Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 52, n. 3, nov. 2021/fev. 2022
DOI: 10.36517/rcs.2021.3.d03
ISSN: 2318-4620

 

 

Movimento estudantil online contra LGBTIfobia:
práticas discursivas e educativas em mídias digitais da UBES

 

Gabriel Merlim Moraes Villela OrcID
Universidade Federal Fluminense, Brasil
villelagmm@gmail.com

Maria Cristina Giorgi OrcID
Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca, Brasil
cristinagiorgi@gmail.com

 

Introdução1

O processo educativo desempenha alguns papéis centrais na formação social dos sujeitos, intervindo em diferentes aspectos de suas vidas. Nas diversas práticas educativas, encontramos certa dualidade, visto que elas podem se apresentar desde dispositivos de disciplinarização e controle dos corpos, como apontam os estudos realizados por Foucault (2013), até a construção de práticas subversivas que visam à emancipação dos sujeitos nela envolvidos, como propõe Saviani (1984). Nesse sentido, entendemos que o campo educacional é constantemente perpassado — e, dessa forma, é também constantemente constituído — pelos tensionamentos e embates que se estabelecem entre os diferentes projetos, perspectivas e práticas dos sujeitos nele envolvidos.

Dada essa centralidade para a construção da subjetividade humana, a educação e a escola se apresentam como importantes espaços para as discussões de gênero e sexualidades. Diversos estudos como os de Louro (2000) e Caetano (2013) apontam de que modo a educação reproduz, em diversos aspectos, práticas LGBTIfóbicas ou legitima sistemas heterocissexistas. Temos observado, desde a última década, o avanço de diversos embates e proposições que — pautados na construção discursiva reacionária de ideologia de gênero (ABRANTES, 2020) e no programa Escola sem Partido (ESP, 2020) — têm dificultado a formulação e o estabelecimento de políticas e práticas contra a LGBTIfobia em âmbitos macro e micro, ou seja, tanto no espaço institucional quanto no do chão da escola. Desse modo, é preciso repensar currículos e práticas educativas, no sentido de incorporar discussões de gênero e sexualidades, sob um viés pós-colonial.

Apesar de comumente reduzida à instituição escolar, a educação inclui diferentes processos formativos que transcendem seus muros, abrangendo todas as esferas e fases da vida (LIBÂNEO, 2005; BRANDÃO 2002). Dessa forma, instituições e atores diversos podem desenvolver práticas educativas de modos variados e por meio de currículos ocultos ou oficiais. Algumas dessas práticas são estabelecidas por meio da luta de estudantes pela defesa das pautas da educação — inclusive as que concernem especificamente às questões internas das escolas — protagonizadas pelo movimento estudantil, entendido como uma pluralidade de grupos potencializados pela condição estudantil, sejam eles institucionalizados ou construídos sob outras formas (MESQUITA, 2003).

Temos observado, ainda, a expansão de diferentes mídias digitais que apresentam crescente relevância para a construção de práticas acadêmico-ativistas (VILLELA; ALMEIDA; GIORGI, 2020). Assim, diferentes plataformas online têm sido mobilizadas por diferentes sujeitos para a formulação e efetivação de práticas educativas e de resistências políticas.

Portanto, nesta reflexão, alinhados a uma perspectiva interdisciplinar, articulamos diferentes áreas do saber (como Sociologia, Educação, Linguística aplicada, Psicologia social etc.), pautando-nos em um referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005; MAINGUENEAU, 2015) de modo a discutir a construção de práticas discursivas, educativas e de resistência às violências contra a população LGBTI2 no espaço escolar, pelo movimento estudantil em suas mídias digitais, entendendo-as como meio de formação de práticas educativas, vinculadas, mas não restritas à instituição escolar. Para tanto, selecionamos como corpus de análise para este artigo dois vídeos postados no Instagram da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas — UBES — (@ubesoficial), intitulados “Dia Internacional de luta contra a LGBTfobia” e “Precisamos falar sobre Transfobia!”, no intuito de observar como tal movimento vem mobilizando suas plataformas online para a construção de práticas discursivas, educativas e de resistência contra a LGBTIfobia.

Por fim, dividimos este artigo em três seções. A primeira discute as relações de poder que atravessam a educação, em especial as relações de gêneros e sexualidades, bem como as possibilidades de práticas educativas contra sistemas de opressão, as quais transcendem a escola, e são formuladas por movimentos sociais, entre eles o estudantil. Em seguida, debatemos, sob um viés discursivo, o modo como as mídias digitais têm sido mobilizadas de diferentes formas — para a construção de práticas acadêmico-ativistas —, iluminando as possibilidades de formulação de práticas discursivas e educativas nessas plataformas. Por fim, analisamos discursivamente nosso corpus de modo a discutirmos como o movimento estudantil tem mobilizado diferentes usos e funcionalidades de plataformas na luta contra a LGBTIfobia no campo da educação.

Gêneros, sexualidades e educação: currículo, prática educativa e movimento estudantil

A educação formal — nela incluída a escola — não é um campo homogêneo, no qual os saberes se encontram pré-determinados ou são indiscutíveis; em lugar de campo neutro, é atravessado por diversas relações de poder. Com efeito, o campo educacional é constituído a partir de tensões político-sociais, nas quais diferentes projetos, práticas e discursos estão em constante movimento de aproximação, distanciamento e/ou atravessamento. Nesse sentido, Foucault (2004; 2013), em seus estudos, aponta a íntima relação existente entre poder e saber, discutindo os modos como, histórica e socialmente, determinados modos e critérios de saber foram estabelecidos como válidos, ou seja, como se deu a formação de regimes de verdade.

Partindo dessa perspectiva, afirmamos ser

imprescindível relacionar a questão dos saberes com a escola, que é, por um lado, lugar fundamental para a construção de subjetividades; e, por outro, instituição marcada e atravessada pela configuração social. Dessa forma, reiteramos que há que se discutir o modo como se estabelecem as relações de poder no âmbito da escola, sempre levando em conta o lugar que ela ocupa na configuração da sociedade atual (ALMEIDA; GIORGI, 2013, p. 284).

Atualmente, as discussões de gêneros e sexualidades são um ponto cada vez mais central de conflito para a questão de saberes na educação. Desde a década de 2010, observamos o surgimento e a intensificação de projetos, oriundos de grupos à direita do espectro político, que visam o ataque às pautas e aos direitos LGBTI conquistados anteriormente (BULGARELLI, 2018). Dentre os ataques, encontra-se o da proibição das discussões de gêneros e sexualidades no campo escolar, movido principalmente pelo avanço desses grupos que, além de neoconservadores, demonstram-se reacionários (CUNHA, 2018). Nesse sentido, baseando-se em proposições e na atitude de desconfiança para com o fazer escolar típicas do projeto Escola sem Partido (ESP), tem-se utilizado a noção de ideologia de gênero — uma verdadeira distorção dos estudos de gêneros e sexualidades, como nos aponta Abrantes (2020) —, para denunciar o que seria uma “doutrinação LGBTI” nas escolas, tomando as identidades lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais, entre outras, como pejorativas; além de uma ampla divulgação de notícias falsas (fake news) atribuídas à escola pública.

Frente a situações como essa, recorremos à discussão de sexualidade presente em Foucault (2018), que afirma seu entendimento a partir das relações de controle típicas das sociedades ocidentais modernas, visto que as instituições atuam para formulá-la como dispositivo de poder, estando pautada em diferentes normas e hierarquizações produzidas por meio do discurso. Bem como ocorre com a sexualidade, as diversas expressões de gênero também se encontram vinculadas a relações de poder e de controle, inclusive nos meios institucionais (JUN, 2018).

Dessa forma, sentidos de sexualidade e de gênero têm sido construídos assumindo uma de suas diversas expressões possíveis como norma — a cisgênera heterossexual. Como consequência, são hierarquizadas e caracterizadas como subalternas, incompletas, distúrbios, anomalias ou até mesmo como perigosas (BORRILLO, 2010; JUN, 2018), aquelas que não coincidem com essa pretensa normalidade. Alinhada a Foucault, Butler (2003) reafirma tal vinculação entre o reconhecimento de identidades sexuais e de gênero e as relações de poder, a partir do que denomina matriz heterossexual, ou seja, a “grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados” (BUTLER, 2003, p. 216).

Para manter e reforçar sua existência, esse sistema de inteligibilidade, baseado na hierarquização sexual e de gênero, necessita e produz — simultaneamente — determinadas formas de controle e fixação dos corpos, processo denominado por Foucault (2013) como disciplinarização de corpos, que atua sobre os indivíduos em geral, mas especialmente sobre aqueles que destoam dessa norma social (FOUCAULT, 2018). Como modo de disciplinar corpos dissidentes às estruturas binárias hierarquizadas (homem-mulher, hétero-homo e cis-trans) com determinados papéis socialmente aceitos, diversas instituições acionam dispositivos da LGBTIfobia para atuar sobre a barreira sexual e de gênero.

Partindo das discussões de homofobia em Borrillo (2010) e de transfobia em Franco (2018), entendemos a LGBTIfobia como o exercício de um repúdio construído histórica, social e culturalmente contra expressões de sexualidade e gênero que diferem da norma hétero e cis introjetadas por distintos dispositivos em processos de subjetivação. Ao debater esse processo de disciplinarização de corpos, Foucault (2013, p. 113) aponta que

Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens. A fábrica, a escola, a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção, de formação ou de correção dos produtores. Trata-se de garantir a produção ou os produtores em uma função de uma determinada norma.

Assim, observamos no nível macropolítico discussões como as do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 (REIS; EGGERT, 2017) e do projeto “cura gay” (VILLELA; GIORGI; ALMEIDA; VARGENS, 2020), que visam a apagar os debates, lutas e conquistas sociais concernentes à diversidade sexual e de gênero. Tanto como reflexo quanto meio que possibilita a circulação de tais propostas, há no nível micropolítico diversas formas de desconfiança para com o trabalho das escolas (frequentemente pautadas pela ideologia de gênero), bem como formas de expulsão escolar proporcionadas aos corpos LGBTI (MORAES; VILLELA, 2021). Portanto, os diversos embates e disputas sociais e políticos que se travam sobre a diversidade sexual e de gênero, acerca dos corpos e identidades LGBTI, sobretudo no campo educacional, referem-se à produção de formas de controle e aprisionamento de corpos e subjetividades a um sistema heterocissexista que os violenta constantemente.

Louro (2000) analisa a especificidade do processo de aprisionamento do corpo pela instituição escolar, permitindo-nos traçar diálogos com a perspectiva dos grupos reacionários. Conforme a autora, a escola, unida ao dispositivo familiar, atua para o estabelecimento e manutenção de um sistema que regula identidades de gênero e sexuais permitidas e vedadas, com base nos padrões heterocisnormativos, debatidos anteriormente. Uma das formas pelas quais tal controle e fixação pode ser realizado é o currículo, ou seja, uma determinada forma de ter acesso ao conhecimento, que reflete os esquemas sociais, culturais, políticos etc. em que a educação se insere e os quais ela possibilita (GADOTTI, 2000).

Ao tratarmos de currículo, referimo-nos não somente àquele institucionalizado, mas igualmente às outras diversas formas de exercê-lo. Entre elas estão o oculto — que, apesar de não escrito, perpassa o cotidiano da escola — e o praticado que, mesmo baseado no institucional, também é agregado às práticas do currículo oculto. Dessa forma, autores como Caetano (2013), discutem de que modo o currículo praticado no cotidiano das escolas age no sentido de formar sujeitos que correspondam às normas e expectativas heterocisnormativas eleitas sócio historicamente, inclusive no que concerne à tomada de ações preventivas por parte de professores para a “correção” de comportamentos e performances consideradas anormais ou divergentes (CAETANO, 2013).

Entretanto, a educação não se restringe à (re)produção das atuais formas de poder — e nem deve ser entendida desse modo. Ao rememorarmos o debate de Saviani (1984) sobre as teorias educacionais, entendemos que estas se restringiram, por muito tempo, a tratar somente de um dos papéis conferidos às práticas educativas ignorando o outro: ou se pautam na modificação e na redução de desigualdade entre os sujeitos ou tendem somente à crítica à reprodução e à manutenção dessas desigualdades. O autor, então, aponta a necessidade de uma pedagogia revolucionária que entenda a prática social como início e fim do processo educativo, de modo a possibilitar que os sujeitos entendam — criticamente — as estruturas sociais de desigualdade e exploração nas quais estão inseridos e que sejam capazes de modificá-las.

Para tanto, Saviani (1984) afirma que a construção das práticas educativas deve considerar seu processo como sendo o da passagem da desigualdade à igualdade por meio da democracia, a qual se apresenta como possibilidade no ponto de partida e como realidade no ponto de chegada. A educação passa a ser entendida, portanto, como “uma atividade mediadora no seio da prática social global” (SAVIANI, 1984, p. 77), de modo que cabe “lutar também no campo pedagógico para fazer prevalecer os interesses até agora não dominantes” (SAVIANI, 1984, p. 79).

Consideramos, todavia, que, para além dessa atividade “mediadora”, a educação, por meio dos debates que se desenvolvem em cada realidade escolar, pode viabilizar uma nova compreensão, a partir da forma como o currículo oficial é realmente praticado nestes espaços. Por tal motivo, entendemos que os grupos subalternos — compostos por recortes identitários e não somente o de classe — não devem meramente se apropriar dos conteúdos historicamente acumulados, mas, com efeito, precisam pautar suas vivências e seus entendimentos em tal contexto.

Assim, compreendemos que a garantia e a defesa de debates sobre gênero e sexualidades no currículo escolar — sob uma perspectiva pós-colonial (CAETANO, 2013) — são essenciais para a formulação e efetivação de práticas contra a LGBTIfobia no intuito de possibilitar a subversão desse sistema heterocisnormativo. Sua importância pode ser constatada pelo seu desenvolvimento ao longo do tempo como uma teia de significados e símbolos presente em um dispositivo que padroniza sujeitos e suas formas de ser e estar no mundo (LOURO, 2000) e que gera, como efeito, a naturalização das diferenças, resultando nas desigualdades na escola — e na educação, de modo geral — e na manutenção de preconceitos e exceções. Portanto, as discussões pós-coloniais sobre educação e currículo (CAETANO, 2013), transcendem a defesa do respeito e da tolerância3 a uma diferença essencializada, de forma que devemos propor práticas considerando a formação das subjetividades para além do cultural, ou seja, articulando as estruturas psíquicas às políticas.

Entendemos, assim como Libâneo (2005), que a educação é multifacetada, podendo ser trabalhada em distintas modalidades. Com efeito, o poder pedagógico tem se acentuado não somente para a escola e a família, mas também para as práticas educativas que transcendem o espaço escolar, como as realizadas pelos movimentos sociais, meios de comunicação e outros grupos que constituem instituições não escolares (LIBÂNEO, 2005). Assim, existe uma dimensão pedagógica nos encontros que proporcionam uma experiência favorável à formação de consciência para que seus sujeitos tomem a autoria de suas histórias, visto que é a consciência que significa a experiência (BRANDÃO, 2002).

Dessa forma, mesmo com a inegável importância e necessidade de defesa de uma educação institucional pública, gratuita, universal, emancipatória e de qualidade, não se pode afirmar que a educação formal e escolarizada é a única capaz de atuar em favor da inclusão e da democracia dos processos educativos. Diferentes espaços — entre eles o dos movimentos sociais — podem formular práticas educativas que atuem para o desmonte de sistemas de exclusão e desigualdade social, bem como as práticas que dela decorrem e que os sustentam, como a LGBTIfobia.

Gohn (1997, p. 260) caracteriza os movimentos sociais a partir da existência de “um projeto, sob a forma de uma visão de mundo, seja entre as assessorias ou as lideranças que dão sentido e direção ao movimento”. Explícito ou não, tal projeto faz com que os diferentes indivíduos se reúnam em forma movimento, com distintos níveis de organização, formulando diversas práticas, tendo entre elas as educativas, visto que “Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais é: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes. Entretanto, não se trata de um processo isolado, mas de caráter político-social” (GOHN, 2011, p. 333). Os movimentos sociais, portanto, podem estabelecer práticas educativas a partir de sua relação com instituições educacionais ou por meio do próprio movimento, com suas ações de caráter educativo (GOHN, 2011).

Ao analisar os impactos gerados pelos movimentos sociais na formação docente, Deise Rocha (2013) afirma que estes atuam como espaços de formação política aliados à docência em sua prática pedagógica, transcendendo as salas de aula e funcionando como

espaços educativos, alternados aos espaços institucionais escolares, e que não se restringe ao aprendizado de conteúdos específicos transmitidos por meios de técnicas, mas é um processo de formação baseado nas interações sociais e políticas. É preciso, então, conhecer esse espaço educativo, reconhecer e usufruir o que ele tem a oferecer em sua formação, enquanto ser social (ROCHA, 2013, p. 62).

Neste artigo, focalizamos a construção de práticas discursivas e educativas pelo movimento estudantil, com o recorte da luta nas mídias digitais contra a LGBTIfobia, cabendo ressaltar que

Analisar o movimento estudantil é, antes de tudo, analisar um movimento plural, capaz de se expressar através de vários grupos que se potencializam no cotidiano da condição estudantil. Poderíamos afirmar que este não se limita a suas organizações estudantis e formais, mas se manifesta na própria dinâmica de criação de interesses e pautas que — [...] — pode ser capaz de mobilizar os estudantes. Assim, acreditamos que não exista um movimento estudantil unitário, mas movimentos estudantis que se inter-relacionam e se intercruzam (MESQUITA, 2003, p. 120).

Devido a seu caráter plural, dialógico e rizomático, entendemos que esse movimento desempenha um papel central para a formação integral, humana e democrática de diversos estudantes que dele fazem parte, partindo de práticas e tipos de aprendizagem variados (GOHN, 2011). Portanto, é essencial

o reconhecimento do movimento estudantil como um espaço efetivo de formação no domínio e construção de saberes, no desenvolvimento de habilidades e competências de expressão e comunicação, de construção coletiva e democrática, de formação política e de cidadania, enfim, de formação humana libertadora (FONSECA, 2008, p. 90).

Em seus estudos sobre o movimento estudantil — com o recorte universitário —, Mesquita (2003) assevera que, depois do marco de 1968 e das décadas de 1970 e 1980, desponta uma certa crise de representatividade e organicidade da parte institucionalizada desse movimento. Como resposta a essa questão, tem-se incorporado temas, tendências e reivindicações dos Novos Movimentos Sociais (NMS), entre os quais encontram-se os chamados minoritários (MESQUITA, 2003, p. 121), o que inclui o movimento LGBTI, refletindo em uma nova sociabilidade militante. Assim,

Essa “nova sociabilidade militante” se gesta e se fortalece com o enfraquecimento do modelo tradicional de fazer política, mas principalmente pelas tensões que surgem quando estes dois modelos vêm à tona, ficam latentes. Grupos no interior do movimento estudantil fazem a crítica ao modelo tradicional que já não consegue contemplar a nova configuração estudantil. No grupo temático de gênero e raça, a reivindicação para que, de fato, o movimento assuma também as causas das minorias e não se isole em assuntos extremamente específicos da universidade (MESQUITA, 2003, p. 136).

O autor aponta ainda que, mesmo com um certo modelo de três questões centrais para a manutenção do ideário do movimento estudantil — reestruturação de entidades; ampliação das temáticas abordadas dentro do movimento; e lutas em defesa da educação e contra reformas neoliberais —, os diferentes grupos de estudantes atuantes podem priorizar diferentes dimensões, articulando-se a partir de suas necessidades.

Portanto, ao considerar que o movimento estudantil tem construído práticas e conteúdos novos que apontam para o surgimento dessas novas sociabilidades (MESQUITA, 2003), buscamos, neste artigo, entender a construção desse movimento por meio da constituição de práticas discursivas e educativas em mídias digitais ao abordar a LGBTIfobia dentro e fora do ambiente escolar. Nesse sentido, selecionamos a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) como objeto de análise deste texto.

A UBES é uma das principais entidades representativas do movimento estudantil do Brasil e da América Latina, reunindo estudantes do ensino médio e técnico, incluindo também a questão dos pré-vestibulares (UBES, 2021a). Foi fundada sob o nome de União Nacional dos Estudantes Secundaristas (UNES) em 1948, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, como resultado do sucesso da campanha “O Petróleo É Nosso”, mudando para seu nome atual um ano depois, em seu segundo congresso (UBES, 2021c). Desde seu surgimento, essa entidade tem participado ativamente em distintos momentos históricos de resistência e luta no Brasil, entre eles a ditadura cívico-militar e a redemocratização, a onda de privatizações da década de 1990, a luta pelos 10% do PIB e dos royalties do petróleo para a educação, e contra o golpe de 2016 (UBES, 2021c).

Além disso, está articulada com outras grandes entidades, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e as diferentes UEEs (União Estadual dos Estudantes), contando com representantes de grêmios de todo o Brasil em seus conselhos, pastas e cargos (UBES, 2021a). Organiza eventos como o Encontro de Grêmios, o Conselho Nacional de Entidades Gerais (CONEG) e o Congresso Nacional da UBES (Conubes), que reúnem diferentes níveis de organização estudantil (UBES, 2021a).

Frente a essas discussões, cabe, ainda, debater as questões que atravessam as mídias digitais, bem como as análises sociais dos seus modos de socialização. Dessa forma, poderemos estabelecer as relações entre a construção de participações políticas online e as noções centrais para a Análise do Discurso.

Discurso e participação política em mídias digitais

Devido aos diversos avanços tecnológicos alcançados ao longo das últimas décadas, observa-se a construção de diferentes dispositivos que atuam sobre as dinâmicas e relações sociais a partir do modo como eles são apropriados em nossas ações. Podemos, pois, afirmar que, com esses avanços tecnológicos — em especial os que concernem à internet —, tornamo-nos, cada vez mais, uma sociedade que articula práticas humanas e não humanas. Como efeito, novos questionamentos e desafios são colocados para os pesquisadores interessados nas práticas sociais, como discutem Padilha e Facioli (2018).

Dessa forma, as práticas sociais online se desenvolveram junto à história da própria rede, a qual geralmente é dividida em três momentos: a web 1.0, 2.0 e 3.0. Na década de 1990, o advento da web 1.0 possibilitou a transmissão de diversos conteúdos, simultaneamente, para pessoas em lugares distintos do globo. Similar a outros serviços broadcasting — como a televisão e o rádio —, esses conteúdos eram formulados e transmitidos somente por grandes empresas de comunicação. Assim, não era possível que seus usuários produzissem conteúdos, de modo que a socialização nessas plataformas se mostrava bastante restrita (PADILHA; FACIOLI, 2018).

Junto à formulação da web 2.0, nos anos 2000, há a possibilidade de que os usuários produzam diferentes conteúdos, bem como que interajam mais entre si. Nesse sentido, são eles que passam a ter protagonismo nas redes, assumindo um papel que Berrocal-Gonzalo, Campos-Domínguez e Redondo-García (2014) denominam de prosumidor — termo que aglutina as palavras “produtor” e “consumidor” —, ou seja, o de alguém que está constantemente envolvido tanto na produção quanto no consumo dos conteúdos dessas redes online. Tal inovação gerou um repositório de informações sociais diversificadas, bem como permitiu uma maior possibilidade de participação política, gerando impactos sociais rizomáticos, inclusive na (re)formulação das próprias tecnologias digitais.

Ainda mais recentemente, já nos anos de 2010, discute-se a formação de uma web 3.0, que possui como ponto central o registro dos usos nas redes sob formas algorítmicas, ou seja, dispositivos que arquivam e organizam dados produzidos pelos usuários de modo a definir “recortes” que ofereceram produtos mais adequados a determinados perfis (PADILHA; FACIOLI, 2018). Assim, a conectividade passa, progressivamente, a se sobrepor à conexão, visto que as grandes corporações mobilizam os dados dos algoritmos tendo como objetivo o consumo (VAN DIJCK, 2016) e criando diversas bolhas sociais que têm imposto — inclusive — diferentes desafios para as democracias contemporâneas, entre eles formas de discriminação social (SANDVIG; HAMILTON; KARAHALIOS; LANGBORT, 2014).

Portanto, ao analisar plataformas online, é necessário situar que as produções nesses espaços se encontram sob certa dualidade. Ao mesmo tempo em que a internet possibilitou que sujeitos fora do centro comunicacional hegemônico ocupassem um espaço de maior visibilidade e de produção de seus conteúdos — entendidos também seus meios de participação política —, a web possui modos de controle de dados e de visibilidade que fizeram o impacto das redes ser maior, “mas também muito mais opaco para a análise e a compreensão pública”4 (SANDVIG; HAMILTON; KARAHALIOS; LANGBORT, 2014, p. 3), o que inclui uma série de interesses e usos desses dados nela presentes. Cabe acrescentar ainda que a inclusão digital, ao contrário do que muitos querem fazer crer, não atinge um relevante percentual da população.

Inseridos nesse contexto em que as práticas sociais online são cada vez mais centrais, diferentes sujeitos vêm mobilizando as mídias digitais como meios de participação política, utilizando funcionalidades e possibilidades específicas das plataformas nas quais estão inseridos — e por meio da qual estão se construindo. Essa utilização de diferentes plataformas, que apresentam características específicas, é produto e produtora da cultura de convergência, a qual, de acordo com Jenkins (2009, p. 29), é constituída pelo “fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia” graças “à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam”.

Ao analisar as práticas linguageiras que se desenvolvem na web, Maingueneau (2015) afirma que estas, cada vez mais, têm se apresentado como multimodais, ou seja, “mobilizam simultaneamente diversos canais” (MAINGUENEAU, 2015, p. 159). A multimodalidade não é inventada pelos avanços tecnológicos da web, uma vez que ela se encontra presente na comunicação oral, mas se faz extremamente presente nas redes, afetando principalmente seus gêneros do discurso.

O filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin (2016, p. 12) define, na primeira metade do século passado, os “tipos relativamente estáveis de enunciados”, oriundos de cada esfera de atividade humana, com estilo, temática e estrutura composicional definidos, os quais denomina gêneros do discurso, além de apontar a sua centralidade, dado que é ao construirmos nossa linguagem por meio deles que nós a tornamos inteligível. De acordo com linguista francês Dominique Maingueneau (2015), as plataformas da web, ao possibilitarem diversas formas de organização icono-textual, desestabilizam a hierarquia entre o que seria texto principal e secundário, permitindo que os gêneros tomem formas pouco restritivas, que possibilitam a construção de cenografias diversas — aquilo que concede legitimidade a um determinado enunciado, que é “ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra” (MAINGUENEAU, 2004, p. 87). Ou seja, os gêneros passam a funcionar mais como “hipergêneros”, já que cada usuário consegue montar mais livremente aquilo que lê em seu ecrã (MAINGUENEAU, 2015).

Ainda sob uma perspectiva discursiva, cabe destacar a noção de linguagem-intervenção, presente em Rocha (2006). O linguista aplicado aprofunda a ideia de que a linguagem não se resume a um mero papel de representação de uma realidade dada, extralinguística, mas que, com efeito, produz deslocamentos e efeitos de sentido que atuam produzindo subjetividades, bem como o próprio real (ROCHA, 2006). Dessa maneira, ao produzir práticas discursivas e educativas online sobre a LGBTIfobia, o movimento estudantil intervém sobre diferentes tensões sociais que circulam no espaço educativo — incluindo o escolar —, em especial no que concerne às discussões de gêneros e sexualidades.

Assim, a análise da participação política online — construída por meio de práticas discursivas e educativas/acadêmicas —, bem como a própria formulação dessas práticas, demonstram-se cada vez mais relevantes, uma vez que,

Considerando o papel que as mídias sociais desempenham na disputa de narrativas e na construção de sentidos sobre sociedade e política e na produção de subjetividades, torna-se fundamental que os pesquisadores e a academia ocupem esses espaços que foram inaugurados fora desse campo para estabelecer diálogos com aqueles sujeitos que estão fora da universidade (VILLELA; ALMEIDA; GIORGI, 2020, p. 45).

É nesse movimento teórico-metodológico de discussão interdisciplinar que buscamos, neste artigo, analisar o modo como estudantes — que, durante muito tempo, foram vistos como meros receptáculos para conhecimento daqueles que “são legítimos portadores do saber” — fazem uso dessas plataformas para formular, como movimento político e social, práticas discursivas e educativas contra a LGBTIfobia, presente tanto no ambiente escolar quanto na sociedade em geral. Considerando que a noção de prática discursiva (MAINGUENEAU, 2008) aponta para a construção dupla e indissociável de texto e comunidade, buscamos entender, ainda, o modo como o referido movimento estudantil se constrói por meio dessas práticas analisadas.

UBES e a luta online contra a LGBTIfobia: análise das práticas educativas e discursivas

Atualmente, a UBES se constrói em sete plataformas digitais: em seu site oficial, Instagram (@ubesoficial), Twitter (@ubesoficial), Telegram, Facebook (@ubesoficial), YouTube (canal ubesoficial) e Pinterest. Essa sua construção difusa em diversas redes dialoga com a discussão feita anteriormente sobre a cultura de convergência (JENKINS, 2009). Observamos que a construção de conteúdos — o que inclui os contra a LGBTIfobia — segue essa mesma lógica da convergência, ou seja, as discussões estão presentes nas diversas plataformas da UBES, mas sendo construídas a partir das especificidades da rede na qual elas se inserem. Por exemplo, em seu site, mobiliza-se o gênero discursivo notícia; ao passo que, no Facebook, parte-se do gênero discursivo post. Como corpus de análise, selecionamos dois vídeos presentes na rede social Instagram, no IGTV do perfil da UBES, compartilhados no dia 17 de maio — o Dia Internacional da Luta contra a LGBTIfobia. O primeiro deles se intitula “Dia Internacional de luta contra a LGBTfobia” e o segundo, “Precisamos falar sobre Transfobia!”.

O Instagram, que, desde 2018, possui mais de 1 bilhão de usuários ativos em todo o mundo,5 por se propor como uma rede social para fotos, enfoca os aparelhos celulares, de modo que sua versão em site para computadores possui funções muito reduzidas, diferentemente de outras redes sociais, como o Facebook. Assim, esta possui como algumas de suas funcionalidades: a postagem de fotografias com legendas, a criação de stories, a transmissão de lives, bem como a criação de vídeos pelo IGTV e pelo Reels — mecanismos anexados em todos os perfis. Inicialmente, essa rede era marcada pelo uso de fotos com o objetivo de construir uma determinada “imagem de si” dos usuários; entretanto, com o tempo e o acréscimo de novas funcionalidades, essa plataforma passou a ser mobilizada por diferentes sujeitos com outros fins, como o de realizar discussões acadêmico-ativistas (VILLELA; ALMEIDA; GIORGI, 2020).

O primeiro vídeo (UBES, 2021b) tem 2 minutos e 12 segundos de duração, é enunciado por três estudantes diretores de políticas LGBTs da UBES, que, usando a camisa da entidade, alternam constantemente seu turno de fala por meio de edição de vídeo, sendo marcado por uma tensão entre dois gêneros discursivos: o vídeo IGTV e o repente. Os vídeos no IGTV geralmente são constituídos por um enunciador que, de frente para o celular, grava a si mesmo debatendo algum tema, apresentando algum produto, dentre outros, além de ter a possibilidade de salvar as lives realizadas.6 O vídeo recorre ao repente, gênero discursivo de literatura oral, típico da região nordeste brasileira, caracterizado como uma espécie de poema-cantado criado, em geral, no improviso, e “cujos praticantes desenvolvem seus temas a partir da realidade cultural, social, religiosa, política, local e geral, e, provavelmente, por manter as suas origens identitárias, fica à margem dos grandes meios de comunicação” (CARNEIRO, 2016, p. 27).

Essas escolhas discursivas para a construção do vídeo nos permitem identificar alguns efeitos de sentido. O tensionamento entre os dois gêneros supracitados aponta para a busca de uma expressão cultural marcada pela demarcação e defesa das identidades abordadas — as LGBTI —, assim como a opção por um turno de fala descontinuado entre sujeitos, que é, ao mesmo tempo, contínuo no que se refere à sua forma e conteúdo, construindo uma enunciação que não se propõe completa, mas sim dialógica, que se constitui a partir de outrem. Assim, percebemos no vídeo a construção de uma perspectiva de saber que, sendo político, deve se construir coletivamente em defesa das identidades que são constantemente atacadas no meio social.

Ao longo do vídeo, por meio do uso da segunda pessoa do singular, os enunciadores se aproximam de seus coenunciadores — o público de suas redes —, com quem falam de forma direta, criando uma ideia de que os interlocutores estão do mesmo lado, falam de um mesmo lugar. Esse lugar coletivo é ainda reforçado por “Não estarás sozinho” que nos remete à ideia Ninguém Solta a Mão de Ninguém — Manifesto afetivo de resistência e pelas liberdades,7 que possibilita o combate ao ódio com carinho, com alegria e riso, tendo como aposta o coletivo como modo de resistir à ascensão de um neoconservadorismo reacionário, que se manifesta por meio de desmandos contra as minorias, que se concretiza, no vídeo, primeiramente pela oposição entre dores e amores, e de forma mais contundente, na fala final repetida pelos três estudantes “Homofóbicos não passarão, LGBTs continuarão vivendo”.

O segundo vídeo (UBES, 2021d), com 1 minuto e 55 segundos de duração, trata especificamente da transfobia e é um repost (“repostagem”) do perfil de uma diretora da UBES (@bonecamilitante). O vídeo começa com a imagem de uma mulher e a reprodução ao fundo, de um trecho da música “Indestrutível8” de Pabllo Vittar, segundo a qual “[...] tudo vai ficar bem e as minhas lágrimas vão secar”, música de 2017, que recentemente reobteve destaque após ter sido citada diversas vezes em um reality show, ao se falar da LGBTIfobia. Em seguida a enunciadora dialoga diretamente com a música, asseverando: “Não! Não está nada bem!” em uma resposta a uma falsa ideia de que tudo está bem, que pode ser ampliada, a nosso ver, para “Tudo está bem para quem?”. Certamente não para as pessoas trans e travestis que são mortas todos os dias. Podemos, portanto, compreender que o uso da negação como termo que inicia a enunciação chama a atenção dos interlocutores no sentido de que há uma não coincidência de dizeres no que se refere ao que é estar bem e a quem pode, quem têm o direito de estar bem. A repetição desse “não” inicial também é um modo de quebrar a continuidade entre a “positividade” da música e a “realidade” introduzida pela enunciadora.

A negação é recorrente nessa primeira parte do vídeo e a enunciadora opõe, novamente, legítimos e não legítimos no trecho “― A verdade é que, historicamente, nós, mulheres trans e travestis somos excluídas por essa sociedade que não nos oferece emprego, não nos oferece educação, e no final, ainda nos matam”. Novamente, não está tudo bem.

Entendendo que algumas vozes não têm a mesma legitimidade atribuída naturalmente àquelas hegemônicas, a enunciadora recorre a estratégias discursivas para “ganhar” essa credibilidade. Assim, estabelece um diálogo direto com o que entendemos como senso comum, que inicia “E hoje eu venho falar de transfobia. Ou vai me dizer que não sabia que existia?” ou em “― Ah, Dandara, a transfobia não existe. ― Diz isso para as 175 mulheres trans e travestis que perderam a vida em 2020”. E também em “E isso significa que a cada dois dias uma mulher trans ou travesti é morta no Brasil, só pelo simples fato de ser trans”. O uso de dados numéricos, em princípio incontestáveis, aliado à opção pelo termo “historicamente”, criam um efeito de verdade que outorga confiabilidade à fala, ao mesmo tempo em que desconstrói, ou melhor, destrói a falácia de que não existe transfobia.

Buscando trazer para nossas análises uma discussão que ultrapassa o âmbito do discurso verbal, apontamos que a performance da enunciadora alia a discussão proposta verbalmente aos movimentos do fazer sua maquiagem. O uso dos vídeos no IGTV para tutoriais de maquiagem não é novo; desde o surgimento dessa funcionalidade, diversos usuários gravavam a si mesmos se maquiando e conversando sobre temas relacionados a cosméticos, estética, ou respondendo perguntas de seus seguidores. Com o avanço das técnicas de edição no IGTV, esses tutoriais passaram a ser mais rápidos, mostrando somente etapas da maquiagem, sendo, ainda mais recentemente, apropriados para discutir, também, questões sociais. Essa opção pela aproximação com os vídeos de maquiagem, além de dialogar com os usos típicos dessa rede social, aponta para alguns efeitos de sentido, em especial o de que, junto com o avanço da maquiagem, há o avanço na discussão sobre a transfobia, associando a saída de um senso comum que apaga essas opressões à mulher sem maquiagem; para resultar na formação de um saber e consciência que se voltem contra a transfobia, e que é associado à mulher completamente arrumada — com a camisa da UBES.

Considerações finais

Como debatido ao longo deste artigo, o avanço das mídias digitais permitiu — mesmo em meio às contradições que perpassam seus usos — a constituição de práticas discursivas e educativas que atravessam os muros da escola e da universidade, entrando em contato com diferentes sujeitos. Entre essas práticas, encontram-se as formuladas pelo movimento estudantil que debatem e se opõem à LGBTIfobia, ainda que frente à série de desafios impostos pelo avanço de grupos reacionários no campo político e educacional.

Tais práticas são formuladas em diferentes plataformas e, portanto, são produzidas de maneiras distintas, mobilizando e reconstruindo funcionalidades e usos dessas redes. Dessa forma, propusemo-nos a analisar a construção de práticas discursivas e educativas a partir de dois vídeos postados no Instagram da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), visando a debater discursivamente o caráter educativo de sua resistência e combate à LGBTIfobia. A compreensão de uma educação que transcende o muro das escolas foi fundamental, uma vez que nos permitiu analisar o modo como diferentes atores sociais, neste caso o movimento estudantil, impactam a formação e a prática dos sujeitos por meio de diferentes tipos de aprendizagem.

Os vídeos partem de um gênero discursivo típico do Instagram, entretanto, por meio de tensionamentos com outros gêneros ou com usos não convencionais, estes são reconstruídos, de modo a conferir maior legitimidade e dialogicidade ao que se enuncia. Assim, pudemos observar que a realidade da população LGBTI é problematizada por meio da oposição a um senso comum que apaga as diversas opressões que esses corpos sofrem, proporcionando uma formação de saberes e de consciência que permite que diferentes sujeitos participem ativamente de espaços políticos e da luta contra a LGBTIfobia, seja ela dentro ou fora do ambiente escolar. Além disso, há uma determinada percepção de saber que constitui essas práticas, que — ao vinculá-lo às relações de poder — aponta para sua construção dialógica por meio da coletividade.

Com efeito, ao mobilizar as mídias digitais, o movimento estudantil reforça discursivamente a sua construção como um espaço democrático, coletivo, dialógico, emancipatório e com caráter educativo, dado à percepção ética, política e humana de saber que perpassa suas diversas práticas. Portanto, as plataformas online apresentam novas possibilidades de práticas discursivas e educativas que intervêm na produção de sujeitos e da realidade social, sendo cada vez mais relevantes para pesquisadores interessados nessas práticas sociais.

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  1. O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no período de 04/2020 a 04/2023 (Processo: 310326/2019-2).↩︎

  2. Optamos, neste texto, pelo uso da sigla LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais), frente às suas variações, devido a sua adoção por meios institucionalizados, tanto nacionais quanto internacionais.↩︎

  3. Ao optarmos pelo termo tolerância, cabe ressaltar que o mesmo tem sido amplamente criticado, em especial pelo viés pós-colonial, por ser entendido como o ato básico de suportar, aguentar diferentes valores, perspectivas, princípios e modos de se viver ocupando os mesmos espaços sociais. Ou seja, a tolerância é vista como um consenso social mínimo necessário para que haja um regime de convivência social.↩︎

  4. Tradução nossa do original: “but also much more opaque to public scrutiny and understanding”.↩︎

  5. Canaltech — Instagram bate a marca de 1 bilhão de usuários ativos. Disponível em: canaltech.com.br. Acesso em: 15 jun. 2021.↩︎

  6. Ver: VILLELA; ALMEIDA; GIORGI, 2020.↩︎

  7. Ver: www.redebrasilatual.com.br.↩︎

  8. Ver: youtu.be↩︎

Resumo:
Neste artigo, analisamos a construção de práticas discursivas e educativas que se opõem à LGBTIfobia por meio das mídias digitais do movimento estudantil, entendidas como espaço de formação de práticas educativas e político-ativistas vinculadas, mas não restritas, à escola. Para tanto, partindo de uma perspectiva interdisciplinar e pautados no referencial teórico-metodológico da Análise do Discurso, selecionamos como corpus de análise dois vídeos postados na rede social Instagram da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Nossos resultados apontam para a construção de saberes e de consciência das opressões contra corpos LGBTI, aliadas a uma perspectiva de saber vinculada às relações de poder, à coletividade e a um dever ético com a emancipação social.

Palavras-chave:
Movimento estudantil; LGBTIfobia; Educação; Mídias digitais; Análise do Discurso.

 

Abstract:
In this article, we analyze the construction of discursive and educational practices that oppose LGBTIphobia through the digital media of the student movement, understood as a space for the formation of educational and political-activist practices, linked, but not restricted to school. Therefore, from an interdisciplinary perspective and based on the theoretical-methodological framework of Discourse Analysis, we selected as a corpus of analysis two videos posted on Instagram social network of the Brazilian Union of High School Students (UBES). Our results point to the construction of knowledge and awareness of oppression against LGBTI bodies, allied to a perspective of knowledge linked to power relations, to collectivity and to an ethical duty with social emancipation.

Keywords:
Student Movement; LGBTIphobia; Education; Digital Media; Discourse Analysis.

 

Recebido para publicação em 20/06/2021
Aceito em 15/10/2021