Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 1, mar./jun., 2021
DOI: 10.36517/rcs.2021.1.d01
ISSN: 2318-4620

 

 

Escritas literárias africanas:
memórias, narrativas e elaboração de traumas coletivos

 

Cristina Maria da Silva OrcID
Universidade Federal do Ceará, Brasil
cristina.silva@ufc.br

Terezinha Taborda Moreira OrcID
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
taborda@pucminas.br

 

Este Dossiê reúne trabalhos em torno da temática Memórias de Guerra em experiências literárias africanas e sobre como a escrita tem sido espaço de elaboração de traumas coletivos. Essa proposta surgiu a partir de uma disciplina ministrada no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG) sobre “Espaços da Recordação em Narrativas Literárias Africanas” e se abriu aos pesquisadores de diferentes instituições que estão se dedicando ao tema.

Evocando noções como narrativa, trajetórias e memória, pensamos que é possível observar como os processos de recordação e elaboração têm se constituído através da escrita literária. O que essas narrativas mobilizam de suas paisagens coletivas? Como narram os enfrentamentos e as consequências da guerra civil? Como se esboçam nessas narrativas as trajetórias desses escritores, de seus países e de seus repertórios culturais? Enfim, como são mobilizados em suas escritas as recordações. Que espaços da recordação são mobilizados na montagem de suas escrituras?

A escrita literária é tomada como um campo de estudos e investigação, no qual é possível observar os enredos e tramas da vida social. Acolhemos a literatura africana nesta Revista de Ciências Sociais, não porque nela intentemos testar conceitos ou teorizações, mas para escutá-la, porque ela mobiliza e dispõe diante de nossos olhos os aspectos contingentes e arbitrários dos signos sociais, que muitas vezes, não conseguimos ver.

A literatura é um terceiro ponto, que não se confunde nem com a obra e nem com a linguagem, aponta-nos Michel Foucault (2001). Ela desenha um vazio, uma ausência, uma duplicação, uma repetição contínua da biblioteca. Nós bem sabemos que o mundo é uma grande biblioteca de signos, com seus arquivos misteriosos e imagens a nos desafiar a ler e decifrar (MANGUEL, 2009).

Na literatura só há um sujeito que fala: o próprio livro, a escrita. Desse modo, uma escrita literária se faz a partir de um sistema de signos que circulam em uma sociedade, “signos que não são apenas linguísticos, mas que podem ser econômicos (...) religiosos, sociais.” (FOUCAULT, 2001, p. 163).

Aleida Assmann (2011) aponta que junto com a escrita, a imagem, o corpo e os lugares são também as nossas metáforas do lembrar. Através dessas metáforas construímos o espaço das nossas recordações como mediadoras da memória cultural. A partir da análise de romances que narram traumas de guerra em territórios indígenas, Assmann, na parte que se dedica ao estudo do corpo como espaço da recordação, observa que as narrativas literárias não só manifestam o trauma, elas são também a abertura para a cura do trauma. Salienta que um trauma de guerra não pode ser lido como algo inscrito ao corpo individual, mas ao corpo da própria terra. Sendo assim, “a terapia do trauma nunca pode ser uma terapia individual, mas mantém relação estreita com a macro- história de uma terra igualmente traumatizada.” (ASSMANN, 2011, p. 313).

Acreditamos que problematizar a violência da guerra pode ser uma maneira de evidenciar as divergências ideológicas, as contradições e as injustiças presentes nas realidades africanas, marcadas por conflitos que se estendem da época colonial até a contemporaneidade. Por isso, esse dossiê pensa as escritas literárias africanas a partir da mesma relação entre literatura, história e trauma que Jaime Ginzburg (2000) propõe para a literatura brasileira quando reflete sobre o fato de que a opressão sistemática que marca nossa estrutura social, de formação autoritária, abala a noção de sujeito e, também, a concepção de representação, que se fragmenta, “exigindo do leitor a perplexidade diante das dificuldades de constituição de sentido, tanto no campo da forma estética, como no campo da experiência social”. (GINZBURG, 2000, p. 43).

Na esteira das reflexões de Ginzburg, as discussões apresentadas neste Dossiê mostram que várias narrativas produzidas nos países africanos encenam a condição humana de sujeitos cuja subjetividade é atingida pela opressão sistemática de uma estrutura social marcada pelo lastro do processo colonial na cultura e na vida em geral. Essa opressão tem impactos sobre a subjetividade desses sujeitos e, também, sobre a concepção de representação que orienta as narrativas. As reflexões trazidas neste dossiê mostram que, distanciando-se dos modelos canônicos da representação literária, as literaturas africanas propõem, muitas vezes, situações que se conformam mais como experiências de dessubjetivação do que de subjetividade. Elas se realizam a partir da fragmentação, evidenciando, com isso, os limites com que se deparam os escritores para constituírem sentido.

A representação da história, em várias obras, aproxima-se da proposta benjaminiana da História como sucessão de catástrofes, como ruína. Escritores e escritoras trazem, para criações estéticas, a violência, a injustiça e a agonia que conformam suas experiências sociais, problematizando-as. Isso decorre do fato de que desde a ocupação do território africano, marcado por inúmeras guerras locais e pela rejeição de línguas e de culturas autóctones, até a contemporaneidade, os países africanos convivem com uma política exploratória responsável pela divisão e pela dizimação de nativos, a qual contou com a participação de povos também autóctones. A escravidão significou um exercício sistemático de coerção pela violência e pelo racismo. Nessa sequência, os períodos pós-independência representaram novas formas de dominação dos estados sobre as sociedades civis. Essa série de traumas marca as experiências sociais africanas. As escritas literárias aqui analisadas tratam desses traumas a partir de uma reflexão melancólica na qual a realidade é assumida como catástrofe, a história é relida como ruína.

Essas narrativas encenam um contexto social que contribui sistematicamente para a desumanização do sujeito. E embora essa desumanização ganhe forma nas narrativas ficcionais, ela não é retratada sem questionamentos. Antes, é problematizada pelas limitações que os escritores e as escritoras impõem às suas personagens, por meio das quais eles tentam evidenciar a perplexidade dos sujeitos diante de situações opressivas e traumáticas. Assim, na escrita literária do escritor angolano Luandino Vieira, da guerrilheira e escritora angolana Deolinda Rodrigues, dos moçambicanos José Craveirinha e Mia Couto, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e da ruandesa Scholastique Mukasonga, encontramos um modo de construção que se processa a partir da indissociabilidade entre os campos estético, ético e político. Trata-se de escritas que assumem essa indissociabilidade como artifício para propor um trabalho estético-literário que tensiona a linguagem, indicando a dificuldade da forma literária para expressar a realidade violenta e traumática. Em função disso, as escritas dos autores aqui analisados tensionam o limite entre realidade e imaginação, promovem a fragmentação e a descontinuidade formal e rompem com uma tradição de escrita que não inclui a realidade e a história. Por isso, essas escritas literárias assumem a forma de testemunho.

Fernando Eslava e Luciara Pereira (2008) associam o testemunho a espaços ocupados por sujeitos periféricos, para os quais a escrita testemunhal ofereceria a possibilidade de dar visibilidade à história e à vida de grupos subalternizados, disseminando a sua versão sobre a história oficial. Os estudiosos explicam-nos que a narrativa do testemunho resultaria da apropriação, pela narrativa contemporânea, de diferentes linguagens e elementos culturais e, também, do momento histórico marcado pela multiplicidade. Destacam que esses fatores gerariam modelos ficcionais contaminados por recursos documentais e pela inserção de dados históricos, políticos e sociais na construção da narrativa. A consequência dessa forma de construção textual seria o apagamento das fronteiras que limitavam os modelos literários canônicos, as linguagens e os referentes.

O testemunho só existe sob o signo de seu colapso e impossibilidade, argumenta Seligmann-Silva (2008). Assim, as recordações que cavam os rastros e os restos de processos de guerra, lidam com traumas individuais e coletivos, lidam com perdas. Em Freud (2014), o acontecimento traumático deixa uma perturbação duradoura fixada no inconsciente, uma fixação a algo que é do passado, que pode desencadear uma alienação do presente e do futuro.

Para Gagnebin (2006), retomando Freud, o trauma é o corte, aquilo que fere e separa o acesso ao simbólico, sobretudo à linguagem. A autora ressalta também que túmulo e signo compartilham a mesma etimologia grega: sèma. Assim, a palavra está estreitamente associada às inscrições da finitude, dos rastros e da memória. A memória do trauma é uma forma de recuperar na fragilidade dos rastros individuais a compreensão para a história e para as condições de existência e continuidade socioantropológicas de cada sociedade. Na fragilidade do rastro, da memória e da escrita elaborar, rememorar é uma forma de atravessar o silencio, para negociar pela imaginação, simbolicamente ou não com o vivido. Uma forma de sobreviver ao acontecimento traumático. Lembra-nos Gagnebin:

O fato da palavra grega sèma significar, ao mesmo tempo, túmulo e signo é um indício evidente de que todo o trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação é também um trabalho de luto. E que as inscrições funerárias estejam entre os primeiros rastros de signos escritos confirma-nos, igualmente, quão inseparáveis são memória, escrita e morte. (GAGNEBIN, 2006, p. 45).

As reflexões que fazem parte do conteúdo deste Dossiê se debruçam sobre diferentes cenários de escritas, buscando neles as relações entre memória, escrita e guerra e como a escrita é um espaço primordial para elaboração e reescrita de si e da sociedade.

Gustavo Porto e Adeir Alves em Balabaze das hienas e a memória coletiva moçambicana propõem uma reflexão sobre o poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003) e o lugar da oralidade ao evocar a memória coletiva em sua escrita. Maria Genailze Chaves, Francisco Smith Júnior e Lilia Rocha analisam a tortura por meio do conto O fato completo de Lucas Matesso, de teor testemunhal, do angolano Luandino Vieira (1935-), observando as experiências do trauma depositadas no corpo no contexto de repressão ditatorial. Mateus António em Memórias de guerra: (res)sentimentos e revolta na escrita de Langidila, retoma a vida e a obra da ex-guerrilheira angolana, Deolinda Rodrigues (1939-1967), refletindo como sua escrita em seu diário e em cartas faz emergir ressentimentos e revoltas dos angolanos contra o sistema colonial português. Isabella Lamas e Natália Bueno, analisam a obra de Mia Couto (1955-), Terra Sonâmbula, publicada em 1992, observando como esta reconstitui uma Moçambique entrelaçada entre o presente e o passado em “uma guerra que parece não ter fim”: entre a guerra colonial e a guerra civil, as dimensões entre as memórias dos que a vivenciaram e da memória pública que demonstra ainda a permanência dessas relações na contemporaneidade.

Claudia Moraes, em Mundo em Desencanto em Tempos de Guerra Civil, investiga outra obra do escritor moçambicano Mia Couto, Antes de Nascer o Mundo, publicada em 2009, procura observar na narrativa como as agruras e traumas da guerra são elaborados no contexto da guerra civil moçambicana no contexto do pós-independência. Marilane Casorla em Narrativas em Mise em Abyme observa como a memória e escrita do trauma são construídas nas obras Terra Sonâmbula de Mia Couto e Meio Sol Amarelo, publicado em 2006, de Chimamanda Ngozi Adichie (1977-) e como os personagens-autores elegem a escrita como formas de elaborar o passado e organizar a memória. Junia Saraiva, baseando-se em Sigmund Freud, em sua obra Recordar, repetir e elaborar (1914), escreve o artigo Escrita de Mulheres como espaço de elaboração de traumas coletivos, encerra o ciclo desse Dossiê com uma reflexão sobre a obra Baratas, publicado em 1994, de Scholastique Mukasonga e Meio Sol Amarelo de Chimamanda Ngozi Adichie; apontando como a escrita é um espaço terapêutico para que os traumas de guerra e genocídios possam ser elaborados. Nos dois romances, as escritoras resgatam a história perdida de Ruanda e da Nigéria e permitem uma elaboração necessária para as suas sociedades, para que possam superar a repetição desses atos violentos.

Este Dossiê reflete e busca diminuir os distanciamentos que existem entre nossos conhecimentos acadêmicos, principalmente, entre ciências humanas e literatura, entre ciências sociais e literatura africana e a necessidade de que esses universos se aproximem e conversem entre si. Afinal como lembra Bruno Latour:

Nossa vida intelectual é decididamente mal construída. A epistemologia, as ciências sociais, as ciências do texto, todas têm uma reputação, contanto que permaneçam distintas. Caso os seres que você esteja seguindo atravessem as três, ninguém mais compreende o que você diz. (LATOUR, 1994, p. 11).

Elaborando seus testemunhos, narradores e narradoras das escritas que compõem este dossiê se apresentam como sujeitos reflexivos, que contam suas histórias imbuídos de um valor ético que implica um compromisso consigo mesmos, com os outros e com a história. Nesse processo eles falam de si reconstruindo-se no processo, estabelecem relações com seus interlocutores e buscam agir sobre eles, enquanto refletem sobre a história das guerras africanas numa busca incessante para evitar que elas se repitam.

Reunir as reflexões propostas por esses escritores e essas escritoras neste Dossiê responde a uma intensão de colocar em diálogo preocupações do campo das ciências humanas, sociais e literárias que nos permitam ler, conhecer e refletir sobre essas experiências nas literaturas africanas.

Referências

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas de transformação da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sério Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ESLAVA, Fernando Villarraga; PEREIRA, Luciara. A narrativa de testemunho: um caso exemplar. In: Ipotesi, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 213–223, jan./jul. 2008.

FOUCAULT, Michel. (1964). Conferência. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

FREUD, Sigmund. (1917). Conferência XVIII Fixação em Traumas — O inconsciente. Terceira parte: Teoria geral das neuroses. In: Obras completas, vol. 13: Conferências introdutórias à psicanálise. (1916-1917). Tradução Sérgio Tellarolit; revisão da tradução Paulo César de Souza, 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.

GINZBURG, Jaime. Autoritarismo e literatura — a história como trauma. In: Revista Vidya. Universidade Franciscana. V. 19, n. 33, 2000. p. 43-52. Disponível em sites.unifra.br. Acesso em: 7 de janeiro de 2016.

MANGUEL, Alberto. À Mesa com o Chapeleiro Maluco: ensaios sobre corvos e escrivaninhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicol. clin., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008. Available from www.scielo.br. access on 15 May 2020. 

Resumo:
A presente proposta visa reunir trabalhos em torno da temática Memórias de Guerra em Experiências Literárias Africanas e de como a escrita tem elaborado traumas coletivos. Evocando noções como narrativa, trajetórias e memória, pensamos que é possível observar como os processos de recordação e elaboração têm se construído através da escrita literária. O que essas narrativas mobilizam de suas paisagens coletivas? como narram os enfrentamentos e as consequências da guerra civil? como se esboçam nessas narrativas as trajetórias desses escritores, de seus países e de seus repertórios culturais? Enfim, como são mobilizados em suas escritas as recordações. Que espaços da recordação são mobilizados na montagem de suas escrituras? A memória do trauma é uma forma de recuperar na fragilidade dos rastros individuais a compreensão para a história e para as condições socioantropológicas de cada sociedade. Propomos reunir, neste Dossiê, reflexões que ponham em diálogo preocupações do campo das ciências humanas, sociais e literárias que nos permitam refletir sobre essas experiências nas literaturas africanas.

Palavras-chave:
Memórias de guerra; experiências literárias africanas; traumas coletivos.

 

Abstract:
This proposal aims to bring together works about the subject “War Memories in African Literary Experiences/Experiments” and how collective trauma has been elaborated through writing. Evoking notions such as narrative, trajectories and memory, we believe it is possible to observe how the processes of recall and elaboration have been constructed through literary writing. What do these narratives mobilize from their collective landscapes? How do they tell narratives about the confrontations and the consequences of the civil war? How are the trajectories of these writers, their countries and their cultural repertoires outlined in these narratives? Finally, how are memories mobilized in their writings? What spaces of remembrance are mobilized in the assembly of their writings? The memory of trauma is a way to recover the understanding of the history and socio-anthropological conditions of each society in the fragility of individual tracks. In this dossier, we propose to bring together reflections that create a dialogue between the fields of human, social and literary sciences fostering a reflection about these experiences in African literatures.

Keywords:
War memories; African literary experiences; collective trauma.

 

Recebido para publicação em 17/02/2021
Aceito em 17/02/2021