessivas, como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio, contra a indiferença da morte. (GAGNEBIN, 2009, p. 112, grifos meus).

O livro de Ugwu vem ao encontro dessa proposição, pois o silêncio — que está no título o livro — e a indiferença pelas mortes dos biafrenses são o mote para a escrita, o que fornece a coragem para rememorar a guerra e como se chegou a ela. Sob esse aspecto, o personagem-autor enfrenta o passado, na tentativa de compreendê-lo, estabelecendo uma linha do tempo que vai do surgimento da Nigéria até o fim do conflito, dado pela derrota da República de Biafra. É para se opor ao silêncio que a voz de Ugwu se faz ouvir, como um dever de contar o que os biafrenses viveram:

6. O Livro: O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos

Ele [Ugwu] escreve sobre o mundo, que permaneceu calado enquanto os biafrenses morriam. Argumenta que a Grã-Bretanha inspirou esse silêncio. [...] A China comunista denunciou o imperialismo anglo-americano-soviético, mas nada fez para apoiar Biafra. Os franceses venderam armamentos a Biafra, mas não deram o reconhecimento de que o país mais precisava. [...] (ADICHIE, 2008, p. 302, grifos originais).

Além de cronista, Ugwu também se configura como poeta, aquele que “resgata o acontecido do esquecimento: é uma espécie de memória viva da espécie, do seu povo” (MENESES, 2004, p. 147), e esse resgate se dá pela literatura e pela própria poesia:

7. O Livro: O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos
 
Para o epílogo, [Ugwu] escreve um poema
[...]
Você viu as fotos em 68
De crianças com o cabelo ficando ferrugem?
Chumaços doentes aninhados nas cabecinhas,
Caindo feito folha podre na terra poeirenta?
[...]
A pele deles ficou castanha como chá fraco,
Mostrava uma teia de veias, osso quebradiço;
Crianças nuas brincando, como se o homem não fosse
Fotografá-las e depois partir só, sem rebuliço.
(ADICHIE, 2008, p. 433, grifos originais).

O personagem-autor leva dados reais para a ficção, confirmando sua atuação de poeta e cronista para escrever seu livro e, ainda, resgata narrativas orais — como a história que Olanna lhe conta, sobre ter visto, em um trem, uma mulher com uma cabeça de criança no colo — e as transporta para o livro. Em outras palavras, Ugwu metamorfoseia a experiência narrada, não como um historiador, mas como o poeta da definição de Aristóteles (2015), aquele que busca na memória a fonte para sua poesia. Conforme aponta Gagnebin:

Dos poetas épicos aos escritores sobreviventes dos massacres do século XX, [...] a memória dos homens se constrói entre esses dois polos: o da transmissão oral viva, mas frágil e efêmera, e o da conservação pela escrita, inscrição que talvez perdure por mais tempo, mas que desenha o vulto da ausência. Nem a presença viva nem a fixação pela escritura conseguem assegurar a imortalidade; ambas, aliás, nem mesmo garantem a certeza de duração, apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência, e do esforço de dizê-la. (GAGNEBIN, 2009, p. 11).

Ugwu é esse sobrevivente que se dedica a escrever uma narrativa como elaboração do trauma da guerra. Ainda que inconscientemente, ele desejou ser recrutado para o exército, como o herói que sonha para si um fim trágico e honrado. O recrutamento ocorre e, como soldado, Ugwu quase morre na explosão de uma trincheira e subsiste à fome e aos ataques aéreos ao território de Biafra. Por isso, é previsto que ele faça referência aos não sobreviventes em seu livro:

4. O Livro: O Mundo Estava Calado Quando Nós Morremos

Ele [Ugwu] se concentra nos massacres de 1966. As razões ostensivas [para a guerra] — vingança pelo “golpe ibo”, protesto contra um decreto unitário que faria o povo do Norte sair perdendo no funcionalismo público — não tinham a menor importância. Assim como também não importava o número variável de mortes: três mil, dez mil, cinqüenta mil. O importante foi que os massacres assustaram e uniram os ibos. O importante foi que os massacres fizeram de antigos nigerianos fervorosos biafrenses. (ADICHIE, 2008, p. 240, grifos originais).

Percebe-se que o personagem-narrador se detém nas atrocidades de guerra sofridas nas experiências coletivas, evitando, aparentemente, narrar suas experiências como soldado, para se manter em “condição de se afastar de um evento tão contaminante para poder gerar um testemunho lúcido e íntegro” (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 103, grifos originais), posto que ele mesmo foi capaz de cometer uma atrocidade:

No chão, a moça não se mexia. Ugwu desceu a calça, surpreso com a rapidez de sua ereção. Ela estava seca e tensa quando entrou nela. Ugwu não olhou para o rosto dela, nem para o homem segurando seus ombros, nem para nada, enquanto se movia rapidamente e sentia seu próprio clímax, a onda de fluídos chegando: um desafogo de auto-repulsa. Abotoou a calça, enquanto alguns soldados aplaudiam. Por fim, olhou para a moça. Ela o fitou de volta com uma raiva mansa. (ADICHIE, 2008, p. 423).

Constata-se, assim, que a escrita da memória de Ugwu enfrenta a culpa por ele ter sido também um causador de violência, tornando-o igual aos soldados inimigos. Porém, essa narrativa do trauma ultrapassa as delimitações de papéis de juiz e acusado, pois a questão da culpabilidade é apartada da elaboração do passado (GAGNEBIN, 2009), sendo superada pelo dever de romper o silêncio, de assinalar o não esquecimento dos mortos, e é o que esse anti-herói contemporâneo parece alcançar com seu livro.

Considerações finais

Dois narradores se dedicam a escrever suas memórias, ambos em espaços de guerra civil em África, ambos jovens contadores de histórias. Kindzu, de Terra sonâmbula, é o narrador da experiência, o herói épico da jornada rumo a si mesmo, que tem ensinamentos para dar, evocando a oposição entre a oralidade moçambicana e a moderna escrita de diários. Em um estado sonâmbulo, entre realidade e sonho, e com uma narrativa não linear, projeta sua escrita como um legado das tradições, para perpetuar a história de sua terra e a lembrança dos mortos.

Ugwu, de Meio sol amarelo, é o narrador do romance contemporâneo, aquele que está perplexo diante do que vivencia. Experimenta o dever de contar, para romper o silêncio dos que voltam da guerra em estado de torpor e para alcançar aqueles que se mantiveram indiferentes, calados, enquanto tantos morriam, daí a escolha título do seu livro (“O mundo estava calado quando nós morremos”). Ugwu objetiva, ainda, ser como uma memória viva de seu povo, tendo vivido o conflito de duas formas, como civil e como soldado. Sua memória e escrita do trauma perpassa a culpa por ter sido capaz também de cometer atrocidades, colocando-o em pé de igualdade ao inimigo.

Os dois protagonistas das narrativas mise en abyme, em seus diferentes recortes e escolhas, elegem, portanto, a escrita para elaborar seu passado e para organizar sua memória do trauma. Mais que a escrita, escolhem a arte: o livro de Ugwu é permeado de poesia; os cadernos de Kindzu são atravessados de metáforas e provérbios. São personagens-autores que, no seu fazer literário, dão voz aos vivos e mortos das guerras, apagando sua própria voz, se necessário, como nas palavras de Kindzu: “É isso que desejo: me apagar, perder a voz, desexistir. Ainda bem que escrevi, passo por passo, esta minha viagem. Assim escritas estas lembranças ficam presas no papel, bem longe de mim” (COUTO, 2015, p. 192-193).

Valendo-se da estratégia das narrativas mise en abyme, Mia Couto e Chimamanda Ngozi Adichie, em suas obras literárias, criam personagens-autores que, ao privilegiar a arte literária, espelham a si mesmos, o autor moçambicano e a autora nigeriana, bem como seus projetos de memória: o projeto de Mia Couto, de manter vivas as tradições da oralidade moçambicanas impressas em seu Terra sonâmbula; e o projeto de Chimamanda Adichie, de resgatar, em seu Meio sol amarelo, a Guerra Nigéria-Biafra do esquecimento.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANTUNES, Nara Maia. Jogo de espelhos: Borges e a teoria da literatura. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ed. 34, 2015.

BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia de Bolso, 2015.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2009.

MENESES, Adélia Bezerra. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 2004.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes. Gragoatá, [s.l.], v. 13, n. 24, jun. 2008. Disponível em: periodicos.uff.br. Acesso em: 04 maio 2020.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Moysés Baumstein. São Paulo: Perspectiva, 1969.

Resumo:
Este trabalho discute como as narrativas mise en abyme de memória e escrita do trauma são construídas nas obras Terra sonâmbula, de Mia Couto, e Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie, cujos protagonistas descrevem suas experiências em tempos de guerra. Especialmente sob a perspectiva dos estudos de Jeanne Marie Gagnebin (2009) acerca da escrita como manutenção de lembrança para as futuras gerações, verifica-se que os personagens das narrativas em abismo elegem a escrita como forma de elaborar o passado e organizar a memória. São personagens-autores que, no seu fazer literário, dão voz aos vivos e mortos das guerras, apagando sua própria voz.

Palavras-chave:
Mise en abyme; Narrativa; Memória; Guerra.

 

Abstract:
This paper discusses how Terra sonâmbula, by Mia Couto, and Meio sol amarelo, by Chimamanda Ngozi Adichie, build mise en abyme narratives related to the memory and the writing about trauma, whose characters describe their war experiences. Especially from the perspective of Jeanne Marie Gagnebin’s (2009) studies about writing as a memory keeping for future generations, it turns out that the characters in these mise en abyme narratives elect writing as a way of elaborating the past and organizing the memory. These are characters-authors who, erasing their own voice, in their literary doing, give voice to the living and dead of wars.

Keywords:
Mise en abyme; Memory; Narrative; War.

 

Recebido para publicação em 30/10/2020
Aceito em 29/01/2021